De vez em quando acontece. Um filme, um livro, um espectáculo, uma música que é como um soco. Argh. Abanamos a cabeça. Abanamos as ideias. De vez em quando acontece. E é um privilégio poder dizer eu hoje levei um murro de Cristovão Tezza e do seu 'O Filho Eterno', a história de um pai que tem um filho com Síndrome de Down. Só isso. Nas mãos erradas era lamechice certa. Mas não nas mãos deste brasileiro, que é pai de Felipe, 28 anos, mongolóide, como se dizia na altura em que nasceu. Um relato cru - cruel mesmo. Sem lagriminhas mas com um nó que se vai enrolando na garganta, no peito, no estomago. Que murro esse. Custa até levantar. Murro bom, ein, Cristovão? Valeu.
"— Hoje tem jogo, filho!
O menino sorri, exultando:
— Hoje tem?!
— Tem! Atlético e Fluminense!
— Então vamos chamar o Christian!
O Christian é o vizinho atleticano — em todo jogo, monta-se na casa uma arquibancada de fanáticos.
— Sim, ele também vem.
— Isso! Vamos ganhar! Quatro a zero! — e ele mostra a mão espalmada, olha para os dedos, ri e acrescenta: — Opa! Errei. Cinco a zero!
— Vai ser um jogo muito difícil — o pai pondera, torcedor pessimista. — Que tal dois a um?
O menino pensa. Ergue a mão novamente, agora com três dedos.
— Três a zero, só. Que tal?
— Tudo bem. Mas vai ser duro. Você está preparado?
— Estou! Eu sou forte! — Ele ergue o braço, punho fechado: — Nós vamos conseguir!
— Vamos ver se a gente ganha.
O menino faz que sim, e completa, braço erguido, risada solta:
— Eles vão ver o que é bom pra tosse!
É uma das primeiras metáforas de sua vida, copiada de seu pai, e o pai ri também. Mas, para que a imagem não reste arbitrária demais, o menino dá três tossidinhas marotas.
Bandeira rubro-negra devidamente desfraldada na janela, guerreiros de brincadeira, vão enfim para a frente da televisão — o jogo começa mais uma vez. Nenhum dos dois tem a mínima idéia de como vai acabar, e isso é muito bom."