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Andei a evitar Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos. Há sempre um filme assim, daqueles que toda a gente gosta e que eu, só pelo que vou vendo aqui e ali, já sei que não será o meu pedaço de bolo. Confirmou-se. O ponto de partida até é interessante: o filme pergunta-nos o que é a liberdade, a liberdade plena, e se alguma vez conseguimos ser verdadeiramente livres; e faz-nos ter consciência de como a sociedade nos forma, enforma e deforma de mil maneiras - sobretudo se formos mulheres.
Bella Baxter é uma criança num corpo de mulher. E, no início do filme, é completamente livre. À medida que cresce, que vai aprendendo coisas, descobre o mundo e toma consciência de si e dos outros, a sua liberdade fica diminuída. Mas ela luta contra isso com unhas e dentes. É, segundo algumas opiniões, um modelo feminista. Afinal, estamos todas, nós, mulheres, nessa batalha por conseguirmos sermos quem somos sem ligar ao que nos rodeia e sabemos bem como é um objectivo difícil de alcançar.
A interpretação de Emma Stone é, de facto, bastante boa.
O momento em que se ouve Carminho a cantar o fado O Quarto é realmente bonito - e é a primeira vez em que Bella parece sentir alguma emoção.
Dito isto, não tenho paciência. Nem para cientistas dispostos a encontrar a essência do humano (por muito que adore o Willem Dafoe), nem para filosofias da treta sobre homens e mulheres (por muito que um desses homens seja o Mark Ruffalo), nem para cidades e tempos imaginários, nem para mundos visualmente maravilhosos mas absolutamente artificiais, nem sequer para as infindáveis cenas de sexo - vai sempre tudo dar ao sexo, não é? a verdadeira liberdade é a liberdade de fornicar com quem se quer e como se quer? a prostituição - e a submissão ao desejo dos homens - é um caminho para o auto-conhecimento? vamos ignorar o facto de a madame (que diz umas frases tão "profundas" que até foram escolhidas para o trailer) explorar as raparigas que passam dificuldades? E o facto de o filme terminar com uma vingança maldosa de Bella sobre o homem que a tratou mal (à la Barbie) também não me parece lá grande coisa feminista.
Valham-nos os pastéis de nata, mas com moderação. Nada a ver com etiqueta, é só mesmo para evitar as dores de barriga.
Há uns tempos, revi o filme Os Acusados, realizado por Jonathan Kaplan e protagonizado por Jodie Foster. O filme é de 1988. Devo tê-lo visto pela primeira vez por volta de 1990, mais ou menos, porque naquela altura os filmes demoravam a chegar ao cinema da minha terra. Eu era uma miúda, não sabia nada da vida nem dos homens nem do sexo. E, no entanto, lembro-me de ficar bastante impressionada e revoltada. Lembro-me de ter falado sobre o filme com os meus amigos e de ficar chocada com o facto de alguns defenderem a tese do "ela estava a pedi-las". Era o que se dizia então. Crescemos, nós, as raparigas, a ouvir isso. Que não podíamos fazer determinadas coisas - usar determinadas roupas, ir a determinados sítios, ter determinados comportamentos como beber muito, dançar livremente, andar sozinhas na rua a determinadas horas - porque se as fizessemos algo de mau poderia acontecer e seria culpa nossa. "Estávamos a pedi-las". A palavra "provocante" só existe para as mulheres, nunca para os homens. Durante gerações, as mulheres cresceram sabendo que deviam controlar-se, conter-se, vigiar-se, porque era sua responsabilidade evitar que fossem assediadas ou abusadas. Aos homens nunca era imputada nenhuma responsabilidade porque eles, coitados, já se sabe, são como animais, que quando são "provocados" não se conseguem controlar. Este foi o discurso que todas ouvimos e contra o qual, fomos percebendo, tínhamos que nos revoltar. Isto para mim foi muito claro naquele dia em que vi "Os Acusados" e em que, mesmo sem saber o que era isso de ser feminista, mesmo sem ter lido os livros e sem conhecer as teorias, eu já sabia que não poderia haver desculpa para aqueles homens. Que a culpa nunca é da vítima, mesmo que use minissaia e esteja embriagada e dance como se fosse a maior sedutora do mundo. Nada disto legitima, desculpa ou atenua o comportamento dos homens.
Mais de 30 anos depois, o filme voltou a revoltar-me. Por tudo isto e ainda mais pela sua gritante actualidade. Porque mais de 30 anos depois o que é incrível é que este ainda seja um assunto que se discute. Que ainda haja quem use o estafado argumento do "ela estava a pedi-las" ou "foi ela que o provocou" ou "ela até queria". Que juízes e tribunais continuem a perdoar, que grande parte da sociedade continue a desculpar, que sempre que um homem é acusado de ultrapassar o limite um grupo de homens se una à sua volta para defendê-lo.
* "Se acabó" (acabou-se) é a tag que se tornou popular nas redes sociais acompanhando os protestos contra o vergonhoso comportamento de Luis Rubiales, presidente da federação espanhola de futebol, que beijou nos lábios uma das jogadoras após a vitória no campeonato do mundo. O caso é complexo porque não se reduz a um beijo: primeiro, porque a história começou há muito tempo, com as muitas denúncias das atletas de machismo e discriminação por parte das estruturas directivas, e o beijo acaba por ser a ponta do iceberg ou a gota que entornou o copo, como afirmaram as jogadoras em comunicado; e, depois, porque a reacção dos dirigentes aos protestos apenas serviu para confirmar a sua mentalidade retrógada, machista e abusadora. É só um beijo, dizem, tanto barulho por causa de um xoxo? Só que o beijo não é só um beijo. É um abuso. É um abuso de poder, como o são todos os abusos sexuais. E os abusos não podem continuar a ser tolerados.
Como é que ainda estamos a discutir isto?, essa é a grande perplexidade.
Adenda - este TEXTO da jornalista desportiva espanhola Gemma Herrero descreve bem o ambiente tóxico que nos trouxe aqui
"A realidade só se mostra quando paramos, quando nos detemos antes de continuarmos", escreve Susana Moreira Marques. Está a falar como jornalista, como observadora, como pessoa que procura histórias e que quer entender o mundo à sua volta. É preciso tempo. Isto aplica-se ao jornalismo mas também à vida. É preciso tempo. Li o Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro estendida numa espreguiçadeira, à sombra, à beira da piscina num hotel em Évora. Estava imenso calor. Os putos alternavam entre mergulhos para refrescar e ficar no quarto, ao abrigo do ar condicionado, com a cabeça enfiada nos telemóveis. Nas férias não há hora para deitar nem para acordar nem para almoçar. Deixamo-nos ir, simplesmente. Às vezes, entediamo-nos. Estivemos quase sempre calados. Conversávamos sobretudo durante as refeições, eu ri-me das parvoíces infantis deles, eles riram das minhas parvoíces de velha. Jogámos snooker. Tivemos conversas sérias. Achei-os crescidos. Durante uns dias, ali e depois mais a sul, existimos quase fora do mundo. Suspendemos a vida. Como se não houvesse problemas para resolver, como se na semana anterior eu não me tivesse zangado muito por causa de coisas graves, como se três semanas antes eu não estivesse preocupadíssima por causa de outras coisas graves, como se não houvesse decisões importantes a tomar, como se estivesse tudo bem. É esse o fabuloso super-poder das férias. Temos tempo. Para fugir daquilo que somos todos os dias.
E depois continuamos.
O livro é uma reflexão muito importante e bonita sobre o que é isto de ser mulher, a partir da viagem de Maria Lamas, no final dos anos 40, e da sua obra Mulheres do Meu País. Lembrou-me as minhas avós. Fez-me pensar na sorte que temos hoje e no quanto ainda nos falta andar. E fez-me pensar no tempo e na importância de abrandar.
Amassei pão, fiz biscoitos, temperei a carne para o jantar, lavei a louça e ainda me sentei a beber café e a comer os biscoitos ainda mornos, tudo isto enquanto ouvia os dois primeiros episódios do podcast Wiser than me, no qual a atriz Julia Louis-Dreyfus entrevista mulheres alegadamente mais inteligentes do que ela. A primeira foi a atriz Jane Fonda e a segunda a escritora Isabel Allende. A Julia é uma péssima entrevistadora, há que dizê-lo. Mas as entrevistadas são muito boas. A Allende, sobretudo, vale muito a pena. Sabem quando eu dizia que a partir de uma certa idade aprendemos a ser aquilo que realmente somos e dizemos as coisas que realmente pensamos? É isso, mas com a experiência dos 80 anos. Imaginem a liberdade.
(sou tão feliz quando estou de férias, mesmo quando nem tudo corre bem. sou tão feliz que até tenho tempo e paciência para ouvir podcasts, que é uma coisa que raramente acontece)
Isto já começou há uns tempos, uma pessoa aqui e outra ali, mas acho que só agora estou a tomar verdadeira consciência do facto: estamos a chegar aos 50. Ainda no outro dia estávamos a fazer as festas dos 40, todas giras e frescas, a beber gin tónico e a dançar pela noite fora, a sentirmo-nos as maiores a meio da vida e a dizer que os 40 são os novos 30 e que bom que era, mesmo com uma ruga ou outra, termos esta dose de experiência e maturidade, lembram-se? Não sei muito bem o que aconteceu pelo meio - ou melhor, até sei, passaram dez anos e aconteceu uma pandemia e os filhos deixaram de ser crianças e começámos a perder as nossas pessoas e as hormonas desataram a fazer das suas e algumas de nós ainda sofreram mais uns quantos atropelos - mas sei que de repente estamos nos 50 e, não sei quanto a vocês, mas a meu ver isto parece-se exactamente como os 50 que são. Sem filtros nem melhoramentos.
Isso não é propriamente mau, atenção. É o que é. Não podes fugir, não te podes esconder, portanto, mais vale aproveitar muito bem enquanto aqui estamos, porque, como diz o Ivo Canelas, "isto passa a correr".
Duas coisas boas que a idade nos dá: uma consciência muito clara daquilo que nos interessa e a coragem de assumir isso mesmo, dizendo que "me estou a cagar" para o que não interessa (sejam os cabelos brancos, as opiniões dos outros, a marca dos sapatos ou as pessoas tóxicas à nossa volta).
É procurar as coisas boas, que as há sempre, até mesmo quando parece que não (isto sou eu a dizer a mim mesma, que me esqueço tantas vezes deste conselho básico) e dar muitos abraços a todas as pessoas que importam, porque as pessoas de quem gostamos e que gostam de nós são a única coisa que vale realmente a pena nesta viagem.
Este ano, três das minhas melhores amigas fazem 50 anos.
Foi a pensar nelas - e em todas nós, que já estamos ou que vamos a caminho dos 50 - que fiz esta playlist, com a mesma dedicação com que, na adolescência, enchíamos cassetes com as músicas que queríamos ouvir nas férias. São 50 canções cantadas por mulheres e, muitas delas, são também canções sobre mulheres. Havia outras mas a vida é feita de escolhas, não é? Estas são, sobretudo, canções de que gosto muito e, por isso, quero partilhá-las, assim em forma de prenda.
Estava à espera deles há algum tempo. São poucos mas estão aqui, bem na frente, impossível não vê-los quando me olho ao espelho todas as manhãs. Uns três ou quatro cabelos brancos que se destacam entre os mais escuros, a enquadrar-me o rosto, os primeiros de muitos, suponho. Só agora? Tens muita sorte, disseram-me. A sorte de nunca ter pintado cabelo. Houve uns momentos, quando era mais jovem, que tive vontade de ter o cabelo vermelho ou azul, mas nunca tive coragem. E para falar a verdade sempre gostei do meu cabelo preto. À medida que, à minha volta, amigas iam-se confrontado com os cabelos brancos, perguntava-me o que faria eu quando a minha altura chegasse. Iria pintar? Sempre achei que não. Irei pintar?, pergunto-me outra vez. Continuo a achar que não, mas quem sabe? A única coisa boa de envelhecer é estar cada vez mais nas tintas para o que os outros pensam e para o que é suposto uma "senhora da minha idade" fazer. Que se lixem as convenções sociais e as expectativas dos outros e os "alexandres pais" desta vida. Se me apetecer pintar o cabelo de cor-de-laranja, pinto. Se me apetecer ficar grisalha, fico.
O corpo é meu.
Se me acharem feia, não olhem. A gerência agradece.
Se vos apetecer comentar, fiquem calados, ou falem do tempo.
Sobre cabelos brancos escrevi AQUI.
Sobre esta pressão colocada sobre as mulheres e os seus corpos tenho escrito bastante, é só seguirem a tag Mulheres.
Sobre o texto execrável do Alexandre Pais, acho que há muito tempo que não sentia um nojo tão grande ao ler as palavras de alguém que não fosse o André Ventura. São três parágrafos de machismo, bodyshaming e idadismo. Uma pérola de boçalidade que julgávamos já não ser possível em 2023.
E ainda há quem me diga que as lutas feministas já passaram de moda. Quem me dera.
A propósito do Dia da Mulher, que amanhã se assinala: dois filmes que têm temas diferentes mas que, no fundo, falam da mesma coisa:
Ela Disse, de Maria Schrader, acompanha as duas jornalistas do The New York Times, Jodi Kantor e Meghan Thowey, que, em 2017, investigaram os abusos do produtor de cinema Harvey Weinstein. Durante anos, Weinstein, director da Miramax, usou a sua posição na indústria de cinema para abusar de jovens mulheres - algumas trabalhavam para ele, eram assistentes, secretárias, etc., outras eram actrizes no início de carreira. Lembro-me do quão enojada fiquei quando tudo isto se ficou a saber. Não foi uma nem duas vezes. Weinstein fazia isto por sistema, fê-lo muitas vezes (houve 107 mulheres que o acusaram, provavelmente haverá mais vítimas), e contava com a cumplicidade e a ajuda não só de outros trabalhadores (e trabalhadoras) como de grande parte do meio cinematográfico. É incrível percebermos como até há tão pouco tempo estes porcos abusadores podiam pavonear-se por aí impunemente, com a certeza de que ninguém teria coragem de os denunciar e que, se alguém o fizesse, bastava pedir aos seus caríssimos advogados para pagar o silêncio destas mulheres amendrontadas. Conseguir que essas mulheres falassem, conseguir derrubar o muro de silêncio em volta do assédio e dos abusos foi a grande conquista das duas jornalistas. E ver isso a acontecer neste filme é, para uma jornalista, quase como ver Os Homens do Presidente, o filme de 1976 sobre o caso Watergate - é lembramo-nos que existem jornalistas que de facto fazem a diferença e quão importante é o jornalismo quando é bem feito (depois há ali coisas que nós sabemos que não são bem assim, como, por exemplo, ninguém, e muito menos uma jornalista de investigação do NYT, faz telefonemas importantes para fontes ainda mais importantes enquanto se passeia numa rua de Manhattan ou enquanto entra no elevador do edifício da Oitava Avenida, mas, vá, a gente dá o desconto).
A Voz das Mulheres, de Sarah Polley, é um filme admirável por motivos totalmente distintos. O filme inspira-se nos acontecimentos na Colónia Manitoba, uma colónia de cristãos evangélicos na Bolívia, onde se descobriu que entre 2005 e 2009 um grupo de homens sedava as raparigas e as mulheres, com anestésicos para animais e, depois, durante a noite, as violava. As mulheres acordavam ensanguentadas e com dores mas na maioria das vezes não se lembravam com precisão do que tinha acontecido. Isso é da tua imaginação, disseram-lhes. Estás a inventar coisas. Ou então: isso é obra do demónio. Quando finalmente os homens foram apanhados no acto, a polícia foi chamada, concluindo-se que havia pelo menos cem vítimas, com idades entres os três (!) e os 65 anos. Oito homens foram acusados e condenados à prisão. O filme ficciona uma colónia semelhante, onde estes eventos ocorreram. Os violadores estão detidos a aguardar julgamento, os homens da colónia foram à cidade para tentar pagar as cauções, e as mulheres organizam-se para decidir o que podem fazer a seguir: perdoar e deixar tudo como antes; lutar (por quê? como?); partir, ou seja, abandonar a colónia. Têm apenas um par de dias para tomar essa decisão. O debate entre as mulheres, mais velhas e mais novas, solteiras e casadas, mais conservadoras ou mais progressistas, é um tratado sobre a condição feminina. E aquilo que ali se passa - algures, numa data indefinida, numa colónia religiosa, fundamentalista e fechada, que parece ter parado no tempo e viver ainda no século XIX - tem tudo a ver connosco. A influência da educação e da tradição naquilo que somos, os homens que não são todos iguais, as mulheres que também não o são, a violência doméstica, as questões transgénero, a masculinidade tóxica, a importância da religião, o poder - são tantas as questões que são ali abordadas. O que é a liberdade para quem nunca foi livre? Que escolhas temos? O que pode ambicionar quem não sabe ler, quem nunca foi à escola, quem nunca teve direito a ter opinião? Que voz é esta das mulheres quando finalmente se faz ouvir? Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Judith Ivey, Frances McDormand e todas as outras são maravilhosas. Este filme emocionou-me muito.
E, já agora, está patente até 23 de abril, no Museu de Serralves, no Porto, a exposição Metamorphosis, de Cindy Sherman. Esta também não se cala.
Quem vir o meu Instagram há de achar que a minha vida é um rodopio de comidas e festas, de espectáculos e passeios. É a chamada ilusão das redes sociais. Gosto de guardar naquele cantinho as coisas boas que me acontecem, algumas publicações quase sem explicação para os outros, só pequenas dicas para mim, para que um dia mais tarde, ao olhar para as imagens, me consiga lembrar: foi neste dia que estive com esta pessoa, foi neste sítio que me senti feliz. Um pouco como sempre fiz com os meus álbuns de fotografias, os meus álbuns que ultimamente tenho desleixado (mas ainda não perdi a esperança, ainda vou organizar estes últimos anos todos em álbuns, ainda vou!). Tenho esta pequena obsessão com a memória. Esta vontade de guardar tudo. Não coisas, não objetos. Guardar os pensamentos, os sentimentos, as sensações, as pessoas, os sítios, as vivências. E é também por isso que venho aqui escrever, talvez não tanto como gostaria, às vezes mesmo só porque sim, porque sei que a memória nos prega partidas e que, se não apontar aqui ou não publicar no Instagram, é provável que me esqueça e eu não quero esquecer a alegria que foi aquela noite com a Angel Olsen, ou aquele jantar com amigos, a maravilha do documentário sobre a Cesária Évora, a corrida para chegar horas ao "Perfect Match" dos Hotel Europa, o cansaço extremo que quase me fez sentar no chão a meio do concerto dos Bon Iver.
É que, feliz ou infelizmente, a vida não é só Instagram. A vida também é trabalhar, limpar a casa, dobrar meias, ir ao supermercado, fazer comida, arranjar marmitas, zangar-me com os putos, orientar estudos, pagar contas, ligar ao canalizador, mudar a areia do gato, ter insónias, pôr o despertador para as 6:30, arranjar ainda mais trabalhos. Há dias (semanas) em que julgo que não vai ser possível fazer tudo. Que me dói o ombro por causa das muitas horas ao computador. Que os olhos quase se fecham a meio de um texto que tenho de escrever. Que estou tão cansada que vai tudo corrido a pizzas e hambúrgeres e os putos começam a queixar-se que não têm roupa lavada. Que me vejo tão aflita que, mesmo com bilhetes comprados, só me apetece ficar embrulhada numa manta no sofá. Aconteceu-me na terça-feira. Atolada em trabalho, com o corpo moído e a cabeça feita em água, tive que inventar forças que não tinha para vestir um casaco e me meter no metro.
Ainda bem que fui.
E venho aqui escrever porque não quero mesmo esquecer a felicidade que senti por me ter sentado, numa cadeira apertada lá no cocuruto, num Tivoli lotado para ouvir as palavras sábias da Angela Davis e da Gina Dent. Angela, americana de 78 anos, militante de esquerda, anti-racista e feminista, pela igualdade de todos e pelos direitos civis, e, também, abolicionista. Gina Dent, que eu não conhecia até há poucas semanas, investigadora, activista e parceira de Angela. Que duas mulheres maravilhosas. Sensatas. Inteligentes. Curiosas. Atentas. Claras. Num mundo povoado por estrelas que vêm a "summits" debitar "talks" mil vezes repetidas e ensaiadas, é inspirador ouvir duas pessoas que têm tanto para dizer mas que também páram para ouvir, que perguntam, que querem saber. Que não mandam bitaites, apoiam-se em investigação. Que duvidam e põem-se a si mesmas em causa. E até dou de barato que tenham ideias polémicas ou utópicas. A igualdade e a liberdade para todos são, ainda, utopias. Imaginar um mundo sem sistema prisional e policial é de, facto, muito complicado, para nós que estamos aqui muito bem instalados na nossa vidinha, achando que as coisas são como são e pronto. "As prisões foram tão naturalizadas que nem pensamos que poderíamos existir sem elas", alertou Angela Davis. Mas, se não imaginarmos e se não pensarmos o que é que teremos de fazer para que a abolição seja possível, então é que nunca irá acontecer.
Angela Davis e Gina Dent lembraram que as prisões não existiram sempre. E é até engraçado perceber como as prisões surgiram como alternativa positiva em relação àquilo que existia antes: a condenação à morte ou os castigos físicos violentos. As prisões eram o sítio onde os criminosos esperavam pela condenação e passaram a ser a própria pena. Ela explica isso no livro Estão as prisões obsoletas?. Isto é tudo muito recente. Foi preciso primeiro estabelecer o direito universal à liberdade para que se considerasse que tirar a liberdade a alguém poderia ser um castigo em si mesmo.
Depois, questionaram: para que servem as prisões? Unicamente para castigar? Não. As prisões servem também, alegadamente, para manter as sociedades mais seguras. Para que a violência desapareça das nossas vidas. E estamos a conseguir cumprir esse objectivo? Nem por isso. "Se estamos a dar uma resposta a um problema, e falhamos, porque é que insistimos nessa resposta?", interrogou Angela Davis nessa noite.
"Há quem acredite que as prisões são sítios violentos porque os presos são violentos, mas na verdade as prisões são locais violentos por causa da violência do sistema prisional." A violência do encarceramento. A violência da força policial. A violência da existência de armas, da linguagem usada, das regras estabelecidas. E ainda sublinhou um outro facto: apenas uma pequena percentagem de pessoas está presa por crimes violentos. A maioria está presa por delitos menores, por reincidir, por desrespeito a regras (por exemplo, da imigração).
Perguntemo-nos, então: o que estamos a fazer - a nível social, educacional, cultural, político, económico, da saúde mental, da integração, da responsabilidade social - para prevenir a ocorrência desses delitos? O que estamos a fazer para reabilitar e reintegrar as pessoas que já passaram pela prisão, para que não voltem? Acreditamos mesmo que o nosso sistema prisional não se limita a ser punitivo, é também um sistema de empoderamento e de melhoramento dos indivíduos?
E podemos ir ainda mais longe, como ela vai: "Há pessoas que quando nascem já estão condenadas à prisão, são criminosos à nascença", disse. Porque existe o contexto e a desigualdade e todas as circunstâncias que nos moldam e condicionam. Porque nem todos os que cometem o mesmo crime têm a mesma pena. Porque existem crimes em relação aos quais somos mais condescendentes. Porque existem as questões raciais, culturais, de género, de nacionalidade, de classe. Porque existe a injustiça, o preconceito, o abuso de poder.
Por fim: as prisões existem e são cada vez mais e estão cada vez mais cheias porque existe um "sistema industrial de prisões", as prisões são já parte do capitalismo - dão lucro, dão emprego, fazem a "máquina" funcionar. É difícil acabar com as prisões da mesma forma que é difícil acabar com os combustíveis fósseis ou com a exploração laboral - porque há muita gente com muito a poder a ganhar muito dinheiro com isto.
Se calhar, disseram elas, "temos que repensar o que significa sentirmo-nos a salvo (safe) e sentirmo-nos em segurança (security)". Se calhar, temos que nos perguntar como é que lidamos com os problemas criados pelo capitalismo e em que mundo queremos viver? Se calhar, "não é preciso só abolir as prisões, é preciso criar uma nova sociedade, é preciso uma revolução". E, sim, sabemos que não vai acontecer já, mas podemos imaginar como é que seria viver num mundo assim, sem prisões, sem polícias, sem exércitos, sem guerras, sem armas, e podemos tentar começar por algum lado.
E eu nem estou a dizer que concordo com tudo o que ouvi. Teria que pensar mais amadurecidamente sobre o assunto para poder defender a abolição das prisões. Mas é tão bom questionar ideias feitas, é tão bom pensar e duvidar e procurar soluções. Sim, ainda bem que fui.
Estes são os livros que tenho de Angela Davis. Comprei propositadamente mas acabei por não conseguir ler o Abolition. Feminism. Now., porque me meti em trabalhos e tenho mesmo andado muito ocupada, mas, depois disto, fiquei ainda com mais vontade de lê-lo.
Se quiserem, podem ver a sessão com Angela Davis e Gina Dent AQUI.
Envelhecer é uma grande porcaria mas não há como evitá-lo, não é? Por isso, não adianta fechar os olhos e fingir que não está a acontecer (e deus sabe como eu gosto desta técnica de sobrevivência). Decidi enfrentar a realidade e fazer um artigo sobre a menopausa. Parti para este trabalho sem saber nada, só com esta ideia de que acho que é isto que me está a acontecer, como será com as outras mulheres? Foi um processo muito bom, pelas conversas que tive. Tive muita sorte com as minhas entrevistadas. E, depois, tem sido muito bom receber todas as reacções e mensagens de mulheres que me agradecem por ter falado neste tema, que me contam como se identificaram com as histórias ou que partilham comigo as suas histórias diferentes. Ah, então estás "nessa" fase? Sim, estou, chama-se perimenopausa (nem sabia que esta palavra existia) e é uma grande confusão, uns dias sinto-me um caco, como se já tivesse 90 anos, noutros estou imparável e disposta a tudo para combater a apatia.
O texto não tem pretensões de dar explicações científicas ou apresentar respostas milagrosas. Mas tem uma mensagem que me parece muito importante, para mim e para toda a gente. Se quiserem ler, está aqui:
O filme chama-se Boa sorte, Leo Grande e está nos cinemas. Nem tinha ouvido falar dele, de tão desligada que ando das estreias dos filmes, mas uma amiga desafiou-me, eu perguntei é sobre o quê?, ela respondeu que a Emma Thompson faz de uma mulher que nunca teve um orgasmo e eu disse logo que sim, quero. A Emma Thompson tem 63 anos e ali, naquele quarto de hotel onde se passa quase toda a acção, ela é Nancy Stokes que é, na verdade, a professora Mrs. Robbinson (com todas as imagens que esse nome ecoa em nós). Uma mulher que, como todas as mulheres, cresceu a ser ensinada a ter vergonha do seu corpo, a escondê-lo e a controlá-lo. Porque é isso que as mulheres como deve ser devem fazer. E que, uma vez viúva, percebe que viveu uma vida inteira sem prazer, não é só sem nunca ter tido um orgasmo, é sem ter tido prazer, sem nunca ter experimentado o desejo, sem saber como é deixar-se ir guiada só pelo que o corpo quer, sem pensar. É um filme sobre as mulheres e os seus corpos, sobre o envelhecimento e o tal do aceita-te a ti mesma, sobre isto, em que eu insisto tanto, da necessidade de sermos nós mesmas, sem dar cavaco ao que os outros pensam.
Boa sorte, Leo Grande é realizado por Sophie Hyde, que eu desconhecia, e, além de Emma Thompson, conta com Daryl McCormack, de 29 anos, que é um belo pedaço de mau caminho mas, acreditem, não é (só) por isso que vale a pena ir ver este filme.
Ideal para rir e chorar e depois ficar horas na conversa com uma amiga, de preferência a beber uma óptima sangria de frutos vermelhos. A melhor terapia de sábado à noite.