Quando caiu o primeiro dente ele estava a passar o fim-de-semana em casa da avó, o que foi uma sorte. Uma sorte para mim que sou mulher forte capaz de agarrar os piolhos na hora das vacinas, de os deixar imóveis enquanto lhes tiram sangue, que os acompanho sem lágrimas nem tremores a salas de operações mas sou incapaz de arrancar um dente, nem os meus eu arrancava, deus-ma-livre, esperava que caíssem, pedia a alguém que lhes desse o golpe final e mesmo assim agoniava-me o sabor do sangue a espalhar-se pela língua, por isso, sim, foi uma sorte para mim que andava há dias a dizer ai, antónio, não mexas aí, tira a mão da boca, querido, que ele há de cair quando tiver que ser. Teve que ser naquele dia, em casa da avó, e foi uma sorte também para o miúdo que ouviu a história da fada dos dentes contada como deve ser e garante a pés juntos que nessa noite, quando se levantou para ir à casa de banho, viu uma coisa a voar que "só podia" ser a dita fada que, generosa como só as avós, lhe deixou debaixo da almofada uma moeda e uma nota, imagine-se. No dia seguinte, mostrou-nos o buraco na boca com orgulho, nós demos-lhe muitos beijinhos, tão crescido que estás e nunca mais se falou no assunto.
Até ao dia em que o dente do lado, desamparado, coitado, desatou a abanar, a abanar cada vez mais, e o puto entusiasmadíssimo a remoer lá com a língua, a pôr-se ao espelho para ver se estava quase, ai, antónio, não mexas aí, tira a mão da boca querido, que ele há de cair quando tiver que ser. E foi ontem. Cheguei à escola e ele veio para mim de boca aberta e eu dei-lhe muitos beijinhos ao mesmo tempo que fiz aquele ar aliviado de quem já se tinha escapado à coisa, viemos para casa, que crescido que estás e pronto. Mas, hoje, quando estávamos de saída da escola, já com o casaco na mão, olho para o painel dos recados e lá, no sítio dele, por baixo do nome, estava um lenço de papel enrolado, o que é isto?, e no meio, bem guardadinho, uma pedrinha minúscula, o meu dente!, grita ele, então foi por isso que a fada não veio porque não sabia que o meu dente tinha ficado aqui.
Sorriso amarelo.
Eu não tenho paciência para a fada dos dentes. Eu não sou uma gaja dada à ficção. Eu gosto de ver documentários e de ler biografias, gosto de ver filmes baseados em histórias reais, detesto ficção científica e fantasia, profecias e artes mágicas. Eu não gosto da fada dos dentes, nem do pai natal, nem do papão, nem de nenhum outro desses seres que povoam as histórias das crianças. Eu não gosto de mentir ao meu filho. Mesmo que sejam mentiras pequeninas. Eu não gosto de inventar. Cá em casa explicamos tudo o que tem de ser explicado. Não há cá bebés trazidos pela cegonha. Não há cá fadas que dão moedas. E agora?
Desviando o assunto no caminho para casa e durante o jantar.
Eu acho que esta noite a fada dos dentes vem, disse ele, todo feliz, colocando o guardanapo com o dente debaixo da almofada. Também acho, ouvi-me eu a dizer. Nem mais. Apaguei a luz. Dei beijinhos de boa-noite. E agora ele está a dormir e eu tenho que ir ver se tenho por aí alguma moeda para daqui a bocado ir fazer a troca. E é isto. Também é isto ser mãe. Só não me peçam é para guardar o dente. Isso não. Já que a fada dos dentes vem aí ela que fique com o dente e que o leve para onde bem entender. De preferência para bem longe de mim.