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"Os primeiros sintomas costumam afligir a indústria inteira, o que cria a falsa segurança de um inexorável (e colectivo) "processo" de transformação. A primeira coisa que desaparece é aquilo que custa mais (em tempo ou em dinheiro): investigações longas, reportagens no estrangeiro, despesas de viagem, etc. Depois, todos os atalhos se vão tornando mais curtos. Copy desks desaparecem. As redacções começam a encolher por ordem cronológica: veteranos aceitam rescisões amigáveis e as suas funções são redistribuídas pelas várias castas temporárias - estagiários, colaboradores, freelancers. Reuniões estratégicas começam a ser mais frequentes. A ordem das secções é reconfigurada como um baralho de cartas. Reinvenções são anunciadas. Suplementos são rebaptizados. Mudanças de tom são sugeridas: o jornal deve tornar-se mais ligeiro, mais profundo, mais especializado, mais generalista, mais local, mais global. Como um paciente terminal, o jornal começa a ser mais vulnerável a charlatães e curas milagrosas. Várias estratégias são adoptadas, na esperança de que alguma pegue (paywalls, doações voluntárias, fundações, parcerias) Quando a calamidade seguinte acontece (uma crise financeira, uma pandemia) um ou outro lay-off costuma preceder o inevitável despedimento colectivo, noticiado provavelmente não em números mas em fracções ("um quarto dos funcionários", "um terço da redacção"). Não é suficiente. As "dificuldades de tesouraria" tornam-se crónicas. As pressões produtivas aumentam em proporção inversa à disponibilidade de recursos: perto do fim, é esperado que uma dúzia de pessoas consigam fazer melhor um trabalho que antes era feito por meia centena. São precisos mais cortes. E aquilo que acontece muito devagar pode continuar a acontecer muito devagar durante muito, muito tempo."

É isto e mais, escrito de forma lúcida e exacta pelo Rogério Casanova.

publicado às 18:47

Eu nem por isso.

O que é surpreendente. Sempre fui uma pessoa muito sociável, que gosta de conversar e partilhar com os outros, que gosta de conhecer toda a gente na redação e de saber "o que se passa". Por isso, nunca imaginei que pudesse realmente gostar de trabalhar em casa. Sozinha. E, sim, ao princípio, foi difícil, claro. Novas rotinas, novos desafios. E estarmos todos fechados em casa não é bom. Miúdos com aulas virtuais, proibição de sair, de estar com as nossas pessoas, de fazer o que quer que fosse. Não, assim não. Mas. À medida que a vida vai voltando ao que era, com os putos na escola, a possibilidade de ir jantar com os amigos, de ir ali tomar um café ao fim dia, de ir ao cinema... por que não? Se tudo o resto estiver de facto "normal", não será bom poder ficar em casa?

Será assim tão necessário estar "lá" se posso fazer o mesmo "aqui"?

Já andava a pensar nisto e a rabiscar este texto nos rascunhos quando li a opinião de Tracy Moore, no Washington Post. Identifiquei-me bastante. E fiquei aliviada: afinal não sou só eu.

Está tudo em pulgas para voltar ao escritório?

"Not me. I’ve been working remotely for more than a year, and though monitoring a fifth-grader’s virtual education has certainly tested my limits, it has granted me greater sanity and family connection than in my previous life. A part of me misses in-person brainstorming and camaraderie, but a larger part wonders: At what cost?"

Vamos por partes.

É verdade que mudei de emprego e que não conheço ninguém no meu sítio novo. Por mais que simpatize com os meus colegas nas conversas que temos no whatsapp, não dá para morrer de saudades de estar com eles porque nunca estive. Isso ajuda.

E, talvez porque já estou numa idade mais avançada, já não sinto essa necessidade de ter de conhecer toda a gente e de saber tudo o que se passa. De estar no centro do furacão. Já gosto mais do silêncio do que do barulho. Tenho cada vez mais prazer em ficar calada (não é de agora, é de há muito mais tempo).

Além disso, a perspectiva de passar dias inteiros com uma máscara na cara também não é lá muito animadora, há que reconhecer.

Mas, o mais importante, é de facto o ganho de tempo e de qualidade de vida. Não perder tempo em viagens, não ter sequer que tomar banho quando começo a trabalhar às 7.00 da manhã, não ter que vestir o soutien nem calçar sapatos nem ter o botão das calças da ganga a marcar-me a barriga o dia inteiro, poder ir a corrrer apanhar a roupa se começar a chover, aproveitar a hora do almoço para ver um bocadinho daquela série, desligar o computador à meia-noite e estar deitada na cama cinco minutos depois. O que há para não gostar?

E, depois, os putos. Olhem que eu nem me posso queixar muito porque (com grande esforço meu e até com perdas para a minha carreira) nunca deixei de estar com os meus filhos. Para mim, as prioridades sempre foram claras. Por isso, não posso dizer que tenha descoberto no confinamento como é bom estar com a minha família. Eu sempre estive com a minha família, sempre acompanhei os meus filhos. Mas isto que tenho agora é outra coisa e é, de facto, o ideal para esta fase em que eles estão, porque já são crescidos e bastante autónomos. Desejo-lhes um bom dia de manhã, vejo-os a entrar e a sair, digo até logo, pergunto onde vais. Podemos fazer as refeições juntos ou não, depende dos nossos horários, mas vou sempre estando por ali para os lembrar de comerem fruta, para comentar com eles as notícias, para saber por onde eles andam sem me intrometer muito. É perfeito. Depois disto, sei que me vai custar horrores sair de manhã e só voltar à tarde e não ter esta proximidade.

Mas o trabalho não corre melhor se estivermos todos juntos?

Há momentos em que sim, em que a proximidade ajuda, não há como negá-lo. Mas também há momentos em que é absolutamente indiferente. Afinal, nós conseguimos fazer isto à distância e correu tudo bem, não foi? E há ganhos também para o trabalho. Não há intermináveis reuniões em que se perde mais tempo a dizer piadas do que a tomar decisões. Não há tantas distracções nem idas ao café nem conversas paralelas. E há pessoas felizes. As pessoas felizes trabalham sempre melhor, acredito muito nisto, embora esta não seja uma opinião acarinhada pelos empregadores de uma maneira geral.

Estou a preparar-me mentalmente para o regresso. Vai acontecer. E não é que seja o fim do mundo, que não é. Não tarda nada vou estar outra vez no ritmo do vai e vem e da confusão e vai correr tudo bem, como sempre correu. E até me vou entusiasmar e tudo, estou certa.

Mas se eu pudesse escolher...

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publicado às 09:52

10
Mai21

Nove anos

Bernardo Sassetti (1970-2012)

Haverá um ano em que deixamos de contar os anos? Talvez. Mas isso não quer dizer que esqueçamos.

Há feridas que, mesmo cicatrizadas, deixam marcas que são para sempre.

publicado às 09:42

Descobri esta semana (eu sei, sou um bocadinho ignorante), por causa de umas pesquisas que andava a fazer, que a palavra assédio é usada em contexto militar. 

Assédio: "acção que consiste em cercar militarmente uma posição inimiga, geralmente durante um período prolongado ou que se calcula dever durar muito. Sinónimo de cerco." (Priberam); "conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga" (Infopedia).

Fora do contexto militar, a palavra assédio tem mais ou menos o mesmo significado. É um cerco. Uma tentativa de domínio.

Falemos, então, do assunto do momento: o assédio sexual. Outra vez. As vezes que forem necessárias. E falemos, finalmente, do assédio sexual em Portugal.

Há mulheres que cometem assédio mas, convenhamos, na maioria dos casos o assédio é realizado por homens. Existe aqui uma forte componente cultural - não há nada na genética dos homens que os leve a ser javardos, os homens não sofrem de desejos incontroláveis nem têm ímpetos inatos que os levam a apalpar uma mulher na rua. Mas existe um caldo cultural no qual estes comportamentos têm sido apurados em lume brando ao longo de séculos. E que, como é óbvio, leva algum tempo a destruir. Estamos nesse caminho. Através da educação que damos aos rapazes e às raparigas. Através da legislação. Através dos debates que todos os dias temos no espaço público e que contribuem para mudar a forma como estes assuntos são encarados. Já conseguimos mudar muita coisa mas ainda há muito por mudar. 

E é isso que estamos a tentar a fazer quando falamos publicamente sobre o assunto.

Há diferentes comportamentos masculinos que estão errados e que demonstram uma profunda falta de respeito pelas mulheres. Mas estando todos errados não são todos iguais.

Há as situações de rua (que também podem acontecer no local de trabalho) - os piropos, os encostos no metro ou no elevador, os gajos que não param de olhar para o nosso corpo, o maluco sentado no canto do autocarro a mexer na pila, os colegas que comentam a tua aparência (são elogios, quem é não gosta? lol). É tudo horrível. As mulheres aprendem cedo a proteger-se destas situações. Mudamos para o outro lado do passeio. Baixamos os olhos. Encolhemos os ombros para esconder o decote. Ignoramos as javardices que ouvimos. Mulher séria não tem ouvidos, foi o que nos disseram desde pequeninas. Mas não deveria ser assim. Não deveríamos ter que passar por isto. Nenhuma mulher deveria sujeitar-se a ser tratada desta forma, nem deveria sentir-se desconfortável ou insegura apenas pelo facto de ter um corpo. Muita gente acha que não, mas isto já é assédio.

Existem outras situações de assédio que são já um passo em frente, que é quando os homens tentam interagir com as mulheres e, mesmo quando elas recusam os seus avanços, eles insistem. Isto é comum acontecer na noite, em bares ou discotecas. Mas pode acontecer noutras situações sociais, em festas de amigos ou mesmo entre colegas de trabalho. Há homens que têm muita dificuldade em aceitar um não. Que insistem em chegar-se mais perto, em colocar uma mão no nosso braço, em fazer sorrisos e olhinhos e insinuações mesmo quando já demos a entender que não estamos interessadas. Porque, entendamo-nos: uma coisa é um homem estar interessado numa mulher, demonstrar de alguma forma esse interesse e ser retribuído, ela interage com ele e a coisa evolui como ambos querem - isso é aquele processo de sedução que se quer saudável e divertido; outra coisa é um homem estar interessado numa mulher, ela demonstrar que não está interessada e ele insistir, tomando atitudes cada vez mais intrusivas. Uma coisa não se confunde com a outra, acreditem.

Estas duas situações de assédio são não só bastante comuns como são geralmente desvalorizadas pelos homens que, quando confrontados, raramente admitem que estão a fazer alguma coisa errada. Afinal, são só homens a ser homens, não é? Ora agora, já não se pode dizer nada? 

E, por fim, e num patamar ainda mais grave, diria eu, existe o assédio que é realizado por homens que estão numa posição de poder em relação à mulher. Os professores em relação às alunas. Os chefes em relação a subalternas. Os ministros, diretores, presidentes, senhores doutores (e etc.) em relação a qualquer mulher que, por algum motivo, sinta que se não corresponder pode ser prejudicada - no seu emprego, na sua vida. Sou uma sortuda, nunca passei por uma situação destas. Mas sei que, nestes casos, é triste dizê-lo, as mulheres acabam algumas vezes por sujeitar-se a fazerem coisas que não querem fazer. Por medo. Quase sempre por medo de represálias. Ou porque não têm, naquele momento, as ferramentas necessárias para saberem recusar, ou porque são muito novas ou muito frágeis ou porque se sentem encurraladas ou porque sentem que não têm opção, mas sempre por terem medo. Ou, então, recusam delicadamente os avanços e enfrentam sozinhas as consequências. E continuam a sentir medo.

Nada disto é aceitável.

E, sim, é bom ver que também em Portugal as vítimas estão a perder o medo de denunciar estas situações. Bravo, corajosas. 

Mas também seria bom que todos nós tomássemos consciência da quantidade de vezes em que vimos estas coisas acontecer à nossa frente e não fizemos nada. As vezes em que não mandámos calar aquele colega inconveniente. As vezes em que avisámos alguém: "tem cuidado com o fulano" em vez de confrontarmos directamente o fulano. As vezes em que falámos entre nós e o máximo que conseguimos foi insultar o gajo pelas costas e garantir que íamos estar sempre ali para as nossas amigas.

As vezes em que pessoas com poder em empresas e instituições foram complacentes com estas situações, riram-se dos comentários sobre as estagiárias, olharam para o outro lado para não verem, encolheram os ombros e disseram "ele é assim" em vez de tomarem uma posição: admoestando os abusadores, abrindo processos disciplinares e deixando bem claro que tais comportamentos não seriam mais tolerados.

Nem todos os homens são assim, felizmente. Mas, infelizmente, basta que alguns o sejam para causar um enorme sofrimento nas suas vítimas.

A quantidades de testemunhos que li nestas últimas semanas - nas redes sociais e na imprensa - denunciando casos de assédio, e o baixo nível dos comentários, críticas e insultos lançados a essas mulheres mostram bem o quanto ainda nos falta andar.  

Vamos?

publicado às 01:04


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