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E agora o que é que eu faço? Por instantes, os meus filhos crescidos voltaram a ser aquelas crianças que a meio de agosto já estão fartas de se aborrecer pela casa e precisam de ajuda para se entreter. Sem telemóveis, computadores, televisão ou consolas, parecia que não havia nada para fazer. Foram buscar as bicicletas, encheram os pneus, afinaram os travões e foram dar uma volta. Quando se fartaram disso, o mais velho foi namorar e o mais novo decidiu ir arrumar a marquise e até leu umas páginas do livro que tem há meses em cima da secretária.
Já eu, pessoa antiga e analógica, acho que estou quase preparada para o apocalipse. Não tenho rádio a pilhas, é verdade, e essa é uma falha a colmatar urgentemente. Mas tenho fogão a gás. Tenho velas e fósforos e lanternas. Relógios de ponteiros. Livros para ler e tricot para me entreter.
Estava em casa às 11:33. Demorei a perceber o que é que se passava. Ao início pensei que era uma falha de eletricidade no prédio, só quando vi que não tinha dados nem rede móvel é que intui que algo maior estava a acontecer. Ficámos assim, eu e o António, na ignorância durante uma hora até que, por milagre, o whatsapp encheu-se de mensagens. Durou pouco a alegria. Ficámos à espera que o Pedro voltasse da escola com novidades: o metro parado, os autocarros cheios, as pessoas na rua, as filas nos supermercados. Não deu para tomar banho (odeio água fria), mas estávamos juntos e, por isso, estávamos tranquilos. Aproveitei para cozinhar a pescada congelada antes que se estragasse e a única preocupação era como iríamos comprar a comida para o gato, que, inacreditavelmente, se tinha acabado - fomos salvos pelo mais novo da família, o único que não tem multibanco mas tem um mealheiro bem recheado. Se o apagão tivesse durado mais tempo, é claro que surgiriam outras angústias. Assim, foi só desfrutar do privilégio. Não fosse ter que ir a trabalhar depois do almoço e também teria ido passear com os rapazes, aproveitar o magnífico dia de primavera e relaxar, longe dos telemóveis e do scroll infinito, sem pensar nas notícias nem nos políticos.
Se há lição a tirar deste dia em que ficámos às escuras - literal e metaforicamente - é perceber o quão dependentes estamos da electricidade e como isso nos deixa tão vulneráveis, como indivíduos e como país. Basta alguém desligar um botão para ficarmos isolados e paralisados.
E já agora: não romantizemos o apagão. Se acharam fixe desligar o telefone e ir para o jardim, então desliguem o telefone e vão para o jardim todos os dias. Se gostaram de jogar às cartas e de conversar com os vizinhos, experimentem fazê-lo mais vezes. Não é uma pandemia ou uma falha eléctrica que vai mudar a nossa vida, somos nós mesmos que temos que fazê-lo.
A foto foi tirada já hoje.
Não sei bem quando é que tive consciência do privilégio que é viver em liberdade, como nós vivemos, mas sei que aconteceu muito cedo e que há de ter sido seguramente a partir de conversas com o meu pai, a partir de filmes e séries sobre a escravatura e as ditaduras e as guerras, por causa das aulas de história e dos acontecimentos à minha volta, com a ajuda das músicas que fui ouvindo, dos livros que fui lendo, dos artigos em jornais, das notícias na televisão. Vi o Muro de Berlim a cair em directo e lembro-me de ficar impressionada com a alegria esfuziante daquelas pessoas do Leste. Vi a Praça de Tiananmen. O Mandela a ser libertado e o apartheid a desmoronar-se. Isto tudo aconteceu quando eu estava no liceu. Eu já sabia, mas acho que viver aquelas coisas naquela idade, ao mesmo tempo que me descobria e construía, me tornou ainda mais consciente do que é ser livre.
Não sei bem quando é que tive consciência de que não era totalmente livre, mas sei que aconteceu muito mais tarde. Não estou a falar da liberdade para fazer tudo o que me dá na real gana sem pensar nas consequências, não é isso. Estou a falar da liberdade como espaço pessoal, íntimo. A liberdade para pensar com o mínimo de amarras. Para ser eu. Sem medo. Sei que não é possível fazê-lo completamente mas é possível caminhar nesse sentido e, de há uns tempos para cá, essa é a minha batalha. Estou ainda muito longe. Estou cada vez mais próxima.
A liberdade é uma luta constante, diz a Angela Davis. É frágil e precisa ser cuidada todos os dias. Seja com actos heróicos, com palavras ou até "só" com a nossa consciência.
É por isso que, não desmerecendo o Zeca, o Sérgio, a Garota e todas as outras músicas que canto emocionada, acabo sempre por voltar aqui:
Nina Simone, I wish I knew how it feels to be free
*
A foto não é de hoje, mas o sentimento é o de sempre.
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A liberdade também está a passar por aqui:
Eu sou das manhãs. Seja a que horas for, mesmo que seja cedo ou muito cedo, acordo com energia e boa disposição. Não preciso daquele tempinho para despertar o corpo, nem necessito de café para ter conversas articuladas. E muitas vezes acordo até antes do despertador. Fresca e pronta para o que vier. De manhã estou no meu melhor. É a melhor altura para trabalhar, para fazer exercício, para pensar, para tomar decisões.
Fui das manhãs até mesmo quando as noites se tornaram mais desafiantes, naquela altura, quando eles eram bebés, em que havia noites realmente complicadas. Passei muitas horas a dar colo, a dar mama, a cantar canções, a mudar fraldas. Houve noites em que mal dormi e julguei que não ia aguentar. Mas depois, via a luz da manhã começar a entrar pelas frestas da janela, respirava fundo e fazia uma espécie de um restart mental. Bom dia! E de repente o cansaço desaparecia e ia buscar energia sabe-se lá onde. Habituei-me, então, a passar as noites num estado constante de vigília. Ao minímo barulho, ao mais sussurrado "mãe" vindo do quarto ao lado, abria os olhos e ficava operacional. Nesse período tornei-me perita na arte de acordar e voltar a adormecer. Acordar para trocar lençois molhados de xixi ou para avaliar uma febre ou acalmar um filho depois de um pesadelo ou aquecer um copo de leite ou dar espaço para mais um na minha cama. E quando eles começaram a crescer bastava-me ouvir o barulho da porta ou o António a assomar ao meu quarto, "mãe, já cheguei". Nesse estado semi-acordado, tive conversas sérias e até dei raspanetes, mas também dei miminhos, fiz camas para amigos que apareceram sem avisar, tratei bebedeiras e outras maleitas. E no minuto seguinte voltava a dormir como se nada fosse.
Entretanto, já não tenho essa capacidade tão apurada. Mas mesmo agora, em que as noites são desafiantes por outros motivos, em que acordo para ir à casa-de-banho ou por coisa nenhuma, uma vez ou várias vezes, em que volta e meia passo horas a fio em claro a pensar na vida, continuo a ser das manhãs e, embora com mais dificuldade, sou capaz de sorrir ao dia que começa e de levantar-me da cama sem ronha ao primeiro toque do despertador.
Tudo, menos fazerem-me ficar acordada até muito tarde. Se me querem feliz, não me convidem para tomar um copo, convidem-me antes para um bom pequeno-almoço.
Outros despertadores a tocarem neste largo:
O que fariam se soubessem que vão morrer em breve?
Molly quer fazer sexo. Quer fazer sexo sem culpa, sem tabus, sem restrições. E gostaria também de ter um orgasmo fazendo sexo com outra pessoa, algo que nunca conseguiu.
De alguma forma a série Dying for Sex está ligada ao livro da Miranda July de que falei aqui, só que em vez de uma mulher perante a constatação de que está a envelhecer temos uma mulher, um pouco mais nova, com o diagnóstico de um cancro terminal. Em ambas a mesma necessidade, a mesma urgência, de viverem como bem lhes apetece este tempo tão curto que têm pela frente. E isso inclui não continuar numa relação que não as faz feliz e explorarem os seus desejos sexuais, que até aqui estavam aprisionados.
Molly, interpretada por Michelle Williams, tem outros traumas para resolver, incluindo o facto de ter sido abusada sexualmente quando era criança e de ter uma relação complicada com a mãe. E tem uma grande amiga, Nikki, que muda toda a sua vida para a acompanhar nesta fase (e esta é também uma série sobre a amizade e a dor de perder alguém que nos é muito querido).
A série baseia-se na história verdadeira de Molly Kochan, uma americana de Los Angeles que, depois de quatro anos antes ter tratado um cancro, em 2015, quando tinha 41 anos, foi diagnosticada com cancro da mama em estádio 4. Nessa altura, decidiu embarcar numa aventura de descoberta sexual e contar tudo num podcast em que conversava com a sua melhor amiga, Nikki Boyer. “O sexo faz-me sentir viva - e é uma óptima distracção da doença”, disse. O podcast só foi lançado depois da sua morte, em 2019. Molly também contou a sua história no livro de memórias, Screw Cancer: Becoming Whole, que foi lançado em 2020.
Acho que nunca tinha visto uma série que retratasse de forma tão pormenorizada a vida com cancro e o caminho para a morte. Apesar do humor e de todo o sexo, senti-me muito angustiada, sobretudo nos últimos episódios. Se, por um lado, é incrível que já se consiga falar destes temas e fazê-lo assim, com esta personagem tão luminosa e especial, por outro lado, não consegui deixar de me sentir extremamente triste e de pensar em todas as pessoas que eu conheço que passaram por situações semelhantes. O que terão pensado? O que terão sentido? Sentiram-se sozinhas? Será que fizemos tudo o que era possível por elas?
Quando o filme terminou não consegui levantar-me. As luzes acenderam-se, a música a tocar, a ficha técnica a passar no ecrã, e eu ali, incapaz de fazer o que quer fosse, sentindo uma tristeza imensa, uma tristeza tão grande por Aurora e por nós todos, que raio de mundo este, a pensar nos meus filhos, no futuro que lhes estamos a deixar, nos valores que lhes queremos passar e, bolas, é Abril outra vez e aqui estamos, ainda, a lutar por termos todos vidas dignas.
On Falling é a primeira longa-metragem de ficção de Laura Carreira, realizadora portuguesa que vive na Escócia há mais de dez anos. É em Glasgow que se passa este filme. Aurora (interpretada pela excelente Joana Santos) também é portuguesa e trabalha como "colectora" num grande armazém de e-commerce. Passa os seus dias sozinha, vagueando pelos sombrios corredores do armazém a recolher os items para as encomendas. Trabalha muito e vive contando o dinheiro para que chegue ao fim do mês (e às vezes não chega). O filme mostra-nos a repetição dos seus dias, um a seguir ao outro, um igual ao outro, enfiada num armazém inóspito, com uma máquina que apita se ela demora um pouco mais a cumprir a tarefa, num sistema que a vê como um número, um funcionário sem rosto, cuja performance é contabilizada por um computador. Uma vida sem sorrisos nem alegrias. Nos poucos tempos livres que tem, Aurora está quase sempre sozinha, fechada no seu quarto, a olhar para o telefone. Ou então acompanhada dos colegas de trabalho, no refeitório para a pausa do almoço, ou dos colegas de casa, na pequena cozinha onde todos prepararam as refeições - pessoas com quem tem uma intimidade forçada mas com quem não estabelece uma verdadeira relação, e, por isso, até nesses momentos, continua a refugiar-se no scroll infinito do seu telefone. Aurora não tem amigos, não tem abraços.
Quão triste é a vida de alguém quando a única coisa que faz no seu tempo livre é lavar a roupa?
Já tínhamos visto como podem ser as vidas desgraçadas dos emigrantes em Great Yarmouth. Aqui temos outra perspectiva. On Falling é, antes de mais, um filme sobre o capitalismo selvagem em que vivemos e sobre a quase escravatura a que muitos trabalhadores estão sujeitos. Onde o trabalho é um meio de sobrevivência precária mas que não permite qualquer sobre-vivência. "Trabalhar para ganhar a vida, porque é que a vida que se ganha tem de gastar-se a trabalhar (para ganhar a vida)", lembram-se da canção? Contas feitas, aqui não há vida ganha. Este é também um filme sobre a falta que nos faz essa vida fora do trabalho, a falta que nos faz o tempo para sermos outros além de funcionários, a falta que nos faz o convívio, a ligação aos outros, os afectos. É isso que nos mostra a cena final, a única em que se vislumbram sorrisos e alguma alegria.
Há dez anos, desde a primeira viagem a São Miguel e a primeira vez que ouvi falar do Tremor, que andava com vontade de lá ir. Mas era sempre tudo tão complicado, os miúdos e as férias da páscoa e o dinheiro e os bilhetes e ir com quem?, nunca conseguia, ficava só a ver as fotografias no instagram e a ouvir os relatos de quem lá ia e a achar que devia ser mesmo fixe. Até este ano. No aniversário dos 50, um grupo de amigos ofereceu-me a viagem de avião. Que alegria! Começámos por ser duas e acabámos a ser seis. E foi incrível. Cinco dias inteiros de felicidade, ora com chuva ora com sol, mas quem quer saber do tempo quando se está mergulhada na água quentinha da Poça da Dona Beija e rodeada de pessoas queridas? Tirando os telefonemas e as mensagens (sem stress) para os rapazes, consegui fugir completamente da rotina, das notícias, das preocupações, e entregar-me por completo a esta experiência. Porque o Tremor é, de facto, uma experiência. É um festival com um ambiente muito cool, relaxado, com poucas pessoas, que vamos encontrando uma e outra vez ao longo da semana, casais que trazem os filhos, grupos de amigos, gente da terra, todos juntos e todos a sorrir.
Também é preciso estar atento e disponível para desfrutar completamente - dos concertos, da beleza da ilha, da comunidade. O programa é muito extenso e não conseguimos ir a tudo (até porque a idade já pesa e esta pessoa não aguenta noitadas), mas tudo o que fizemos foi bom, de uma maneira ou de outra. Destaques:
Comer: bolo lêvedo e massa sovada nos nossos pequenos-almoços com vista para a marina, os chicharros com feijão no Mané Cigano, as bifanas de atum e o bolo de ananás da Tasca, o cozido e a carne no ponto do Tony's, as bifanas do Clipper, o peixe (e, diz quem comeu, também as iscas) do Nacional, cerveja e tremoços nas escadas da igreja da Lagoinha, o queijo com pimenta da terra em todo o lado, sempre que possível.
Tremor na Estufa: concertos surpresa em formato pop-up, em lugares inesperados. Vimos os divertidos The Zenmenn no Pinhal da Paz, estivemos nas Furnas com os Why The Eye e ainda ouvimos os Comfort no Museu do Tabaco da Maia (e o museu também é bastante interessante).
Tremor Todo-o-Terreno: pequena caminhada na Ferraria, mini-concerto do saxofonista Julius Gabriel junto ao mar e, a terminar, banho na piscina de água quente e salgada.
As salas: só conhecia o Teatro Micaelense, fiquei a conhecer o Coliseu Micaelense, o Ateneu Comercial, a Igreja do Colégio e o espaço das Portas do Mar, onde acabavam as noites (e que, por coincidência, ficava a apenas três minutos de casa, o que deu imenso jeito).
A música: a grande descoberta para mim foi Fidju Kitxora, um projecto muito incrível que junta as sonoridades de Cabo Verde e a electrónica e pôs toda a gente a dançar. Joseph Keckler, de que nunca tinha ouvido falar, foi uma óptima surpresa. O concerto de Norberto Lobo e Six Organs of Admittance foi muito, muito bom. Os 800 Gondomar, não sendo de todo o meu género musical, acabaram por ter a energia certa para aquele fim de tarde do Mercado da Ribeira Grande.
Mais do que música: foram muito especiais os momentos musicais que envolveram as pessoas de São Miguel e onde se percebe o impacto que um evento destes, quando é bem feito, pode ter, sobretudo nos jovens. O projecto Filhos do Vento pôs um grupo de rappers locais a trabalhar com o Xullaji e só de ver a alegria deles em palco a debitar as suas rimas já valeu a pena (ficámos de olho no Maçarico). O saxofonista Guillaume Perret esteve apenas cinco dias com a Escola de Música de Rabo de Peixe e o resultado foi extraordinário (foi mesmo). E o músico Romeu Bairos, além do seu disco, Romê das Furnas, trouxe para o palco músicos das Festas do Divino Espírito Santo e ainda contou com a participação inesperada do grande Zeca Medeiros. Gritou-se 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais, e estou em crer que me caiu uma lagrimita emocionada, não sei se pela música, se pela felicidade de estar ali e pela sorte, a imensa sorte que tenho, de ter estas oportunidades e estas pessoas na minha vida.
Sim, porque nada disto seria possível nem seria assim tão bom sem a energia e a alegria e as conversas e as piadas e a presença e a amizade e os abraços de Alda, Ana, Jô, Nuno e João. A dançar na fila da frente dos concertos ou para enfrentar caminhos íngremes no meio do nevoeiro, não consigo imaginar melhores companheiros de viagem. Tremor é amor, diz o lema do festival. E eu confirmo.
“Essa sensação de o tempo estar a escassear e uma pessoa ser demasiado medricas para fazer explodir a vida que leva.”
No livro De Quatro, Miranda July mostra como uma mulher de 45 anos enfrenta a sua crise de meia-idade (também conhecida como perimenopausa) e decide abanar a sua vida e o seu casamento tradicional para se permitir partir à descoberta daquilo que realmente gosta e quer para si. Antes que seja demasiado tarde. Ou seja, antes de o envelhecimento a desfigurar.
Há muito sexo em De Quatro. Há masturbação, sexo hetero e homossexual, fantasias, brinquedos sexuais, role play. É engraçado pormo-nos na cabeça de outra mulher. Porém, não gostei assim tanto quanto esperava deste livro, que me foi muito recomendado. Em parte acho que isso tem a ver com a escrita da autora e também com a tradução. Não foi só isso. Mas prefiro falar daquilo que gostei. Sendo um livro escrito por uma mulher sobre mulheres e envelhecimento é claro que há sempre algum momento onde nos reconhecemos. Por exemplo, na eterna questão: conseguiremos, apesar de todas as condicionantes sociais, ser quem realmente somos (ainda que para isso precisemos de ter um quarto-refúgio num motel a vinte minutos de casa, como esta mulher)? Ou na outra pergunta, que todas nos fazemos a determinada altura: como será a paixão (ainda haverá paixão) quando envelhecemos?
Depois, achei interessante a relação dela com as amigas e as conversas com outras mulheres, como quem percebe que afinal não está sozinha. E gostei de toda a parte mais doméstica, da relação da protagonista com o marido e o filho, a vidinha que temos e que às tantas já nem sabemos se estamos ali porque queremos ou simplesmente porque nos habituámos a viver daquela forma.
Falando com amigos, apercebo-me da quantidade de gente que vive infeliz em casamentos e que não sabe o que fazer. Porque é mesmo muito difícil ficar uma vida inteira com uma pessoa. As pessoas crescem e evoluem e é normal que aos 50 anos já não sejamos exactamente a mesma pessoa que éramos quando nos apaixonámos e fizemos juras de amor aos 20 e tal. Talvez por isso são cada vez mais as pessoas que pura e simplesmente não casam, também as que não querem ter filhos. São cada vez mais as que procuram outras maneiras de viver o amor. Não é à toa que cada vez mais se fala de relações abertas, de poliamor, de casais que querem permanecer juntos, mas que precisam que essa relação seja diferente do que é. E finalmente são cada vez mais as pessoas que dizem chega! e se divorciam.
Infelizmente são, parece-me, também muitas aquelas que se deixam ficar na infelicidade, como se o casamento fosse um buraco do qual não conseguem sair. Por causa dos filhos. Por causa da estabilidade. Por causa das memórias. Por causa do compromisso. Por causa de um sonho por cumprir. Por causa de dinheiro. Por causa dos outros. Por causa do medo. Por medo da solidão e da velhice. Por não terem a certeza que sozinhos ficarão melhor. Cada pessoa tem as suas razões, e são todas válidas. Mas quão triste será viver nesta espécie de beco sem saída?
Não tenho respostas nem conselhos. Só perguntas. E, ainda que não tenha adorado, ler um livro que me deixa tantas perguntas nunca é tempo perdido.
A este propósito:
@Quino
O que é que isto tudo tem a ver com "purgatório", que é o tema desta semana no largo? Ah, essa também é uma boa pergunta. Talvez encontrem respostas mais úteis aqui:
Os meus colegas mais novos acham que eu sou uma pessoa estranha porque tenho sempre papel e caneta. Quando conversamos e lhes conto que quando comecei a trabalhar não tinha internet, olham-me como se eu fosse um bicho raro. Como é que sabiam o que estava a acontecer?, perguntam-me. Na maior parte das vezes, se não fosse uma coisa mesmo muito importante, não sabíamos. Só mais tarde. Horas mais tarde, dias mais tarde. Mas para nós era normal. Eles não entendem. Tenho que lembrá-los que cresci sem telemóvel. Mais ainda: a minha primeira televisão era a preto e branco e só tinha um canal. E, depois, já era a cores mas só tinha dois canais. Não tinha comando. Tínhamos que levantar-nos do sofá para mudar de canal. Ah ah ah ah ah ah. Sou uma pessoa que venho de um tempo distante, para eles é como se fosse da pré-história. É impossível explicar-lhes como era viver num mundo onde não se podia fazer pausa nem voltar atrás na box para ver o que perdemos. Onde não controlávamos o que víamos, éramos meros receptores. As notícias às 20:00, meia hora depois, a novela brasileira. Os desenhos-animados logo de manhã ou à hora do lanche. A teleculinária antes do almoço. Víamos muita coisa que até não nos interessava assim tanto, mas era o que estava a dar. Ao fim de semana havia os documentários dos animais, o basquetebol da NBA, a fórmula 1. Os programas do Júlio Isidro. O Clube Amigos Disney. Os filmes nas matinés. As séries de ficção científica. E claro que víamos todos os reclames (há quanto tempo não dizia esta palavra?). Naquele tempo, a pasta medicinal Couto andava na boca de toda a gente. Escrevíamos com Bic laranja para escrita fina e Bic Cristal para escrita normal. No natal vinha o coelhinho do chocolate Regina e as Bombokas - “só há uma, é para mim!”. No verão era um Cornetto para mim, um Cornetto para ti, no inverno bebíamos Brasa, a bebida que aquece o coração. Dizíamos bom dia com Mokambo e íamos dormir com o Vitinho. Tenho a cabeça cheia de frases dos anúncios. Posso não me lembrar do que preciso comprar no supermercado, mas, bastam pequenas coisas para, do nada, desatar a cantar, sem me enganar, os jingles da minha infância. Como “É Boca Doce é bom, é bom, é, diz o avô e diz o bebééééé” Ou “Um Bongo, um Bongo, o bom sabor da selva, em cada pacotinho uma festa de oito frutos”. Ou “Aquela máquina!”. Ou “Pa-pa a pa-pa, pa-pa a pa-pa, Cérelac”.
Por isso, quanto a vocês não sei, mas a mim se me falam em planta, só consigo pensar na margarina. Nunca - nunca! - comi pão com Planta, mas isso não fará de mim menos “lambona”.
Outras plantas que crescem neste largo:
Dead Combo, Lisboa Mulata
Ficar deitada ao teu lado. Ficarmos deitados um ao lado do outro. A olharmo-nos. A abraçarmo-nos. A conversarmos. A rirmos. Ficar deitada ao teu lado. Ou em cima. Ou em baixo. Estar contigo em qualquer posição, em qualquer lugar, a qualquer hora. Cheirar-te. Deixar que o teu cheiro se entranhe na minha pele. Descobrir-te. Cada milímetro de ti. Beijar-te. Ficar só a sentir o calor do teu corpo, a tua respiração tranquila, encostar a minha cabeça levemente no teu peito enquanto dormes. Passear contigo. Ver como te movimentas seguro pela rua. Como me estendes a mão. Vamos? Ouvir a tua voz. Ouvir-te em todas as línguas. Ouvir-te sobre todos os assuntos. Por acaso sabes como adoro ouvir-te? Desde aquele dia de chuva em que fomos jantar num restaurante quase vazio no Bairro Alto e eu, a comer pataniscas e arroz de feijão, só pensava onde é que tu tinhas andado durante este tempo todo e não conseguia parar de sorrir. Ficam a doer-me os músculos da cara de tanto sorrir quando estou contigo. Contigo, transformo-me num cliché ambulante. Passear de mãos dadas. Ficar abraçados a ver o mar. Partilhar a sobremesa. Beijarmo-nos como adolescentes no meio da rua. Ouvir músicas lamechas. Encontrar significados profundos em frases pirosas do instagram. Mandar mensagens com corações. Chorar de saudades. Esperar por ti, com borboletas na barriga, na porta das chegadas do aeroporto. O melhor lugar-comum é saber que existe um lugar onde nos encontramos e somos felizes, no matter what. Os nossos braços, o nosso abraço. O nosso lugar comum.
Mural do Beijo, de Joan Fontcuberta, em Barcelona
Outros lugares-comuns do nosso largo: