Sei que algo de errado se passa quando me vou deitar e deixo a loiça por lavar, quando grito com o puto por coisas de nada, quando me saem palavrões da boca, quando fico prostrada em frente da televisão mesmo sem nada de jeito para ver, quando me custa sair de casa de manhã para ir trabalhar, quando queixar-me do trabalho não é queixar-me de tudo. Há fases assim. Em que a vida parece presa por um fio. Prestes a rebentar a qualquer momento. Nessas fases não me apetece escrever no blogue, não me encontram no messenger, não esperem pelos meus telefonemas. Não quero falar com ninguém. Encolho-me no meu casulo e espero que a onda passe por cima. Há de passar. Não é sempre assim? E depois eu volto e dou uma das minhas gargalhadas, prometo.
Eu andei sempre na escola pública. Tive bons colegas e maus colegas. Ricos e pobres. Limpos e sujos. Espertos e preguiçosos. Sou do tempo em que ainda havia a escola primária e o ciclo, em que havia furos e sempre que um professor faltava ficávamos por ali a deambular, em que os currículos não eram enriquecidos e não havia ninguém para me orientar o estudo. As coisas eram o que eram. Havia bons alunos e maus alunos e alunos médios. Havia os que já sabiam o que queriam ser quando fossem grandes, havia os que queriam ir para a universidade e os que se ficavam pelo caminho. Sem dramas. Havia chumbos e não havia cá recuperações nem programas especiais. Tive colegas que deixaram a escola no oitavo ano para se juntarem com o namorado, para terem filhos, para irem trabalhar numa oficina. Eu sou do tempo em que o balneário do ginásio tinha duche colectivo e quando as meninas estavam com o período pediam dispensa da ginástica ao professor porque não sabiam muito bem como resolver a coisa. Sou do tempo em que nas aulas de trabalhos manuais aprendíamos a fazer macramé e fada-do-lar (lembram-se?), em que fazíamos bonecos horrorosos em barro e chaveiros de madeira. Não tínhamos disciplinas com nomes pomposos mas aprendíamos a escrever à máquina e a redigir cartas comerciais. Os testes eram dados em stencil e, com sorte, nas aulas havia uns acetatos manhosos projectados no quadro. Fazíamos trabalhos de grupo, em cartolinas ou em folhas A4 escritas à mão - não havia internet nem copy-paste, era preciso ler livros e copiar letra a letra (e enquanto líamos e escrevíamos e passávamos a limpo e tudo isso, alguma coisa ia ficando na cabeça). Eu tive bons professores e maus professores. Péssimos e excelentes. Tive professores apaixonados, que não se limitavam a dar matéria, que não se limitavam à matéria. E tive professores que não faziam a mínima ideia do que estavam a ensinar (para terem uma ideia um dos meus professores de biologia é hoje, na mesma escola, professor de culinária). Tive professores que não sabiam domar as feras de doze anos, que eram gozados e aldrabados, que tinham alcunhas feias e que, se fosse hoje, teriam as aulas no youtube para serem criticados pelo país inteiro e quem sabe até com direito a processos disciplinares. Tive professores na faculdade que de doutores só tinham o nome, que se estavam a marimbar para nós, que não davam as aulas ou que só queriam que nós os ajudássemos a fazer investigação para as suas teses de doutoramento.
A minha escola tinha problemas, pois tinha, mas não foi nada disso que me fez ser pior pessoa ou mais burra ou mais inculta ou mais mal educada. Porque o mais importante da educação não vem da escola, vem de casa. O mais importante de tudo foi o que os meus pais me ensinaram. Uma ética que me fez ir sempre às aulas, que me coibia de cabular, que me fazia estudar sem ser obrigada (porque esse era o meu trabalho e porque ainda acreditávamos todos que o bom trabalho seria recompensado). Um brio que me fazia querer fazer as coisas bem feitas, ir para além da mediania, dar o máximo. Uma curiosidade que me fazia querer saber mais, não ficar só a a marrar para os testes mas gostar realmente de aprender. Sem isto, a escola até pode ser a melhor do mundo, ter milhares de magalhães e quadros interactivos, ter professores com a papelada toda em dia e currículos muito bonitos. Mas não adianta nada.
O Pedro (que um dia ainda me vai ensinar como é que eu agora punha aqui um link para o Delito de Opinião) passou-me uma corrente. Isto é uma estreia para a Gata. E é uma estreia em grande. Calhou-me logo o desafio mais fixe de todos. Pede-me ele para enumerar quinze programas ou séries de televisão inesquecíveis. Ora bem. Nunca vi Ficheiros Secretos nem Twin Peaks (nem um episódio que fosse). Não gosto da Buffy nem do Lost. Gosto dos Sopranos mas não tanto assim. Até vejo o Sexo e a Cidade, se não estiver a dar mais nada de jeito. Recordo com ternura o Perry Mason e o McGyver mas não diria que são inesquecíveis. A primeira lista, feita assim de rajada, no táxi para casa, tinha logo vinte nomes. Enquanto adormecia o pequenito lembrei-me de mais meia dúzia. Decidi excluir os desenhos animados, limitar-me às séries e deixar-me de peneiras (dá estilo dizer que se gosta de Reviver o Passado em Brideshead mas, sejamos honestos, eu devia ter uns sete ou oito anos e a única coisa de que verdadeiramente me lembro é que foi a primeira vez que vi um homem nu e era o Jeremy Irons).
O que sobra?
1. Uma Casa na Pradaria
Lamechice total no tempo em que ainda não havia morangos e a infância era uma coisa simples. Eu "era" a miúda irrequieta das sardas e tranças ruivas, claro.
2. Os Marretas
É preciso explicar?
3. Fama
Perneiras coloridas e fitas no cabelo, nos intervalos da escola a fingir que dançávamos como a Coco. Revelava-se a minha tendência para gostar dos maus rapazes: o meu preferido era o Leroy.
4. Verão Azul
Uma geração inteira a assobiar. A propósito de maus rapazes: o meu preferido era o Pancho.
5. A Ballada de Hill Street
Porque é simplesmente fabulosa.
6. Hitchcok apresenta
Dava às oito da noite na RTP2. Era preciso pedir por favor para atrasar o jantar e tinha que ir para a televisão do escritório porque na sala via-se o telejornal. Mas valia a pena.
7. Tudo em família
Meu querido Archie Bunker. Do melhor que já se fez em séries humorísticas, digo eu.
8. Modelo e Detective
Que só vi através do Agora Escolha. A ironia de Bruce Willis, outro mau rapaz irresistível.
9. Allô, Allô
Tão bom. O René, a Helga, os aviadores ingleses, o Herr Flick, o italiano, a velhota rabugenta, o cangalheiro, a Michele-I-shall-say-this-only-once e todas as outras fantásticas personagens.
10. Os Trintões
Pessoas normais com problemas normais. Adoro séries onde as casas se parecem com casas reais, desarrumadas, com armários cheios de comida e crianças que sujam tudo (e tantos anos mais tarde posso dizer que os trintões são mesmo assim como ali estão).
11. Poirot
Porque eu já tinha lido os livros (várias vezes) e o David Suchet é perfeito no papel do pequeno detective belga, com células cinzentas e muitas peneiras.
12. Serviço de Urgência
Cheguei atrasada e não vi quase nenhum episódio com o George Clooney mas, nos últimos anos, é a única série que, mal ou bem, tento acompanhar. Não gosto do Dr. House e sou bem capaz de ver (e chorar, quase sempre) com a Anatomia do Grey. Mas o Serviço de Urgência tem o Luka.
13. Friends
Ainda por cá não se sabia o que isto era quando uma amiga desatou a trazer cassetes de Londres e a impingir-nos os Friends. Um grande bem-haja, rapariga. Eu não sei se isto é da idade mas, por favor, não me venham dizer que aquela coisa de como conheci a tua mãe é melhor do que o Friends. É que não tem nada a ver. Uma reles imitação.
14. Seinfeld
Parece que deu na TVI às tantas da noite. Eu só o descobri na SIC Radical e tratei logo de recuperar o atraso, ver várias vezes os mesmos episódios e comprar os DVD. Já sei as piadas de cor e mesmo assim se o apanho num zapping não consigo mudar de canal.
15. Sete palmos de terra
Para algo completamente diferente. Da música à realização, passando pelo elenco, o genérico e o argumento, é tudo perfeito.
A verdade é esta: sou capaz de rever qualquer uma destas séries as vezes que forem necessárias (ou sempre que as apanhar na RTP Memória). E, vocês, trazem as pipocas e fazem-me companhia?
Acabei de ler uma reportagem no i sobre um casal que dormiu à porta de um centro comercial que ia ser inaugurado apenas para serem os primeiros a entrarem e que, depois de 14 horas à espera, ainda ficaram mais de duas horas a fazer compras. Ela, grávida de oito meses, dizia que não o tinha feito por causa da promoção nos portáteis. “Queríamos ver se conseguíamos superar mais esta prova. Não é fácil”, explicou. “Ser o primeiro…É lindo”, acrescentou o marido. É lindo e é assustador. Chamem-me snob à vontade. Mas achar que isto é uma coisa importante, um objectivo que tinham de cumprir, sei lá, uma tarefa pela qual se devam sentir orgulhosos (e quem sabe até tenham tirado fotografias e vão mostrá-las aos filhos daqui a uns anos, vejam, aqui foi o dia em que fomos os primeiros a entrar no Dolce Vita) parece-me mau demais. É como se em vez de vida estas pessoas tivessem um vazio. Mais valia que tivessem dito que estavam lá pelos computadores.
"No início todo o escritor sofre um bocado, é natural, pois você leva anos e anos trabalhando em cima de um livro, consegue um editor que sabe ler e que tem algum tempo e disposição para fazê-lo, aí o livro é publicado, chega à redacção do jornal e cai na mão de um pós-adolescente que já leu toda a literatura ocidental e ainda é especialista em cinema, música e artes plásticas, e esse pequeno gênio despacha seu livrinho em quinze profundas linhas no caderno de cultura do dia do lançamento."
in Os Lados do Círculo, de Amílcar Bettega
(um livro fantástico, já agora)