De vez em quando lá vem a frase. Quando vieste para o jornalismo já sabias que era assim, se querias ter uma vida normal devias ter escolhido outra profissão. A frase aparece normalmente às seis da tarde quando me vêm dar mais trabalho e eu digo que estou mesmo de saída. Ou quando são sete e eu já estou que nem posso e respondo mal a toda a gente. Quando quiseste ser jornalista já sabias.
Já sabia?
Por acaso não, não sabia. Lembro-me que foi em 1989 e o muro tinha acabado de cair e eu olhei para a televisão e pensei isto é que devia ser mesmo fixe, estar ali, onde as coisas acontecem. Não me ocorreu que aquilo eram horas de jantar e que para estar ali, onde as coisas acontecem, não ia estar em casa a comer sopinha. Mas talvez fosse porque ainda só tinha 14 anos e também jurava a pés juntos que nunca me apanhariam de aliança e tinha a certeza absoluta que ia ser podre de rica. Eu via os sinais do tempo na televisão e lia a grande reportagem e a revista do expresso e o independente e o público - estava eu no 11º ano quando saiu o público e foi um acontecimento, comprava todos os dias e, quando gostava mesmo de uma reportagem, recortava-a e guardava-a num dossier, as minas em áfrica, o orfanato na roménia, a perestroika, a guerra do iraque (a primeira), as chuvas na índia. E eu a sonhar em estar ali, onde as coisas acontecem. Tanta profissão bonita. Podia ter sido secretária, cabeleireira, funcionária da biblioteca, contabilista, professora, engenheira, advogada. E fui logo escolher esta. Não, não sabia. Malditos sejam o miguel sousa tavares e o miguel esteves cardoso, o barata feyo e o carlos fino, o pedro rosa mendes e o luís pedro nunes, o paulo moura e o vicente jorge silva, o adelino gomes e o josé pedro castanheira e todos os outros que me fizeram pensar que ser jornalista é que era. Todos homens. Eu devia ter percebido que havia algo errado.
Mas não sabia. Nem mesmo quando entrei para a faculdade e comecei a pensar mais a serio nisto tudo. Ninguém me disse que eu ia ter que trabalhar fim-de-semana sim, fim-de-semana não. Nunca imaginei que o trabalho só começasse verdadeiramente lá para as quatro. Não me ocorreu que as creches fecham às sete da tarde. Nem mesmo, vejam só a minha ingenuidade, nem mesmo quando comecei a trabalhar e percebi que toda a gente entrava depois do almoço e só saía às tantas da noite. Eu tinha 22 anos e tinha muito tempo. Eu também podia trabalhar até às quinhentas e nem precisava de folgar, para quê?, eu era nova e estava cheia de pica. Nem parei para pensar como é que eles fariam para estar com os filhos. Posso até ter dedicado uns minutos ao assunto, vá, para concluir que o melhor era ter uma empregada, de preferência interna, o que iria ser fácil porque eu ia ser muita boa e ganhar pipas de massa. Claro.
Pois é, a verdade é que eu não sabia. Burrice minha, é óbvio. Ninguém tem culpa. Mas, se eu soubesse, se eu soubesse alguma vez me teria metido nesta vida?
Há dias em que só me apetece mandar isto tudo pro espaço, é o que vos digo. E é porque sou uma rapariga bem educada.
44 comentários
Anónimo 03.12.2008
É por estas e por outras que entro cedo e sáio cedo. E mm assim gostava de trabalhar em "part-time". SL
Anónimo 03.12.2008
Somos tantas nesta profissão a sentir o mesmo, que até podíamos fazer um movimento reivindicativo. Será que resultava?
mariana 03.12.2008
Foi por isso que eu, filha de jornalista, um dos "pais" do Público, apesar de achar tanta graça, em teoria, à coisa, me pus bem longe. Eu até gosto de escrever e de estar onde as coisas acontecem e tal, mas eu já sabia.
Já a minha irmã parece que não. Ou então sabia e fez-se de esquecida...
Lá em casa o nascimento do Público também foi um acontecimento, ora se foi. Finalmente o pai ia ter um bocadinho mais de tempo livre. Não muito, que era para não nos habituar mal.
Muito bom texto, gostei muito.
Beijo *
Mariana
Parabéns, amiga, por mais um texto tão certeiro! Muito bom, mesmo.
Beijoooooos
absolutamente solidária, eu também não sabia mesmo da missa a metade.
(e vivi com a mesma idade esses acontecimentos - e o nascimento da SIC e todos aqueles noticiários não foi uma emoção?!)
excepto esta parte - quando cheguei à parte do trabalhar perdi imediatamente a pica toda (já com namorado-praticamente-marido) e convenci-me que não era para mim. desisti e não tenciono voltar, mesmo com as duas crianças maiores de 3... :/
Gostei montes!! Acho que vou plagiar, mudando apenas a profissão!!! O que nos leva a ser tão estúpidos a pensar que vamos ganhar dinheiro suficiente para pagar a alguém que nos ajude??
Aiiii, a juventude...
:)
Escreves realmente bem, que me dera ter a tua capacidade didáctica, pelo menos melhorá-la, emprestas-me um pouquinho?
Não vou te largar mais.
Beijo da Sun
filipa 03.12.2008
Se conheceres uma profissão que exija licenciatura, que tenha hora marcada do dia para começar e para acabar, diz-me pf. Ou tu julgas que é só com o jornalismo, e nos dias que correm, que é assim? Hoje em dia quem queira um emprego tem que penar e bem para o manter; porque se se queixa, rua que há mais gente na fila. Pelos vistos, por enquanto só os professores se podem dar ao luxo de refilar...
Hmm, diria que isso não acontece só aos jornalistas. Sou designer e já ouvi o famoso: "já te vais embora?", quando queria sair, vá, às oito da noite... Agora trabalho por conta própria e saio quando me apetece. Ou quando o trabalho me deixa!
(Cheguei cá através da SMS. Gostei muito do texto! Enquanto escrevo o comentário, ouço a "Garota..." do post anterior.)
Olá "Gata". É a primeira vez que venho aqui e haveria logo de me sentir em casa. Talvez pudessemos fazer um clube, sim, mas depois acabaria como todos os outros a que pertenci, porque a malta não é boa nem a organizar-se. Por estes dias, em que me preparo para voltar ao activo de pois da licença de maternidade, este teu texto caiu-me ainda mais certeiro. bj