Por estes dias anda toda a gente a fazer listas. De filmes, de livros, de músicas, de espectáculos. Eu adoro listas. Mas este ano isto está difícil. Não li o Roth nem o Coetzee nem o Auster. Não ouvi os Last Shadow Puppets. Não vi o Leonard Cohen. Não vi o Hunger nem o Querido Mês de Agosto. Terei ido ao teatro? (glup, até engulo em seco de vergonha) Sei que vi uns filmes de que gostei, a grande maioria em dvd, como o Juno ou o There Will Be Blood, foram mais com certeza mas agora não me ocorre. Sei que li uns livros, muitas biografias e algumas ficções, quase todos eles com sotaque brasileiro mas, embora tenha gostado do Cristovão Tezza e me tenha surpreendido com o humor da Adriana Calcanhotto, não me parece que daqui a uns anos me vá recordar com precisão dos livros lidos em 2008. A bem dizer não me lembro de este ano ter feito grande coisa na minha vida para além de trabalhar, dedicar-me à família (e já foi bom, nem toda a gente se pode dar ao luxo de dizer que pariu mais uma criancinha este ano, pois não?) e, ah, claro, passar horas infidáveis na internet. A internet salvou-me durante os cinco meses que passei de licença de maternidade (mas como, como é que eu tinha sobrevivido da outra vez?) permitindo manter-me ligada ao mundo, vendo cada vez menos (e menos e menos e menos) televisão, procurando mil e uma coisas no youtube, navegando de blogue em blogue até já não conseguir encontrar o caminho de regresso, e, até, imagine-se, descobrir, sozinha, sem a ajuda das recensões do expresso nem a indicação de amigos, um novo autor fétiche. Chama-se Antonio Prata, é brasileiro (para não variar) e, para já, só o conheço do blogue mas estou com muita vontade de ler os seus livros. Foi assim 2008. Completamente desligada mas ao mesmo tempo ligadérrima.
Eu vinha aqui escrever sobre a alegria do natal, de como eu gosto daquela confusão, do barulho da batedeira dos bolos, dos cheiros doces e salgados na cozinha, da algazarra dos miúdos, do sol a entrar pela janela e a aquecer-me os joelhos, da azáfama da minha irmã para ter tudo pronto, do tradicional bolo de maçã e nozes, de estarmos todos apertadinhos à mesa, de cantarmos juntos as músicas de natal e as que não são de natal, de a meio do jantar nos pormos a declamar poesias do antigamente, enfim, essas coisas. Mas acabo de reparar que o meu filho está outra vez vestido com o equipamento do sporting. Não despe esta roupa desde que desembrulhou o presente na noite de natal (sim, vestiu-se logo de verde e branco e dormiu equipado, com meias e tudo). O meu filho vestido há três dias à sporting numa família onde quase todos são benfiquistas. E nós ainda nos rimos. Querem mais espírito natalício do que este?
Aconteceu pouco depois de sair da auto-estrada. Os miúdos vinham a dormir, a Marisa Monte a cantar e eu a deliciar-me com os tons verdes e castanhos da terra do Alentejo. É a paisagem mais linda do mundo, pensei, é a minha paisagem. A minha casa. Estamos quase a chegar ao natal. E sem querer até carreguei um bocadinho mais no acelerador.
Na enfermaria onde estive após ter tido o meu segundo conheci uma mulher que chorava todas as noites. Ouviamo-la a fungar por trás da cortina. Diz que teve um parto horrível. Que foram muitas horas de sofrimento e que de repente estava tudo à volta dela a carregar-lhe na barriga e um médico com fórceps e a criança que não saía, uma aflição. No final ficou toda rasgada e dorida que mal se mexia e o bebé tinha ficado nos cuidados intensivos até ver se a demora e as amolgadelas na cabeça não lhe iriam deixar sequelas. Acabou de ter o filho e nem lhe podia pegar. Estava ali deitada e de três em três horas lá se arrastava até à outra ponta do hospital para ir amamentar o seu bebé e dar-lhe um bocadinho de colo até que as enfermeiras a expulsavam e lá vinha ela de olhos vermelhos morrer de inveja a olhar para mim e para as outras com os nossos rebentos.
Tenho uma amiga que passou horas, muitas horas, em trabalho de parto, completamente sozinha no corredor de uma maternidade. Não podia ter o seu companheiro com ela porque não tinha quarto. Não tinha quarto porque estava tudo cheio. E ali ficou a contorcer-se com dores, a vomitar para o chão, a gritar sem amparo, a senhora da limpeza a passar a esfregona por debaixo das suas pernas. De vez em quando, quando mudava o turno, alguém parecia interessar-se. Enfiavam uns dedos e iam-se embora. Horas nisto. Nenhuma explicação. Ninguém a quem recorrer. Agarrada à barriga. A doer.
Eu ouço isto e nem me posso queixar. Mas a verdade é que eu fui, voluntariamente, mais uma cliente desta fábrica nacional de parir bebés que são as maternidades públicas. Como tantas outras. Entramos ali e dão-nos logo um clíster e uma rapadela, sem pedir licença nem dar explicações, que ali nós somos utentes e baixamos a bola porque os doutores é que sabem e podem vir cá ver quantos dedos cabem as vezes que lhes apetece. Bata verde, catéter no braço, e agora ficas aí queitinha e deitadinha com o ctg a apertar-te a barriga. Se precisar de alguma coisa toque a campanhia que há de aparecer a auxiliar com cara de frete a perguntar o que é. Se quiser fazer xi-xi dão-lhe uma arrastadeira (porquê? as grávidas não se podem mexer e ir à casa-de-banho?). E ainda não chegámos à parte do parto propriamente dito. Onde os cortes são feitos por princípio, antes mesmo de se perceber se vai ser necessário. E só pode haver um acompanhante - e, portanto, se a mulher tem uma doula tem de prescindir do companheiro. E mesmo os pais não podem ficar depois do parto porque temos que ir umas horas para o recobro - podem ser duas horas ou seis horas, depende das vagas na enfermaria, e ali fica a mãe sozinha outra vez, agarrada ao seu recém-nascido, com as emoções aos pulos e ninguém para partilhar. (só eu mesmo que sou ideologicamente estúpida para me deixar levar duas vezes pela conversa de que os hospitais públicos é que são bons)
Li hoje no jornal Público que Portugal é o segundo país da Europa com mais cesarianas e que os hospitais deviam todos, mas sobretudo os particulares, fazer um esforço para diminuir o número de intervenções. Que esforço? Claro que aos senhores que mandam (e que são quase sempre senhores, o que pode ser parte da explicação mas não é a única) não ocorre que grande parte do problema se resolveria se as maternidades funcionassem como deve ser. Se não tratassem as mulheres como se fossem gado. Se tivessem o cuidado de preparar efectivamente as suas grávidas para o parto (e já agora uma preparaçãozita ao pessoal que lá trabalha também não seria má ideia). Porque enquanto houver histórias destas para contar é claro que haverá cada vez mais mulheres que, sempre que possível, vão recorrer aos hospitais particulares e chegar lá com a certeza absoluta que querem fazer uma cesariana porque não querem passar pelo que a amiga passou. E alguém as pode censurar?
O meu filho aprendeu a cantar o hino. Não sei com quem. Foi assim do nada. Anda pela casa de peito inchado a gritar pelos heróis do mar e gosta particularmente da parte do lutar e das armas, pois claro. Sabe aquilo de cor, sem fazer a mínima ideia do que é o esplendor de portugal ou porque é que esta é uma nação valente, e termina a canção sempre exactamente assim: (...) contra os canhões marchar, marchar a seguir bate palmas enquanto grita um huhuhu a seguir diz começa o jogo e desata a dar pontapés numa bola imaginária
A minha amiga Princesa das Estrelas puxou o assunto e agora fiquei assim, com as memórias à solta, a lembrar-me das noites que passámos juntas na Cornucópia. Espectáculos de três horas e a seguir as entrevistas. Nós já ensonadas a tentar fazer perguntas inteligentes ao Luís Miguel. Pior do que isso só os ensaios da Lúcia Sigalho. Começavam com horas de atraso e acabavam lá para as três da manhã, no armazém os pés ficavam gelados mas os espectáculos, belíssimos, aqueciam-nos a alma. Foram belos os tempos, apesar de tudo. Os palcos fervilhavam. Em cada edifício em ruínas se fazia teatro, uma performance, um happening, um concerto. E nós sempre lá caídas, fosse o que fosse, espectáculos alternativos, bailarinos em pelota, performers armados ao pingarelho, sessões de poesia, os artistas n'a capital, as secas no teatro nacional. Ninguém falhava. Ninguém ousaria (e agora quantos lá vão?). Era no tempo em que os subsídios às artes davam direito a manifestações e cartas de protesto (e agora quem sabe o que são, como funcionam e quem recebe os subsídios?). No tempo em que esperávamos ansiosas por novembro para saber o que seria a programação do ccb do ano seguinte (mas o ccb ainda tem programação sua ou já é tudo sala alugada?). Mudou a cultura, mudaram os jornais, mudámos nós. Se a mim não me apetece ir a um ensaio de um teatro qualquer o meu chefe até agradece pois que na verdade é coisa que não lhe interessa nada e entre a família da Jennifer Hudson e a doença da Fernanda já fica o jornal com cultura que baste. E os artistas onde andam? Taparam-lhes a boca ou foram todos para as novelas?
Está de chuva, o bebé tem uma bronquiolite e eu tenho uma pilha enorme de roupa para passar a ferro. E num dia assim dá-me um ataque de pirosísse aguda. Não sei porquê mas gosto do Elvis, dele mais do que da música. Da sua inocente juventude, do semi-sorriso matreiro, das ancas mexidas, dos olhos de carneiro mal-morto, dos gestos dramáticos mesmo quando, gordo e de fartas patilhas, era já a imagem da decadência. Aqui fica. Porque a vida não é só samba.
A coisa começou nem sei muito bem como. Um dia falou-me do Miguel "Guloso". Noutro dia era o João Moutinho. Uma noite, em frente da televisão, desatou aos gritos porque tinha visto o Aimar. Quem, meu filho? Nunca imaginei que ele fosse assim tão fanático da bola, afinal, estamos a falar de um puto de quatro anos que ainda não percebeu muito bem o que quer dizer "ser" de um clube e que fala com a mesma paixão do Benfica, do Trofense, da Académica e até do "Guima", diminutivo carinhoso com que se refere ao Vitória de Guimarães. Até que um dia, a completo despropósito, ele diz-me que tem de escrever a carta ao pai natal porque tem de pedir como prenda uma caderneta de cromos de futebol. Foi nessa altura que comecei a pensar que talvez isto dos cromos fosse mais importante do que eu tinha imaginado. Seja. Vamos lá perguntar no quiosque o que é que se passa. A alegria do miúdo quando recebeu os primeiros pacotinhos de cromos é algo indescritível. Aquele sorriso de espanto, a ansiedade a rasgar o papel, os olhos esbugalhados - olha o Dí Maria e o Tiago e o Maxi Pereira. Mais uma vez: quem, meu filho? Pois esta criança que parece que engoliu uma embalagem inteira de pilhas duracel (quem o conhece sabe que eu não estou a exagerar), que não pára quieto mais do que dois minutos, que corre e salta de manhã à noite que até às vezes desconfio que isto é hiperactividade (o pediatra ri-se mas eu ando tão estafada que já não acho muita graça), de repente, esta criança arranjou uma verdadeira entretenga: todos os dias, quando recebe a sua dose diária de cromos, fica quieto e calado durante pelo menos uma meia hora, compenetrado perante a seriedade do momento, a abrir os pacotes, a ver e rever os cromos todos, a procurar os números, a atrapalhar-se com aqueles dedos pequeninos até conseguir abrir os autocolantes (eu faço sozinho, mãe, eu faço) e colar todos os jogadores no sítio e, finalmente, a passar as páginas uma e outra vez. Quem é este, mãe? E este? E este? Obrigando-me a repetir até ele decorar aqueles nomes todos. O Tiago e o Pereirinha e o Luisão e o Liedson e o Lucho González. Quem? Com os cromos da bola tenho aprendido coisas fantásticas. Por exemplo, que o Quim é um craque. E que as brincadeiras mais simples são mesmo as melhores.
Os senhores do lixo estão em greve durante quatro dias porque não querem que os privados entrem nesta actividade. Esperem lá, acho que vi mal. Os senhores do lixo estão em greve durante quatro dias porque não querem que os privados entrem nesta actividade. O quê? Então os privados podem ter hospitais e escolas, podem construir casas e pontes, podem limpar escritórios e fabricar automóveis, os privados podem fazer segurança, ajudar bebés a nascer, ter estações de televisão, distribuir o gás, vender gasolina mas não podem... tratar do lixo? Este país é uma anedota. Uma anedota suja e a cheirar mal como os contentores que estão lá em baixo à saída do prédio.