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1. Não, não tenho nada contra raparigas que se vestem de princesas. Não acho que se deva proibir os rapazes de brincar com carrinhos. Não me parece mal que as meninas tenham bonecos. Não quero obrigar os meninos as vestirem saias. Não temos que andar todos vestidos de amarelo e só brincar com legos.
O que eu defendo é exactamente o oposto, percebem? Que não haja proibições, nem obrigações, nem letreiros que digam para menino e para menina, nem secções todas de azul e outras todas de cor-de-rosa, nem gente a dizer "isso não é para ti". O que eu defendo é a liberdade para cada criança (e depois cada jovem e cada adulto) poder escolher o que quer para si, sem se preocupar com os rótulos. Terminar com essa divisão que é completamente artificial de que há coisas para rapazes e coisas para raparigas, coisas para homens e coisas para mulheres. Não há. Não são as coisas que têm género, são as pessoas. Há coisas para pessoas e as pessoas são todas diferentes por isso vamos deixá-las escolher o que querem. E até podem querer coisas diferentes em momentos diferentes, por isso em vez de compartimentar vamos dar-lhes diversidade e permitir-lhes experimentar de tudo.
Só para defender esta liberdade individual já valeria a pena debater este assunto. Mas há mais.
2. Esta divisão, aparentemente inócua, entre meninas e meninos, entre o cor-de-rosa e o azul, entre as bonecas e os carrinhos, entre as princesas e os heróis de acção, é uma das faces de uma educação baseada em estereótipos de género. Estamos a dizer-lhes: as meninas são delicadas, cuidam da casa e dos bebés, preocupam-se com vestidos e sapatos, os rapazes são fortes, aventureiros, ganham dinheiro e fazem o mundo girar. Na prática, nós sabemos, é cada vez menos assim. Felizmente, as últimas décadas têm sido de grandes mudanças. Para as raparigas que estão a ganhar cada vez mais mundo e mais liberdade. Para os homens que descobriram que ser pai é mais do que trazer um ordenado ao final do mês. Mas tem sido uma luta, uma luta árdua. E que ainda não acabou. Há um longo caminho por andar - as diferenças salariais e as estatísticas da representatividade em lugares de topo são o lado visível de uma discriminação que ainda se sente, e muito, na nossa sociedade. Há mais estatísticas por aí - do tempo que homens e mulheres ocupam com tarefas domésticas, das licenças de parentalidade, dos homens e mulheres que optam por trabalhar em casa para dar assistência à família, da quantidade de homens e mulheres em determinadas profissões. E depois há tudo o resto (toda a pressão social, as expectativas familiares, os comentários maldosos que se ouvem na rua, os títulos do jornais, aquela sensação de inadequação porque não correspondemos às expectativas, tudo isso) que escapa à estatística. O preço a pagar por esta igualdade-que-ainda-não-o-é ainda é muito alto, para mulheres e para homens. Sim, ainda há muito por fazer. Além de que o país não é só Lisboa, tal como o mundo não é só a Europa e a América.
E podemos começar por coisas tão simples como esta: não dizer a um rapaz que não pode pintar as unhas porque isso é coisa de meninas (o que é que isto tem a ver com aquilo? tudo).
Muito foi dito e escrito sobre este assunto nos últimos tempos, fiquei na dúvida se valeria a pena vir aqui dizer, mais uma vez, aquilo que penso. Mas, sabem, de cada vez que ouço alguém a dizer "tu também brincaste com bonecas e agora és uma mulher determinada e com cabeça" sinto que essa pessoa nem sequer se deu ao trabalho de tentar perceber o que estamos a dizer. E isso, ao mesmo tempo que me entristece e quase me leva a desistir, obriga-me a voltar ao assunto. As vezes que forem necessárias.