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O António na cama de cima a ler "uma aventura" num sítio qualquer, o Pedro na cama de baixo com um "diário do banana", eu sentada no chão com a biografia da Rita Lee. Ficamos assim, em silêncio. O Pedro é o primeiro a desistir (hoje adormeceu literalmente com a cara no livro). O António descobriu que, "depois de começar", ler até pode ser giro (e também descobriu que se estiver a ler tem autorização para ficar acordado até mais tarde o que o faz sentir-se super-crescido). E eu fico feliz com estas meias-horas em que está tudo bem e até me esqueço dos motivos porque nos zangamos tanto.
Lembrei-me da cena final de Capitão Fantástico, o filme de Matt Ross com que Viggo Mortensen esteve este ano nomeado para os Óscares. Vi-o duas vezes: primeiro sozinha, depois com os miúdos. É um filme que, entre outras coisas, fala destas dúvidas todas que temos quanto à educação que damos aos nossos filhos e questiona o que é realmente importante ensinar-lhes.
Sim, é verdade, os meus filhos não lêem filosofia nem livros muito elaborados (e, vendo bem, eu também não). Mas não é disso que eu estou a falar.
O António é desde ontem o feliz possuidor de um bilhete da Carris. Era um dos objectivos a que nos tínhamos proposto para este ano lectivo e tinha sido esse também um dos motivos por que ele tinha mudado de clube, queria que começasse a ir sozinho aos treinos, facilitando-nos a vida. Mas depois ficámos à espera dos dias grandes e depois não dava jeito e depois não valia a pena e depois passou. Até que, como sempre, a coisa deu-se quando tinha que se dar. Quando se tornou necessária. Esta semana, com treinos e jogos em horário de férias, nada aconselháveis a pais que têm de trabalhar, o António apanhou o autocarro e foi para o treino. Calma. Não foi assim tão simples. Antes de mais, estudámos as opções. Não havia. Depois, estudámos os percursos e descobrimos que havia três carreiras de autocarro directinhas da porta de casa para o clube. Comprámos o bilhete, olhámos demoradamente para o mapa para perceber onde ficava a paragem de destino, expliquei-lhe os procedimentos, ele instalou uma aplicação no telefone para saber mais ou menos os tempos de espera e eu acompanhei-o à paragem. Esperámos uns dois minutos. Eu com o estômago às voltas mas toda sorrisos e palavras de entusiasmo, garantindo-lhe que seria uma aventura. Ele lá foi, confiante. Entrei no carro, segui por outro caminho (pudesse eu ir pela faixa do Bus e não lhe teria tirado a vista de cima), estacionei e esperei à porta do clube. Lá veio o rapaz, todo lampeiro, de mochila às costas e phones nos ouvidos. Abraço-o, correu tudo bem?, felicito-o, és um crescido. E ele olha para mim de soslaio, com aquele olhar de treze anos. "Bué da easy, mãe." E foi jogar à bola. De modos que é isto. O António é desde ontem o feliz possuidor de um bilhete da Carris e até já tratámos do passe para que em setembro possa ir para o treino e para onde mais ele quiser (não vamos pensar muito nisso agora). Está a crescer com passos firmes. E eu, orgulhosa dele, daquela confiança, de vê-lo a ir à sua vida, e ao mesmo tempo a ficar com o coração apertadinho, apertadinho. Parece que vai ser assim para sempre, quer eles tenham dois ou trinta anos (não é, Sónia?). Nada bué da easy, diga-se.
(entretanto, hoje, depois das actividades de tempos livres, ligou-me a dizer que ia fazer panquecas com o Afonso. foram comprar nutella, fizeram a massa na bimby e quando eu cheguei a casa estavam divertíssimos a virar panquecas na frigideira. estavam bem boas, by the way. mal posso esperar por amanhã para saber qual será a próxima novidade...)
Descobri há relativamente pouco tempo que cozinhar é uma das melhores terapias do mundo. Passo cada vez mais tempo na cozinha, sou feliz a experimentar receitas e a preparar comidas elaboradas, com tempo (não sou lá muito feliz a ter que fazer todos os dias, à pressa, depois de uma jornada de trabalho, jantares sem graça nem molhos para os meus filhos esquisitinhos, mas adiante). É também por isso que admiro a Joana. Pela alegria que ela tem a cozinhar. Mas, sobretudo, admiro a Joana Barrios pela sua liberdade, pela capacidade de ser exactamente como quer ser, sem ligar a estereotipos, ao que os outros possam dizer, a preconceitos.
Foi um prazer enorme conhecê-la de perto (e descobrir que é alentejana!). A conversa que tivemos, a propósito do seu livro de receitas, Nhom Nhom, foi publicada no domingo na revista Notícias Magazine e pode agora ser lida AQUI.
A fotografia é da Diana Quintela/ Global Imagens.
Mais um ano lectivo a terminar. Este foi o mais difícil de todos, por vários motivos, e as notas finais de ambos estarão muito longe de serem fantásticas. Eu, que sempre fui óptima aluna, faço um esforço enorme para relativizar este facto. Não lhes exijo que sejam brilhantes, nada disso. Mas zango-me muito com os problemas de comportamento, com a falta de empenho e a irresponsabilidade dos meus catraios. Neste momento, o que mais me aflige não é que eles tenham notas suficientes (todos os dias conheço alguém que teve notas assim ou até piores e vai-se a ver tornaram-se pessoas espectaculares, algumas delas profissionais brilhantes nas carreiras que escolheram, e felizes, que é o que em última análise todos queremos). O que mais me aflige é mesmo o desinteresse pela escola, este tanto me faz ter bom ou suficiente, este não quero saber, esta falta de admiração (e até de respeito) pelos professores, esta ideia de que a escola não serve para nada e, portanto, não vale a pena o esforço. Luto muito contra isto. É mesmo um dos grandes motivos de discussão cá em casa (a par do desliga o telemóvel/ a playstation/o tablet/ a televisão).
E, no entanto, poderei censurá-los?
Tenho muitas dúvidas sobre a qualidade do ensino que estamos a dar aos nossos filhos.
Na escola primária, essas dúvidas foram grandemente reduzidas com a extinção dos exames no 4º ano. Foi uma alegria, depois da experiência horrível com o António. É verdade que temos a sorte de a nossa escola ser muito completa, onde para além das matérias sei que há uma preocupação enorme para que os miúdos abram os olhos para o mundo, para as artes, para as outras pessoas. Mas, mesmo assim, notou-se a diferença naqueles anos em que os alunos do 4º ano tiveram que realizar exame, o tempo passado com o estudo, aquela pressão enorme. Agora, com o Pedro, às vezes, ainda sinto que estamos a exigir-lhes que entendam coisas demasiados complicadas para as suas cabeças (aprender o Pi no 3º ano é uma das mais óbvias, mas há mais) mas sem a carga dos exames já não é dramático.
A partir do 5º ano, a coisa complicou-se. De uma escola pequena e privada, passámos para uma escola pública, grande. Esta mudança significa, antes de mais, que os miúdos ficam por sua conta e risco. Não há ninguém que os conheça, que saiba as suas fragilidades, que os acompanhe. Os professores estão com eles umas quantas horas por semana e no ano seguinte hão de vir outros professores, não há ninguém que estabeleça uma verdadeira ligação com o aluno ou com a sua família. Isso iria permitir perceber melhor as dificuldades dos alunos, alertar para eventuais alterações nos comportamentos, estabelecer um plano para melhorar o rendimento escolar. Mas tal como a escola está pensada e organizada é impossível, eu entendo. O facto de as turmas terem 30 alunos não facilita nada a vida dos professores (nem quero imaginar o inferno que deve ser). E o facto de eles estarem na adolescência, cheios de hormonas, irreverência e ideias muito próprias é mais um ingrediente a ter em conta. Mas talvez com turmas mais pequenas, com professores de referência e com uma organização dos horários que permitisse dar mais atenção e acompanhamento individual e ter actividades estruturadas fora dos tempos lectivos a coisa se tornasse mais fácil (festas, encontros, passeios, reuniões, quermesses, actividades com os pais, feiras, projectos escolares, whatever - na escola do António não acontece nada, absolutamente nada, a não ser as aulas e o desporto escolar, e mesmo esse sabe deus). É como se a escola se demitisse da tarefa de educar, cinjindo-se à tarefa de passar as matérias. E os miúdos ou têm a sorte de ter pais que os acompanham ou então têm azar e pronto.
Uma das minhas perplexidades quando o António chegou ao ciclo, ou lá como isso se chama hoje em dia, foi com a disciplina de Educação Tecnológica. Deixou de haver trabalhos manuais ou trabalhos oficinais e os miúdos não fazem qualquer trabalho prático nesta aula (ai, espera, estou a mentir, de vez em quando fazem uns trabalhos de corte e colagem com cartolinas e assim, ao género da primária, sabem?, mas com mais regras). Trata-de se uma disciplina teórica, com manual e testes, claro, que é para ser levada a sério, onde os alunos aprendem, por exemplo, os tipos de madeira que existem, os instrumentos com que se trabalha a madeira e as suas possíveis utilizações, mas sem nunca sequer pegar num tronco ou num serrote. O mesmo para o barro, para o papel, para os tecidos, para a electricidade. Tudo teórico. Decorar e responder aos testes. Isto serve para quê mesmo?
Esta disciplina de ET é exemplar do que está mal no ensino onde um dos grandes problemas são os currículos - demasiado extensos e demasiado complexos, na minha opinião - e as afamadas metas curriculares. Quando eu digo demasiado complexas estou a pensar, por exemplo, em disciplinas como as ciências, a fisica-química, a geografia, a matemática - o António está no 7º ano e se eu pegar em algum dos manuais destas disciplinas facilmente encontro matéria que eu nunca estudei até ao 9º ano. Coisas altamente complicadas (como a formação da Terra ou a constituição das rochas, são as que me ocorrem agora, mas há mais, muito mais), com nomes muito difíceis, que implicam conhecimentos muito específicos. Podemos pensar que os miúdos hoje têm mais conhecimentos e maior facilidade em aceder à informação e, portanto, temos que ir um pouco mais longe naquilo que lhes ensinamos. Correcto. Mas isto implicaria um trabalho de consolidação que não existe. A sensação que eu tenho é que eles dão demasiada matéria, em passo de corrida. Porque é necessário chegar ao fim dos livros, dê por onde der. Portanto, em muitos casos o professor praticamente limita-se a ler o manual e a fazer os exercícios propostos nos livros de fichas e siga. A matéria sucede-se em catadupa. O importante é que eles decorem ali umas coisas para os testes e pronto. O importante é dar. Esquecendo-se que as metas curriculares não deveriam ser para os professores mas para os alunos - a matéria está dada, mas foi realmente apreendida?
Por fim, há um problema que atravessa todas as disciplinas e que se prende com os métodos de ensino. Já li bastantes artigos sobre isto, não estou a inventar a pólvora, mas a verdade é que estamos a ensinar os miúdos em 2017 com métodos do século XIX. E se no nosso tempo a coisa já era uma seca, imagine-se agora, com putos que cresceram com mil canais de televisão e internet nos computadores e vivem com um telefone permanentemente nas mãos. É muito mais difícil captar a sua atenção e motivá-los. Por outro lado, sinto muitas vezes que não estamos a preparar estes miúdos para o futuro. Fazêmo-los decorar coisas e mais coisas mas não os ensinamos a ver o mundo. Estamos a dar-lhes uma série de conhecimentos obsoletos e banais, a fazê-los decorar coisas de que, na realidade, eles não vão precisar nunca mais (assim como assim está tudo no google), em vez de lhes darmos verdadeiras competências para o mundo real.
Além disto tudo, a experiência diz-me que a maioria dos professores é assim pró mauzinho. Isso não é um problema novo e tem a ver, em grande parte, com a diminuição do prestígio desta profissão - é como se fosse para professor quem não conseguisse ter outra carreira melhor. Ora, como em todas as profissões, quanto mais nós gostarmos daquilo que fazemos melhor seremos. Para piorar a situação, aqueles que estavam aqui por gosto e que tinham, de facto, qualidade, têm sido trucidados pelo sistema, pela imensa burocracia, pelas tais metas curriculares, pela sobrecarga dos horários, pela sobrecarga das turmas, pela exaustão disto tudo, e são cada vez menos. Atenção: não estou a desvalorizar os problemas dos alunos e a culpar os professores pelas más notas dos meus filhos, estou só a tentar perceber como é que a desmotivação e a falta de preparação de alguns professores pode ser determinante, pelo menos para alguns alunos que precisariam de mais (há sempre aqueles que são bons alunos independentemente dos péssimos professores que apanhem, eu era assim, mas esses serão uma minoria e com esses não temos que nos preocupar, não é?).
Finalmente, e esse é o último elemento que entra nesta equação: para que é que isto tudo serve? Quando era miúda, ouvi muitas vezes o discurso do tens de estudar para ser alguém. Ou, pelo menos, para ser aquilo que eu sonhava ser. Acreditava-se que os estudos abriam portas, portas que estavam vedadas a quem não trabalhasse o suficiente na escola e que nos iriam conduzir a uma vida melhor. Hoje em dia, apesar de eu ainda acreditar que estudar abre mesmo muitas portas - na cabeça e nas vidas das pessoas - é muito mais difícil conseguir convencer os miúdos disto. Todos os dias eles têm exemplos de pessoas que não estudaram nada e conseguiram ter sucesso (na televisão, na internet, no desporto...) , e também vão encontrando pessoas que estudaram mesmo muito e com resultados excelentes e não conseguiram fazer grande coisa da sua vida. Assim fica mais difícil a tarefa de uma mãe.
Volto ao início. Tento (com grande esforço da minha parte, diga-se) relativizar as notas. Mas zango-me muito com eles quando há queixas de comportamento, fico passada com os desleixos, com a falta de empenho, com a irresponsabilidade. Bato muito nesta tecla: dá o teu melhor. Esta é a tua tarefa, tens de cumpri-la o melhor que puderes, mesmo que a odeies. Zango-me. Aplico castigos. Explico a bem. Sou compreensiva. Tento motivá-los. Zango-me outra vez. Falho. Falho todos os anos. E não tenho a mínima ideia de como poderei fazer melhor.
Esta semana, por coincindência, vi dois filmes em que as personagens principais são uma mãe e uma filha e em ambos a mãe é interpretada pela Susan Sarandon.
A minha mãe, eu e a minha mãe (que título de treta, o original é Anywhere but here) é um filme de 1999, realizado por Wayne Wang, em que a filha é uma miúda de 17 anos intepretada pela Natalie Portman.
The Meddler (A Metediça ou algo parecido, o filme não estreou em Portugal) é um filme de 2015, realizado por Lorene Scafaria, em que a filha já é uma adulta interpretada por Rose Byrne.
Os dois tratam desta relação especial entre uma mãe sozinha (divorciada e viúva, respectivamente) e uma filha, as confissões, as discussões inevitáveis, este amor maior que tudo, a dependência emocional. Não sei se será muito diferente de se ser mãe sozinha de um ou dois rapazes.
No essencial parece-me que é isto: um vai-e-vem permanente entre extremos. Por um lado, nós, as mães, somos tudo para eles, não há mais ninguém portanto habituamo-nos a tratar de tudo, a estar sempre lá e a sermos bastante necessárias; por outro lado, eles vão crescendo e inevitavelmente vão precisando do seu espaço, longe de nós (e é bom que a gente incentive isso, que lhes dê autonomia). Por um lado, há uma cumplicidade enorme, conversas mesmo boas, uma abertura e uma confiança mútuas, uma partilha (que, provavelmente, não existiria desta forma se fôssemos uma família modelo), muitos momentos em que nos sinto no caminho certo; por outro lado, as discussões podem atingir uma intensidade de níveis estratosféricos (imagino que falte aqui o segundo adulto que ponha água na fervura ou que simplesmente nos ajude a ver os problemas de um outro prisma), os dramas parecem sempre irresolúveis e geralmente chego ao fim destas crises a sentir-me miserável e incapaz de os educar convenientemente. Por um lado, entre o trabalho e os filhos, resta-nos pouco tempo para os outros, estamos sempre a correr de um lado para o outro, super-ocupadas, a sonhar com um tempinho só para nós ou em poder fazer coisas com os nossos amigos; por outro lado, sempre que ficamos sozinhas, seja por umas horas ou por uns dias, instala-se um vazio enorme (até porque, entretanto, as outras pessoas estão todas nas suas vidas e já se habituaram a não contar connosco).
É muito difícil encontrar o equilíbrio no meio disto tudo.
(e, sim, é difícil para todos os pais, mas acho que será um bocadinho mais difícil quando não se tem alguém com quem partilhar as dúvidas nem um colo para recorrer quando eles vão às suas vidas, só isso).
Na minha casa havia (e quando eu digo a minha casa quero dizer a casa onde cresci) uma cozinha que tinha uma porta para uma despensa. Na porta da despensa estava sempre pendurado um calendário, daqueles que tinham uma fotografia com gatinhos ou flores no topo e depois era preciso ir arrancando as páginas para passar os meses. Todos os anos mudávamos o calendário.
Lembrei-me disto quando estava a ler Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral. Aliás, lembrei-me de muitas coisas da minha infância porque o narrador do livro, que é também o autor, há de ter mais ou menos a mesma idade do que eu e cresceu nos anos 70 e 80 a ver as novelas que eu via, a ouvir as músicas que eu ouvia e a ter brincadeiras e conversas muito parecidas com as minhas. Esse foi, sem dúvida, o primeiro grande fascínio que este livro exerceu em mim. Quando ele fala do Bataclan eu sei exactamente do que é que ele está a falar. Ou o Zeca Diabo. Ou a Vera Roquete. Ou as bicicletas BMX. Ou o 605 Forte. Até porque a Margem Sul é um bocado Alentejo. Bruno Vieira Amaral tem essa habilidade de trazer estes pequenos nadas das nossas vidas quotidianas para os seus romances. De transformar as minhas memórias de infância em cenário de um crime. A Baixa da Banheira onde eu ia de visita aos meus tios, o parque infantil com um avião onde brincava com os meus primos, aquelas ruas cheias de blocos de apartamentos como não havia na minha terra. O trânsito na ponte para chegar a Lisboa.
Há mais coisas neste livro de que gosto mesmo muito. Uma é o facto de a ficção assentar não só em memórias como em factos reais. O autor teve, certamente, de fazer uma enorme investigação para poder trazer todos aqueles factos para o livro sem cometer erros. Seja citar um artigo de jornal ou referir um acontecimento que apareceu no telejornal em 1985, o filme que estava a dar na televisão ou as cheias que molharam Luanda. São estes pormenores verdadeiros que dão consistência àquela história e àquelas personagens. E lhe permitem imaginar as vidas que poderiam ter existido pelo meio. Juntar as histórias que a avó lhe contou com as histórias que a avó lhe poderia ter contado e aquilo encaixar tudo de tal maneira que deixa de ser possível distinguir entre verdade e ficção. Acho esse trabalho fascinante.
E, finalmente, um tema que tanto me interessa: nunca tinha lido nenhum romance onde se retratasse tão bem a vida dos africanos e portugueses que vieram das ex-colónias. E dos seus filhos e netos. Claro que há O Retorno, da Dulce Maria Cardoso. Mas no livro do Bruno Vieira Amaral já estamos numa fase posterior - na fase da instalação, da integração (ou não), do que se seguiu. Dos sonhos que ficaram para trás. Da África que se instalou à volta de Lisboa. Dos bairros como guetos. Dos trabalhadores nas obras. Ou na Lisnave. Nos domingos com cerveja. Nos sabores que vieram de longe. E os putos que cresceram nesses novos bairros e que de África só ouviram falar.
Que boa leitura.
No domingo, ao final da tarde, deixei os miúdos numa festa de família e aproveitei aquelas três horas livres para ir ao cinema ver I'm Not Your Negro, documentário de Raoul Peck a partir dos escritos e da experiência de James Baldwin (1924-1987), sobre o racismo e a discriminação nos EUA (mas não só).
O filme é contado a partir da experiência muito concreta que foram as décadas de 1950, 1960 e 1970 - Rosa Parks sentou-se no lugar "errado" do autocarro a 1 de dezembro de 1955, seguiram-se os anos de luta intensa pelos direitos civis, os assassínios de Medgar Evers (1963), Malcolm X (1965) e Martin Luther King (1968), foram os anos dos presidentes John Kennedy (também ele assassinado em 1963) e de Lyndon Johnson. Experiência essa que James Baldwin viveu na pele (ele também discute essa questão, da diferença entre testemunhar e viver algo). Mas também é verdade que se é necessário ir lá atrás, aos tempos da escravatura e aos campos de algodão, ao sonho do "american way of life" vendido pelo cinema de Hollywood e pelos anúncios da televisão, para perceber o que se passava nos anos 60, é igualmente necessário ter conhecimento disto tudo para entender o lugar e a luta dos afro-americanos na América (e no mundo) de hoje. O filme está, por isso, em constante viagem entre o passado e o presente, fazendo-nos pensar como tantas questões continuam actuais (e até como, embora noutra escala, algumas destas questões são semelhantes às de outros grupos que historicamente também têm sido alvo de discriminação, como as mulheres ou os homossexuais).
Para mim, o mais importante continua a ser isto: 1) é muito difícil para quem tem um lugar privilegiado perceber exactamente o que se quer dizer quando se fala de discriminação, essa é uma batalha constante que cada um de nós deve travar; 2) para além dos números e das leis, continua a haver uma discriminação invisível, fruto das circunstâncias sócio-económicas (uma rede tão difícil de quebrar) e dos preconceitos que estão tão implementados (na linguagem, no comportamento, nas pequenas coisas da vida) que quase nem damos por eles.
É preciso querer ver. A apatia e a ignorância são uma das formas mais persistentes de racismo.
Além disso, fiquei com imensa curiosiadade sobre o James Baldwin e o seu sorriso contagiante, que só conhecia pela leitura deste texto da Isabel Lucas.
Um bolo de chocolate com cobertura de chocolate, pedido especial do Pedro para apagar as velas.
A alegria do Pedro a brincar no terraço com os amigos que vieram jantar.
O sorriso do António quando marca um golo.
O abraço que o Pedro me deu depois de eu passar quase três horas a enroscar cenas para montar a bateria nova.
Mãe, não te preocupes que eu tomo conta do mano.
Os miúdos encontraram uma caixa de preservativos numa gaveta (I know, I know). A conversa que se seguiu, cheia de perguntas e explicações várias. A brincadeira que se seguiu com um preservativo transformado em balão de água.
Passar duas horas a entrevistar/conversar com uma pessoa mesmo fixe.
Cozinhar amêijoas para o almoço.
Fazer um montão de brigadeiros para a festa da escola.
As lágrimas nos olhos quando vejo os miúdos no palco (nem precisam ser os meus).
Nem acredito que este ano lectivo está quase a terminar.
Há sempre coisas boas a acontecer por entre as trapalhadas, problemas, dúvidas e stresses vários da nossa vida.