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Não sou propriamente maníaca das limpezas, pois que não sou, mas tenho as minhas pequenas obsessões (todos as temos) e uma delas é o chão. Eu sou aquela pessoa que varre e aspira e lava o chão várias vezes, isto já em tempos normais, quanto mais agora que estamos todos em casa a migalhar e a patear. Na cozinha, então, nem se fala. Passo o dia de vassoura na mão, ou com o aspirador pequenino, ou com o aspirador grande, e depois com a esfregona e depois a seguir a zangar-me com os miúdos porque já está tudo sujo outra vez. Com o resto não sou assim tão stressada. Vamos fazendo. De vez em quando dá-me uma fúria de limpar a despensa ou os armários ou de limpar o pó aos livros todos, mas isso é mesmo só de vez em quando. Desde que estamos de quarentena, para além da manutenção, uma vez por semana fazemos uma limpeza geral, e digo fazemos porque eles já sabem que têm de arrumar o quarto e mudar os lençóis das camas e que também lhes compete limpar o pó e aspirar o resto da mansão, com excepção da cozinha que é o meu território. Também já informei os rapazes que na próxima semana os ia ensinar a lavar casas-de-banho - "que nojo, mãe, eu não lavo a sanita", dizem eles, fazendo caretas, e é aí que eu percebo que devo estar a errar completamente na educação que lhes estou a dar e que é urgente mudar isso. Que a quarentena nos sirva para alguma coisa de útil.
Isto para dizer que não, não tenho quaisquer problemas em limpar a casa, desde miúda que estou habituada a fazer tudo e, já na minha casa, vivi muito tempo sem ter ajuda. Mas sei que me vai custar bastante, quando isto tudo voltar ao "normal", ter que perder horas da minha vida a limpar em vez de ir esplanadar para algum lado ou ficar simplesmente no sofá a olhar para a televisão. Não é só o luxo de não limpar, é também aquele luxo burguês que é ter tempo livre. (isto está tudo estudado, não estou a inventar nada)
Também vou ter saudades de chegar a casa e, como por magia, estar tudo limpo e cheiroso. O dia da empregada era sempre o melhor dia da semana.
Mas a verdade é esta. Os luxos são para quem os pode ter.
Quando a habitação deixa de ser vista como um lar de alguém e passa a ser vista como "um activo financeiro", as pessoas deixam de ser vistas como pessoas e passam a ser empecilhos, obstáculos a grandes negócios, gente sem nome que é preciso expulsar rapidamente para se poder ganhar mais dinheiro. É isto que está a acontecer actualmente em Lisboa: aquilo que devia ser um direito básico de qualquer pessoa passa a ser um luxo apenas acessível a alguns. E, por arrasto, estraga-se uma cidade.
Não sou muito adepta de discursos radicais, não venho aqui dizer que as casas deveriam ser gratuitas e que toda a gente tem direito a um T3 no Saldanha. Mas há mínimos. E esses mínimos estão a ser ultrapassados em Lisboa, onde o boom turístico, a especulação imobiliária, o crescimento dos mercados do "arrendamento curto" e do luxo, a falta de regulamentação e a muita corrupção estão a pôr em causa a capacidade de muitas pessoas para pagar uma casa. E, reparem, eu já nem estou a dizer para terem uma casa. Não se trata sequer de ser proprietário (ainda que eternamente devedor ao banco). Trata-se apenas de conseguir pagar a renda de uma casa para morar. E já nem estou a falar do direito a permanecer na casa ou no bairro onde sempre moraram, junto das pessoas que conhecem, integrados na sua comunidade. É mesmo só ter um teto, sabem?, uma cozinha, um esquentador, essas coisas básicas.
É disto que fala o filme O que vai acontecer aqui?, do colectivo Left Hand Rotation, que estreou esta semana no DocLisboa mas que está disponível na íntegra online. Este é o trailer:
Eu sei que ao verem este filme algumas pessoas vão achar que esta realidade não é a sua. Às vezes temos dificuldade em sair do nosso lugar de privilégio. Mas é necessário que o façamos. Pois a verdade é que já não estamos só a falar de uma margem da sociedade, estamos a falar de trabalhadores (se preferirem, da classe média). De pessoas que vivem do seu ordenado num país onde o salário mínimo é de 600 euros e o ordenado médio é de 943 euros (brutos). E mesmo que ganhem um pouco mais é complicado. Já viram os preços das casas?
Se pensam que ficar sem casa é coisa que acontece só aos outros, imaginem o que seria se, um dia, a empresa onde trabalham entrasse em falência e ficassem desempregados aos 40 anos, ou se se divorciassem e tivessem que procurar uma outra casa e pagar a renda (e todas as outras despesas) sozinhos, ou se, de repente, for a vossa a casa a ser vendida para ser transformada num hostel.
Ou até uma situação menos dramática: todos nós conhecemos histórias de pessoas que, nos últimos anos, tiveram de sair da sua casa devido ao súbito aumento da renda. Deixaram o centro da cidade e mudaram-se para as periferias, para os arredores, para a outra banda, para algum sítio onde os preços das casas ainda são acessíveis - até deixarem de ser, porque a lei do mercado funciona assim e quando a procura aumenta os preços também aumentam. E também não sei se já ouviram falar da falta de professores nas escolas da Grande Lisboa - porque é tão caro mudar para aqui que, feitas as contas, os professores preferem ficar onde estão, sem trabalhar e sem receber o seu miserável ordenado.
Isto está tudo ligado. Os velhinhos da Mouraria e os professores que não querem vir para Lisboa são todos vítimas desta mesma situação. Estamos todos a ser expulsos da cidade. E ainda só estou a falar das pessoas, mas não podemos deixar falar das consequências disto para as cidades.
Sobre esse assunto, porque isto não está a acontecer só em Lisboa e porque é mesmo algo que nos devia preocupar, aqui fica mais um trailer de um filme que ainda não estreou em Portugal e ainda não vi mas sobre o qual estou bastante curiosa: Push, de Frederik Gertten.