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Odeio anestesias. Lembrava-me perfeitamente das duas anestesias gerais que levei em criança. Lembrava-me da sensação de vazio que senti ao acordar. A sensação de ter perdido aquelas horas da minha vida. Não, não é como dormir. É como um salto no tempo. Um tempo que é como se não tivesse existido. O mais parecido, imagino eu, com a morte. Odeio anestesias e quando a médica me falou a primeira vez na hipótese da cirurgia foi só isso que me amedrontou, esse medo inexplicável de um sono tão pesado que não permite sonhos nem memórias nem nada, esse salto no vazio absoluto, essa sensação de morte. Fiz-me de forte. O medo era (como quase sempre) irracional, e eu sou uma pessoa bastante racional.
Há uma semana fui internada. Foi o António que me levou, contando piadas para disfarçar os nervos. Cada um tem a sua maneira de lidar com as situações de tensão e no caso dele é dizer parvoíces e manter aquele ar blasé, de chinelo no pé e sorriso na cara, como se não fosse nada. Tinha explicado aos rapazes todo o procedimento e o que me levou até ele. Faço questão de ser honesta com os miúdos sobre todos os assuntos, tentando ao mesmo tempo poupá-los a preocupações desnecessárias. É um equilíbrio nem sempre fácil de conseguir. Quando fiquei sem emprego ou quando a minha mãe adoeceu, por exemplo, senti que eram temas demasiados importantes para não serem falados, afinal, também faz parte do crescimento perceberem que existem problemas e que temos de lidar com eles da melhor maneira possível. Neste caso, não havia mesmo por que ficarem preocupados. A coisa era bastante simples.
A cirurgia - histerectomia total laparascópica por via vaginal - apresentou-se como a melhor solução para um problema que me atormentava há pelo menos dois anos: uma hemorragia constante e de grandes dimensões que não dava mostras de ceder à medicação. O meu médico anterior, um tipo simpático e de quem não tinha queixas até ao momento, não revelou qualquer empatia pela situação. "É só sangue", disse-me, como se eu me estivesse a queixar sem motivo, explicando-me que são coisas normais nesta idade e que o que tinha a fazer era aguentar até à menopausa. Eu aguentei durante algum tempo mas depois decidi procurar outra médica. Às vezes, a única coisa que queremos dos médicos é que nos ouçam, que valorizem aquilo que dizemos. Se eu digo que não estou bem é porque não estou bem, não é porque sou uma mulher histérica. As mulheres sangram todos os meses durante grande parte da sua vida. Aprendemos a viver com este desconforto. Mas houve um momento em que aquilo começou a perturbar-me realmente. Sangrar dias e dias seguidos, sangrar de maneira incontrolável é viver em permanente estado de alerta, sem saber se vou estar toda suja quando me levantar da cadeira, se vou ter que trocar outra vez os lençóis, se tenho tampões e pensos que cheguem para o dia, se vou ter forças para ir trabalhar, se me vai apetecer sequer sair de casa. O sangue afetou a minha vida e a minha auto-estima, deixou-me insegura, suja, cansada, envergonhada e, no fim de contas, doente, uma vez que fiquei com uma anemia brutal. A nova médica ouviu-me com atenção e mandou-me fazer alguns exames. "Vamos tentar resolver a situação", garantiu-me. E acho que só por isso senti-me logo melhor. Reencaminhou-me para outra médica, mais especialista. O que se concluiu foi que sim, estava na perimenopausa, e as hemorragias abundantes são parte dos sintomas desta fase, e que também tinha vários miomas, um deles, pelo menos, de grandes dimensões, que também provocavam hemorragias. Tudo coisas inofensivas. Perante isto, tinha duas soluções: continuar com a medicação para controlar as perdas (depois de várias experiências, chegámos a um cocktail de comprimidos diários que não resolviam completamente o problema mas tinham-no tornado suportável) até que fosse necessário, o que poderiam ser alguns meses ou alguns anos, ou fazer a cirurgia e acabar com isto de uma vez. Fui eu que optei por esta solução.
Percebi, nestes últimos anos, que há inúmeras mulheres a passarem pelo mesmo que eu. Mulheres que sangram, que sofrem, que choram, que se encolhem, que dormem de fraldas, que desesperam. Nunca ninguém me tinha falado disto. Falam dos calores e que se engorda, que se envelhece e pronto. As mulheres sempre foram muito boas a esconderem as suas dores. Mas quando eu comecei a desabafar logo houve quem dissesse eu também e ela também e vai-se a ver éramos muitas. Não me serviu de consolo. Não foi uma decisão leviana. Sei que não é consensual, mas não me apetece agora estar a justificar-me. Tive dúvidas, claro. Mas decidi. Pode ser que me arrependa um dia destes. Não há como saber. Não há soluções mágicas, há apenas soluções que, para cada um de nós, naquele momento, nos parecem melhores.
Eu estava calma. Descobri há já algum tempo que tenho esta capacidade de me manter calma em situações adversas. Não quis tomar nenhum calmante, entrei desperta na sala de operações, falei com toda a gente, e no momento de me darem a anestesia, quando senti aquele fresquinho a entrar-me pelo braço, ainda tive tempo para pensar "que maluqueira, maria joão, o que é que tu estás a fazer?"
Logo a seguir estava a acordar. Outra vez a sensação de vazio. O salto no tempo. A morte ali tão perto. A cabeça tonta, as náuseas, aquela desorientação inicial. Caramba, porque é que me meti nisto? Instintivamente levei a mão à barriga, só para confirmar que tinha tudo corrido como planeado, e fiquei imediatamente mais descansada: nada de pensos nem cicatrizes. "Correu tudo bem?", perguntei a um enfermeiro (tenho um carinho enorme pelos enfermeiros, as pessoas que nos cuidam nos momentos em que estamos mais frágeis). Nas horas seguintes esteve tudo muito nublado.
Ligaram ao António a avisar que eu já estava no quarto e vinte minutos depois estavam os dois ali a olhar para mim. O António a falar sem parar, o Pedro muito sério, muito calado, muito Pedro, a manter a distância. "É estranho, nunca te tinha visto assim", disse ele. Nunca tinham visto a mãe-fortaleza deitada numa cama, com soro na veia, um saco de xixi pendurado ao lado, a voz arrastada de quem ainda não está no seu perfeito juizo. Estavam apreensivos, isso era óbvio. O que terão pensado durante aquelas horas todas? Será que exigi demais deles desta vez? Será que não deveria ter permitido que viessem ver-me?
Nessa noite, a médica apareceu para me confirmar que tinha corrido tudo bem e que, a continuar assim, teria alta no dia seguinte. A mim, ali deitada, ainda meia tonta, algaliada, incapaz de me mexer, pareceu-me um bocadinho exagerado, confesso. E, no entanto, o dia amanheceu e tudo estava realmente melhor.
Sensivelmente 24 horas depois de ter acordado da cirurgia vim para casa pelo meu próprio pé. Apreensiva mas sem dores. Só tomei paracetamol nessa noite porque sentia um certo desconforto e não conseguia encontrar posição para dormir. Mais nada. A médica tinha razão. A medicina, de facto, evoluiu de forma incrível. Sei que existe uma cicatriz, mas é interior, não está à mostra. Sinto que fui "mexida", ainda não estou a cem por cento, mas é uma coisa mínima. Às vezes até me esqueço. E aqui estou. Com ordens para não fazer esforços, não carregar pesos, não me mexer muito. Mas também para me mexer cada vez mais. A cada dia que passa sinto-me melhor. Tenho aproveitado para ver filmes e séries, ler, pensar na vida. Tento não passar o dia a comer (um desafio e tanto). Atribuo-me pequenas tarefas (por exemplo, escrever este texto), faço planos que provavelmente nunca serão concretizados. Entedio-me. Houve ali um momento em que me comecei a enervar porque me apetecia aspirar a casa e lavar o chão, mas não podia, e os meus filhos têm sido uns queridos, lavam a loiça, levam o lixo e estão sempre a perguntar se estou bem, mas foi difícil convencê-los da necessidade de limpar a casa-de-banho.
Um dia de cada vez.
Já passou uma semana. Ainda só passou uma semana. Tudo depende do ponto de vista. So far so good. Não quero precipitar-me mas estou confiante e a verdade é que já só penso que ainda quero ir à praia. Espero que a médica me dê alta, espero que o verão se aguente, espero que tudo volte ao seu lugar. Não. Corrijo. Que tudo volte a um lugar melhor. Assim é que é. Muito melhor.