No ano passado, num desses encontros de família por alturas do Natal, uma parenta afastada explicou-me como tinha tido muito cuidado a escolher os nomes das filhas, pois um nome não é só um nome, dizia-me, há nomes que têm energias negativas, há nomes que não combinam com as pessoas, tem que se ter em conta todo o contexto do momento em que os bebés nascem, como estão os astros e essas coisas, não podia escolher-se ao acaso e, para não cometer nenhum erro, ela tinha até consultado um especialista. Perante tamanha dissertação eu devo ter feito um ar daqueles de sim, sim, deves ser pouco maluquinha, deves, e a minha parenta sentiu-se ofendida, lançou-me um olhar daqueles de como é que há gente tão ignorante? e tratou de me explicar que isto é ciência, que os chineses estudam estas coisas há milhares de anos e quem somos nós para duvidar. Bom, como era Natal e assim como assim eu só devo voltar a ver esta parenta lá para a Páscoa de 2014, achei melhor dizer que sim, que tinha toda a razão, comi mais uns aperitivos e perguntei-lhe se já tinha provado as filhoses. Passou. Mas sempre que está para nascer um bebé e se tem de escolher um nome o assunto volta à baila. Há quem escolha os nomes da família ou de alguém que lhe é próximo. Há quem se recuse a chamar Amélia à filha apenas porque, quando era mais novo, conheceu uma Amélia que era insuportável. Há quem espere para ver a cara do rebento e só então decidir. Mas a questão não está resolvida: terá o nome influência na nossa vida? Será que eu seria uma pessoa diferente se me chamasse Ana Rute ou Patrícia como, rezam as crónicas, chegou a ser considerado lá em casa? Será que teria mais sorte? Seria mais feliz? É preciso dizer que eu não sou totalmente ingénua. Sei que um nome não é só um nome. Um nome traz consigo uma série de significados sociais e diz muito sobre aquilo que as pessoas são, pensam que são ou querem ser. Não é a mesma coisa dar ao nosso filho um nome como Domingos ou chamar-lhe Alfredo. Não é a mesma coisa escolher Francisca ou Vanessa. Se eu sou da esquerda cool posso chamar-lhe Alice. Se sou chique acho que Soraia é piroso. Se sou muito beta gosto de nomes como Caetana. Mas isto é agora. Quando era miúda quase não havia Afonsos nem Marias (simplesmente Marias) mas havia muitas Carlas, Helenas, Ricardos e Filipes. Daqui a uns anos será outra coisa totalmente diferente. Um dia destes ainda voltamos a gostar de Augusto e Ana, vai haver praí uma epidemia de Joaquins e de Celestes, aposto. É por modas. Mas uma coisa é a gente perceber isto, outra, completamente diferente, é achar que a felicidade de uma pessoa depende do nome que os pais escolheram, sabe-se lá como, por compromisso com a madrinha, por amor a um avô velhinho ou por paixão por um cantor ou futebolista na berra. Os chineses que me perdoem, a minha parenta que não me ouça mas eu é que não chamava Cristiano ou Ronaldo ou Maradona ou lá o que fosse ao meu filho nem que houvesse vinte especialistas a dizerem-me que esse nome é que era. Talvez por isso é que uns são milionários e nós por cá é o que se vê.
- Estás parvo? Ainda não são sete da manhã. Volta já para a tua cama que é hora de dormir. Ainda é de noite. - Estás a mentir, mãe, não vês que o sol já nasceu? Já é dia.
(ou então quando muda para a hora de verão e às nove da noite está um sol desgraçado e quem é que o convence que são horas de deitar?)
Havia, em cima de uma das cómodas, uma fotografia do casamento da minha avó. Lá estava ela, magra, direita, saltos altos, o cabelo negro a cair-lhe nos ombros. Nunca a conheci assim. Para a mim a minha avó era baixa, cada vez mais baixa à medida que o tempo passava, baixa, redonda, sem cintura, o cabelo cinzento muito ralo. Uma bata por cima da saia e da blusa. Os dedos dos pés todos encavalitados. A coluna dorida, entortada por causa das horas passadas no tanque ou debruçada sobre as costuras. Muita gente dizia-me que eu era parecida com a minha avó. Nos olhos, no riso, nas covas da cara, na alegria. Nada me parece mais estranho. Não me lembro da minha avó alegre. Havia momentos em que estava feliz e chorava, porque chorava sempre quando estava feliz. Mas não era uma pessoa alegre. A minha avó, que antes de ser avó era mãe, abdicou da sua vida e da sua casa para que a sua filha pudesse ter uma vida o mais normal possível. Morava connosco e era ela que tomava conta da nossa casa e que cuidava de nós. Era (como me envergonho de o dizer) uma espécie de nossa criada. Com a diferença que nos amava demais e que era a nossa avó. Uma avó tão especial, tão importante, tão única que nunca a tratávamos pelo seu nome, Celeste. Havia a avó Helena, a Vovó Ana, a Ia. Mas a nossa avó era simplesmente avó e nunca se confundia com nenhuma das outras. Quando eramos pequenas era ela que acordava às três da manhã para nos dar o biberon ou para nos embalar. Era ela que fazia as compras, que lavava a roupa e a estendia na corda, que decidia a comida, que cozinhava, que nos deliciava ao almoço e ao jantar com pratos e sabores que tanta saudade me deixaram, e que depois lavava a loiça. Como uma criada, a cozinha era o seu mundo. Era lá que a encontrávamos sentada na sua cadeira de braços. Guardava a carteira na gaveta nos panos da loiça. E o fondue, que estava em cima do balcão e nunca foi usado, estava cheio de papelinhos escritos com a sua letra hieroglífica com receitas de arroz de tamboril e coelho à caçador que tirava dos programas de culinária da televisão. A minha avó deixou a escola a meio da segunda classe, mal sabia escrever mas quando eu comecei a trabalhar lia, todos os dias, os textos que eu escrevia, mesmo que falassem de espectáculos de dança contemporânea com bailarinos de pila à mostra e ela não percebesse quase nada do que aquilo queria dizer. A minha avó, a quem eu às vezes punha os rolos na cabeça, era um divertimento para nós embora o penteado não durasse mais do que umas horas, nunca se sentava à mesa para comer connosco. Como uma criada. Era preciso arrastá-la para a mesa no Natal. Mas emocionava-se quando lhe cantávamos os parabéns. E gostava de beijinhos e miminhos. Raramente discutia e quando discutia nunca gritava. Encolhia-se num canto e chorava as mágoas calada. Agora que penso nisso, tenho a sensação que viveu a vida toda subjugada. Ao marido, a quem devia respeitar e aturar as bebedeiras. À filha a quem serviu sempre, o amor incondicional é isto, para que ela quase não desse pela falta do braço que não tinha. Ao meu pai a quem nem se atrevia a responder. Às netas, crianças caprichosas para quem fazia batatas fritas. E descascava-me a fruta mesmo quando eu já não tinha idade para isso. E quando ao domingo à noite nos metíamos no expresso para Lisboa ela punha sempre qualquer coisa mais dentro do saco. Uns chocolates, umas pupias, um envelope com umas notas para irmos lanchar. Como uma criada, a minha avó aturava-nos a todos mas nunca ninguém lhe perguntava o que ela queria ou se estava bem ou se queria ir passear connosco. À medida que cresci fui tomando consciência de como eramos todos tão injustos com ela. Uma criança não nota mas depois começaram a surgir perguntas. Porque é que a avó nunca vem de férias connosco? Porque é que avó usa a casa-de-banho do quintal? Mas era demasiado tarde para mudar o que sempre foi assim. Ou eu também nunca tive coragem para aprofundar muito a questão. Todas as famílias têm os seus esqueletos. Os seus tabus. Evitam-se os confrontos. É mais fácil assim. Nunca tive coragem. Nem mesmo quando a minha avó morreu. Tantas vezes a tinhamos ouvido dizer que nesse dia não ia querer lá nem padre nem flores. Nem uma, dizia, garantindo que se alguém a desobedesse ela viria de onde estivesse para nos atormentar. E, no entanto, desobedecemos-lhe. O que iriam os outros dizer, então, não iamos pôr aqui uma flor? E lá veio o padre, ainda por cima um padre novo na terra, nunca tinha sequer visto a minha avó e pôs-se a dizer que nos despedíamos desta nossa irmã mas que o senhor a receberia bem. Até hoje acho que devia ter dito qualquer coisa. Em qualquer momento. Nem que fosse só desculpa, avó.
Hoje, quando estava sentada no meu cabeleireiro fashion no Chiado, com o Jorge a escortinhar-me o cabelo, dei por mim a pensar: o que é que a Sidónia acharia disto? A Sidónia (só o nome é todo um programa) era a cabeleireira da minha mãe e foi também a minha primeira cabeleireira. Tinha um pequeno salão com cheiro a laca onde só ela trabalhava e por isso nunca estavam lá mais do que três pessoas ao mesmo tempo. Nós chegávamos e aquilo era nosso. Havia uma almofada enorme para as crianças se sentarem quando lavavam o cabelo. Havia daqueles secadores de pé, que faziam muito barulho, onde as senhoras enfiavam a cabeça cheia de rolos. E toda a gente usava rolos naquele tempo. Havia um mesa pequena cheia de revistas, sobretudo a crónica feminina com as suas fotonovelas românticas. A Sidónia, uma mulher magra, hirta, de troço enrolado na nuca, não era dada a grandes simpatias nem primava pela imaginação quanto ao design de cabelos. Estávamos ainda a sair dos anos 70 numa terreola do Alentejo profundo, ninguém se lembraria de entrar por ali a pedir madeixas azuis ou cabelos em pé. Ela devia saber fazer uns três ou quatro penteados diferentes e isso bastava para satisfazer as clientes com hora marcada todas as semanas. Quando chegava a minha vez a Sidónia começava logo a fazer cara de má. Era preciso que eu ficasse quieta. O meu cabelo sempre foi liso, liso, liso, tão liso que não dá para pôr um gancho ou segurar um elástico, e, como não se usava ou ela não saberia fazer um escadeado, o meu penteado exigia mão firme para que ficasse tudo direitinho à volta e ainda mais na malfadada franja. Eu sentia a tesoura rente à testa, a Sidónia a franzir os olhos, a morder a língua, a controlar o tamanho pelas sobrancelhas, a cortar sem pressas, não mexe, não respira, e, apesar de todo o cuidado, o mais provável é que aquilo acabasse por entortar mais para um lado ou mais para o outro. Responsável durante anos pela minha franja à Beatriz Costa, o que diria a Sidónia se me visse hoje no meu cabeleireiro fashion, lounge music no ar, cadeiras que vibram e o Jorge a lançar a tesoura de qualquer maneira, a cortar bocados de cabelo aparentemente sem nexo, a escortinhar (escortinhar é o termo certo) o meu cabelo para que ele ficasse propositadamente desacertado. Onde é que já se viu isto, pagar um balúrdio e ficar com o cabelo com pontas. Realmente.
Não quero nem saber se foi a amizade ou o coração mole de mãe a falar mais alto. Se uma jornalista respeitada e multi-premiada diz numa radio nacional que o meu filho é lindo então isso passa a ser uma verdade oficial, não é? E aqui impunha-se um link, se eu conseguisse. Assim, resta-me dizer que a Sónia é a responsável pela Viagem da Cegonha, todos os dias, na Antena 1, por volta das 17.45. Diz que hoje falou uma gaja um bocado rouca. Mas que tem um filho lindo. Quem quiser saber mais é ir ao site e ouvir o programa.
Já era tarde, ele tinha um Fiat Uno a cair aos pedaços e ia dar-me boleia para casa. No leitor de cassetes estava Legião Urbana. Então também gostas de música brasileira? Foi assim que tudo começou.
O meu quotidiano está cheio de pequenos gestos. Emparelhar as meias, dobrar as cuecas, sacudir as migalhas da torradeira, mudar o saco do aspirador, fazer o café, ferver a água para os biberões, esterilizar os biberões, arrumar as gavetas, arrumar os armários, separar os jornais para reciclar, carregar as pilhas da máquina fotográfica, estender a roupa lá fora, mudar a roupa para dentro por causa da chuva, deitar fora os remédios que estão fora do prazo, fechar o gel de banho, fechar o champô. O meu quotidiano está cheio de pequenos gestos. Pequenos nadas. Quase passam despercebidos. O meu homem julga que eu passo o dia recostada no sofá a ver televisão. Surpreende-se quando está um dia inteiro comigo em casa: mas tu não te sentas, mulher?, o que andas a fazer? Tanta coisa. Apanhar os carrinhos espalhados pela casa, escolher a roupa do miúdo, pôr o bebé a arrotar, bater as almofadas, mudar as toalhas da casa-de-banho, endireitar as molduras, limpar a bancada, encher o açucareiro, arejar os quartos, organizar os álbuns de fotografias, aspirar atrás do guarda-fato, arrumar os papéis, deitar fora as facturas de 1999, organizar os livros na estante, guardar os cobertores quando chega o verão, limpar o aquecedor quando começa ficar a frio. Picuinhices? Para dizer a verdade estas tarefas parecem menores. Não podem sequer entrar na nossa divisão de tarefas, do género tu lavas a loiça e eu trato das minhoquices. Não iria funcionar. Mas.. e se eu não as fizesse? Se não verificasse sempre se há rolos extra de papel higiénico na casa-de-banho? Se não lavasse os casacos que estão há meses no bengaleiro? Se não fizesse a lista de compras? Se não me lembrasse de comprar o detergente? Se não trocasse os panos da loiça quando já começam a cheirar mal? Se não deitasse fora o pão bolorento? Se não tirasse das gavetas a roupa que já não serve aos miúdos? Se não lhes arranjasse roupa nova para eles vestirem? O meu quotidiano está cheio de pequenos gestos. Coisas de nada. Mas são esses nadas que mantêm a engrenagem a funcionar. E fazem com que a [vossa] vida pareça tão fácil.
Foi muito triste o que se passou hoje no parlamento. Não fosse já suficiente mau o facto de haver disciplina de voto no PS, ainda por cima, depois do chumbo inevitável, aparece uma ridícula declaração da bancada socialista a tentar controlar os danos. Ah e tal nós até achamos que sim mas só se votarem em nós outra vez no próximo ano é que poderão (quem sabe?) descobrir se nós vamos (ou não...) acabar com a discriminação. Mas o que é isto? Acham que nós temos cara de otários? E que confiança nos merece esta cambada de deputados que vota assumidamente contra as suas convicções apenas para não comprometer resultados eleitorais futuros? Não lhes ensinaram que não se pode agradar a gregos e troianos? Que governar é isso mesmo: tomar decisões e assumir responsabilidades? Que isto assim é uma palhaçada? Até onde pode ir a hipocrisia do senhor engenheiro? E, pior do que isso, até onde pode ir o desespero deste povo se voltar a eleger esta gente. Este é um daqueles dias em que tenho muita vergonha. Do país em que vivo. Dos governantes que temos. E de mim mesma - pensar que eu um dia até já votei nestes gajos, com cartãozinho da juventude e tudo.
Esta era a creche que nós queríamos. Conhecêmo-la bem pois foi lá que o mais velho também andou (embora, sortudo, não tenha entrado tão pequenino, só lá chegou com um ano meio, teve colo de avó até essa altura, privilégios de ser o primeiro). O espaço é agradável, tudo muito limpo e organizado, a equipa parece-me competente, as raparigas são amorosas. Passámos lá a semana, eu e o bebé, para que ele as conhecesse e para que elas o percebessem. Gostei do que vi e do que senti naquela sala. Os miúdos parecem felizes. Há colo e miminhos. E, ainda por cima, a escolinha fica mesmo ao lado da nossa casa. Haverá melhor do que isto? Esta era a creche que nós queríamos mas, não sei porquê, hoje, quando me disseram que me podia vir embora, para experimentar deixá-lo lá "sozinho" por um bocado, fiquei assim com o coração apertado. Cá estou, andando pela casa, feita barata tonta, olhando para o relógio a cada cinco minutos, verificando o telefone não vá ele ter tocado e eu não tenha ouvido. Ele está bem, eu sei que ele está bem. E no entanto...