O avô era uma personagem do García Márquez. Em toda a sua vida de 94 anos deve ter dito meia dúzia de frases e quase todas sem grande importância. Ninguém sabia exactamente o que é que ele achava da vida, com que sonhava, o que lhe passava pela cabeça durante as horas e horas que passava encostado à parede, perto dos correios, do lado onde batia o sol se fosse inverno, do lado da sombra se fosse verão. Quando eu nasci era albardeiro, tinha uma oficina escura, cheia de palha e serrapilheira para fazer enormes albardas e molins que depois vendia, quase sempre aos ciganos, que eram os poucos que ainda tinham cavalos e burros por aqueles lados. Depois, com o aumento da idade e a diminuição da procura, tornou-se artesão, o que era muito mais chique. Fazia albardas e molins mas em miniatura, enfeitados de lãs coloridas, era procurado por lojas e fotografado para os jornais. Isto até as articulações dos dedos incharem desmesuradamente e o trabalho se tornar demasiado penoso. Mesmo quando já não trabalhava, o avô acordava cedo. Ouvia do meu quarto o despertador que tocava às sete da manhã e ele a levantar-se, os passos pelo corredor até chegar à nossa porta. Meninas, está na hora de acordar. E enquanto nós nos despachávamos o avô ia comprar papossecos e punha a mesa do pequeno-almoço. Era sempre assim, todos os dias. De manhã comia de pé e a refeição era acompanhada pelo batuque, uma colher que saltitava pelas chávenas, os frascos da tofina e do mokambo, o açucareiro e a manteigueira. Às vezes também assobiava ou tamborilava com os dedos na mesa. É que o avô tocava na banda desde miúdo. Foi o homem do bombo e, quando o bombo se tornou muito pesado, mudou para os pratos. Desfilava pelas ruas atrás da procissão com a farda bordeaux e um passo quase militar, era ele que marcava o ritmo das marchas no 25 de Abril e no 5 de Março, o feriado municipal. No inverno, quando tínhamos que sair de casa ainda de noite para ir para a escola, o avô acompanhava-nos até meio do caminho. Ficava a ver-nos da esquina. Mas não dizia nada. Ia à sua vida, com o boné na cabeça, encostava-se a uma parede ao sol ou à sombra, ia a casa almoçar, voltava para o muro, ia a casa lanchar, voltava para a rua, vinha jantar, tratava do lixo, que era sua responsabilidade, e já não saía mais – a não ser que fosse dia de ensaio da banda. Deitava-se cedo com um boa noite sumido. Cheirava a after-shave Denim e gostava de açorda. Ia a muitos funerais e emagreceu muito nos últimos anos. O “avô velhinho”, como lhe chamavam os mais pequenitos da família, morreu poucos dias antes do natal. Foi o último dos avós a deixar-nos. Tenha pena. E tenho medo. Apesar de adorar todos meus avós (e eram muitos, muitos mais do que as pessoas normalmente têm), tenho a certeza que as próximas mortes serão muito mais dolorosas. E isso é verdadeiramente assustador.
Estava tudo combinado. No dia da amniocintese, o meu homem não foi trabalhar para me poder acompanhar ao hospital e depois ficar em casa a dar-me miminhos. E,para evitar esforços e contratempos, o puto ia ficar em casa dos avós. Estava tudo combinado menos a festa de natal. Pela primeira vez, o nosso rebento ia subir ao palco. Ainda fiz a conversa à médica, à espera de uma aprovação, mas ela nem pestanejou. O pai que leve a câmara de filmar, propôs. Assim, enquanto a família aplaudia, entusiasmada, eu fiquei deitada, no meu quarto com vista para o estádio da luz. Parece que o miúdo estava super-contente com o seu fato de sino e que passou mais tempo a acenar para a plateia do que a cantar a música de natal. Um sucesso, portanto. Quando lhe liguei, depois do jantar, para dar boa-noite, contou-me tudo. Sabes como foi? Eu tinha uma roupa feita com um saco de plástico e era um sininho, e o pai e a avó e o avô foram me ver. As palavras atingiram-me com uma violência que eu não esperava. Prometi para mim mesma: não vou deixar que isto volte a acontecer, não vou deixar que isto volte a acontecer. E, no entanto, poderei eu garantir que vou estar sempre lá, nas festas, nos jogos, nas primeiras vezes, nas vezes que forem importantes?
Precisava de um livro. Procurei na estante, revolvi as caixas que ainda estavam fechadas. Voltei a procurar na estante. E a revolver as caixas. Quase desesperei. Haveria mais caixas com livros no outro quarto? Sinto-me perdida na minha própria casa. Tenho que ir ao Ikea comprar prateleiras e arrumar o escritório de uma vez por todas. Está decidido. Depois do Natal, bem, o mais certo é que seja depois do ano novo, mas está decidido, logo que tenha tempo vou comprar prateleiras. Posso não saber onde estão os sapatos mas não conseguir encontrar o principezinho é um pouco demais.
Ainda não temos televisão por cabo. Dos outros canais, supostamente abertos, a TVI não dá sinais de vida e os outros três mal se vêem, está o telejornal todo chuvoso, as novelas às ondinhas, ora a cores ora a preto e branco. Assim sendo, há uma semana que não vejo de televisão e, por incrível que pareça, ainda não estou a ressacar, não tenho tremores nem delírios. Acho que poderia viver assim, a deitar-me às onze sem ter visto a anatomia de grey nem o serviço de urgência nem os desaparecidos nem a outra que sonha com crimes. Acho que poderia viver sem o canal panda a debitar anúncios a brinquedos, sem os "acelaracers" depois do jantar, sem futebol e sem o emocionante campeonato de snooker do eurosport. Será que consigo convencer os meus companheiros de casa?
Deitei fora dossiers de fotocópias do tempo da faculdade. Sapatos que não usava há uns oito anos. Loiça que tinha trazido de casa da minha avó e nunca chegou à mesa. Bugigangas acumuladas em gavetas, pode sempre servir para alguma coisa, pensamos, e depois nunca serviu para nada. Uma pasta cheia de folhas rabiscadas pelo meu filho quando tinha dois anos. Deitei fora, sem mágoa. Sacudi o pó ao passado e prossegui, confiante, para a casa nova. Não fossem as dores nas costas e o nariz a pingar pelas alergias e prometia repetir a experiência pelo menos a cada dez anos.