Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Limpar armários. Tirar tudo, lavar, arrumar de volta. Limpar o fogão, mudar a areia do gato, esfregar nos intervalos dos azulejos, lavar as loiças da casa-de-banho, deitar lixívia na sanita, lavar o chão, sentir aquele cheirinho a flores do detergente. Trocar os lençóis das camas, limpar o pó, borrifar pronto pelos móveis, aspirar os tapetes, sacudir as almofadas. Despejar os baldes do lixo, arrumar a roupa espalhada pelos cabides, desviar o sofá, limpar atrás das cómodas, endireitar os livros nas estantes. Horas nisto, às tantas apetece-me desistir, mudo a playlist do spotify para algo mais animado a ver se custa menos. Doem-me as costas e juro que nunca mais. Mas, no fim, fica tudo um brinco. Há lá prazer maior do que este? Passeio-me pela casa como se estivesse de visita. Abro as portas dos quartos e fico a admirar a minha obra. Até parece uma casa como deve ser (a minha mãe ficaria orgulhosa, não consigo evitar este pensamento, lá se vai o feminismo pelo cano abaixo). Dura pouco a limpeza, daqui a nada chega um puto do futebol e vai tomar banho e o outro que deixa a mochila no chão, e os lanches e a vida, e logo à noite já ninguém vai saber do trabalho que tive, mas por agora deixem-me aproveitar, até me vou sentar aqui no sofá um bocadinho a descansar e a sorrir para a televisão desligada, tão limpa que quase me serve de espelho.
Se pudéssemos limpar a vida como limpamos a casa, isso é que era de valor. Nada de teias de aranha na cabeça nem lixo a atrapalhar-nos os passos.
*
Este texto foi escrito com um colectivo de gente que gosta de se meter em trabalhos. Sigam as outras teias de aranha aqui:
Ultimamente tenho recebido muitas indirectas (e algumas directas) sobre o facto de me estar a tornar uma velha. Não sei muito bem como é que isto aconteceu. Num dia era a mais nova na sala, a quem todos chamavam miúda, e no outro estava a perguntar de quem é que vocês estão a falar que eu não conheço esse humorista, nunca ouvi essa música e é claro que não estou no tiktok. Tenho levado isto com alguma leveza e até faço piadas porque, como velha que sou, aprendi há muito tempo que a auto-depreciação é a melhor forma de lidar com os nossos medos e fingir que está tudo bem.
A velhice ataca-nos em duas frentes: no corpo e no espírito. Sobre a velhice do corpo já tenho falado por aqui, mas o que é novo agora é mesmo este sentimento de que estou a ficar velha na cabeça. Ao princípio custou-me um bocadinho. Mas lentamente estou a ficar mais em paz com esta nova situação pois percebi que a verdade é que eu não mudei assim tanto. Continuo com muitas curiosidades sobre o mundo, continuo a querer saber o que se passa, a querer aprender coisas novas e estar a par das novidades - mas só das novidades que me interessam, o que era uma coisa que já me acontecia quando eu era nova. Só que quando eu era nova podiam dizer que era esquisita porque me interessava por coisas diferentes. Agora, como as coisas que me interessam são claramente muito distintas das que interessam aos jovens de 20 anos, sou velha. É o que é. Já estou aceitando.
Nunca é tarde para mudar, dizem-me. Vá lá, não sejas obsoleta, não te deixes ficar para trás. Pois tudo muito bem, mas não vou mudar só por mudar, se não sentir necessidade. Gosto de ler e tenho descoberto novos autores (e até já tenho um kobo que recebi no natal, só ainda não o usei porque tenho livros pendentes em papel), mas não irei ler os livros de young adult nem de fantasia, de que nunca gostei; tenho redes sociais mas não me apanharão a falar para a câmara do telefone e a fazer stories em vídeo; vou a concertos de gente que ainda estou a descobrir mas não vou ouvir coisas que me fazem dor de cabeça; adoro cinema mas não vou ver filmes de terror, que odeio, ainda que estejam na moda; também não vou deixar de escrever mensagens com todas as letras e pontuação e não preciso de telemóveis de última geração nem de relógios que me entregam mensagens, pelo contrário, preciso é de desligar cada vez mais e por isso comprei um relógio de ponteiros. Evoluo, mas noutro sentido. Pura e simplemente deixei de conseguir acompanhar os tempos e estou-me bem nas tintas para isso. Até porque os tempos não são assim tão bons.
Vem isto a propósito do Substack, de que muita gente me fala tanto bem. Eu já quase não uso Facebook, não tenho TikTok, só vou ver o que se passa no Twitter por motivos profissionais e às vezes até me esqueço que existe o Linkedin. A única rede social que me tem entusiasmado é o Instagram, porque gosto de álbuns de fotografias e da possibilidade de fixar momentos e memórias. Andei a cuscar no Substack e é verdade que encontrei algumas pessoas a escreverem muito bem e deu-me assim uma certa nostalgia do "tempo dos blogues". Mas 1) sinceramente, não acredito que o encantamento vá durar muito e não tarda aquilo já vai estar cheio de vídeos e de influencers e de coisas que não me interessam para nada (isso já está a acontecer); e 2) eu nunca deixei o meu blogue, mesmo quando todos os blogues à minha volta foram morrendo, eu mantive-me aqui, porque mais do que aparecer e estar onde os outros estão, eu precisava apenas de um sítio para escrever e para ir arrumando os meus pensamentos. Portanto, não vejo qualquer necessidade de mudar.
Para não dizerem que sou um atraso de vida, aceitei publicar os textos do nosso colectivo - que, a propósito, já tem nome e casa mas ainda não está operacional - no Substack. É a minha evolução. Continuo aqui mas, pontualmente, também por lá. Vamos ver como corre. Nunca digas nunca, não é?
Enquanto pintamos as paredes e aprontamos tudo para a grande inauguração, fazemos à moda antiga. Para encontrarem outros atrasos de vida basta seguir os links:
Em cima do móvel, no patamar a meio da escada, estavam as molduras com as fotografias dos casamentos das minhas avós. Sempre que precisava de um cachecol ou uma luvas, lá estavam elas, a preto e branco, a posar felizes com os seus vestidos de noiva. Intrigavam-me aquelas fotos, das poucas que tínhamos das minhas avós antes de serem minhas avós. Como é que a avó Celeste, que ali estava com cabelos negros e compridos e uma postura tão direita, de cintura apertada, se tinha transformado na velhota baixinha e redonda, de cabelo cinzento e ralo, que me descascava a fruta enquanto víamos a novela da noite? Aquelas fotos provavam que elas já tinham sido novas. E lembravam-me que, como elas, eu também seria velha. Eu, que herdei as ancas largas da minha mãe, que herdei os dedos esguios e os joanetes da avó Helena, e, dizem, as covinhas na cara e o bom feitio da avó Celeste, serei uma velha que só vagamente dará ares à jovem que fui. Mesmo que as pessoas que nos encontram, depois de anos de ausência, insistam em dizer “estás na mesma”. Não estamos. E isso é bom. Ainda que nos custe um bocadinho sempre que nos olhamos ao espelho.
Não tenho as fotos dos casamentos, mas volto muitas vezes a esta foto. Aqui estamos todas. Eu e os meus espelhos.
"Espelho meu" é o segundo texto do nosso colectivo ainda sem casa, mas nem por isso menos activo. O primeiro texto foi sobre "Espalhar-se ao comprido".
Outros espelhos aqui:
“Não vou conseguir.”
“O que é o pior que pode acontecer?”
“Vou morrer de vergonha.”
“Sim, e?”
“Não vou conseguir.”
“Ok. Vai morrer de vergonha, e depois?”
“Depois nada.”
“Exacto. Depois nada. A vida segue. Não custa assim tanto.”
Fui educada para não correr riscos. Nunca dar um passo maior do que as pernas, como diziam os meus pais. Para ser funcionária pública e ter um emprego para a vida. Para casar e ser para sempre. Para guardar o dinheiro numa conta-poupança. Seria incapaz de investir na bolsa, como é óbvio, se nem sou capaz de jogar no casino, deus me livre de entregar uns poucos de euros à sorte de uma roleta, uns dados, um baralho de cartas, uma máquina com morangos e cerejas. Mais vale um pássaro na mão, lá diz a sabedoria popular. Fui educada para não correr riscos. Para não me meter em aventuras. Para ter sempre a situação controlada. Nunca saltei no bungee jumping e não nado fora de pé. Em qualquer situação eu sou a mãe, mesmo quando ainda não tinha filhos. Sou a que viu o caminho no mapa. A que tem benurons na mala. A que leva sempre um casaco. A que não se atrasa. A que, na dúvida, diz não. E, então, o que é que isso tem de mal? Ser responsável é bom, certo? Sim. Mas. Fui educada para não correr riscos. Para não sair da linha. Para me comportar. O que é que as pessoas vão pensar? Queria ter uma nota, uma qualquer, por cada vez que ouvi esta frase. As meninas não podem. As meninas não devem. O que é que as pessoas vão pensar? Fui educada para ter vergonha. Para ter medo. Para preferir não experimentar a atrever-me a falhar. E se não consigo? E se corre mal? E se? O que é que as pessoas vão pensar? Tremem-me as pernas e a voz, revoltam-se-me as tripas, envermelha-se a cara de cada vez que me ponho a prova. Fui educada para não correr riscos. Para ficar, não para ir. Para me deixar estar. Para pensar antes de falar. Para pesar prós e contras. Para jogar pelo seguro. Fui educada para não correr riscos, mas a vida ri-se de mim e diz-me que quem manda aqui é ela. Achavas que tinhas isto tudo controlado? Que ingénua. A vida ri-se de mim à tripa-forra. Troca-me as voltas. Deita-me cascas de banana pelo caminho e eu, tão burra, escorrego em todas. Espalho-me ao comprido, ali mesmo, à vista de todos.
“Sim, e?”
“Depois levanto-me.”
“O que é o pior que pode acontecer?” era o que o psicólogo me perguntava quando eu lhe dizia que não conseguia alguma coisa. E havia muitas coisas que eu não conseguia (que não consigo ainda). É uma boa pergunta. Permite-nos distinguir entre aquilo que pode ter consequências realmente graves, e por isso talvez devamos evitar, e aquilo que terá consequências menores, muitas vezes até só na nossa cabeça e exacerbadas, no meu caso, pelo medo e pela falta de confiança. Tipo: claro que não é boa ideia gastar as poupanças no casino, mas que mal viria ao mundo se agora te pusesses a escrever umas coisas diferentes?
Aqui estamos.
Foi a Carla que “resolveu que queria voltar a escrever e reuniu as tropas”. Eu não conheço a Carla. Nem a Joana. Nem a Helena. Nem a Mariana. Apenas conheço a Lia ao longe, das redes, e a Calita, um pouco mais ao perto mas ainda assim só virtualmente. Foi a Calita que me explicou aquilo do reunir as tropas e me desafiou a participar. Fiquei tão contente, nem sei se lhe disse isto assim com todas as letras, mas fiquei mesmo entusiasmada. Apresentei-me ao serviço, num grupo de whatsapp criado há escassos cinco dias, pronta a dar o corpo às balas. A ideia é termos um espaço partilhado e publicarmos semanalmente (ou quando for possível) textos escritos por todas sobre um mesmo tema. Ainda não temos esse espaço, mas não quisemos desperdiçar esta energia inicial, este ímpeto que nos levou a dizer bora lá, e por isso vamos já começar a publicar textos, por aqui e por aí. A Joana diz que vamos ressuscitar os blogues. Eu só queria ressuscitar o gosto por escrever. Acho que basicamente é isso. O primeiro tema é “espalhar-se ao comprido”.
“Sim, e?”
“Depois levanto-me.”
Aqui também estão a espalhar-se ao comprido comigo: