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Não sei bem que dizer. Quando o terror é imenso perdemos as palavras, não é? Nestes últimos dias tenho tentado fazer algumas leituras, preencher algumas lacunas que ainda há pouco admitia aqui, quando escrevi sobre a Golda. Ainda assim, tudo o que possa dizer é de uma enorme banalidade. Toda a violência é terrível mas a violência sobre civis, inocentes, é sempre pior. Porque odiamos?, volto a perguntar. Não tenho respostas. Surpreendem-me muito as pessoas que tomam posições muito convictas sobre este conflito (e sobre outros também, mas sobre este especificamente). A mim sobram-me as dúvidas. 

Deixo algumas pistas:

Falei com a Nofouz, 23 anos, estudante de medicina, da Cisjordânia. É só um lado da história, claro. A mim tocou-me muito.

Uma fotogaleria da Palestina antes de ser Israel, que me fez olhar para trás. As fotos são maravilhosas mas o que ali está é o retrato de uma região colonizada.

"Somos todos animais", um texto da Alexandra Lucas Coelho, que tem dito coisas que me fazem muito sentido.

A Isabel Lucas escolheu alguns livros que poderão ajudar a entender o que se passa na Palestina. Também há uma selecção de filmes, escolhidos pelo Palestine Film Institute.

Também podem ir (re)ler e (re)ouvir a série de reportagens que o Fumaça fez em 2017: "Palestina: Histórias de um país ocupado".

Com tantas imagens horríveis que nos chegam, lembrei-me da Susan Sontag e do seu "Olhando o sofrimento dos outros". Nunca o li todo, confesso, talvez seja este o momento certo.

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Palestinianos procuram sobreviventes após mais um bombardeamento na Faixa de Gaza (AP Photo/Abed Khaled)

 

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"Tragam-nos para casa". Em Telavive, uma mulher apela à libertação dos reféns israelitas (AP Photo/Petros Giannakouris)

 

(e, não sei se repararam, mas de repente deixámos de falar da Ucrânia. a guerra continua lá mas é como se já não estivesse a acontecer. isto devia tanto fazer-nos reflectir.)

 

publicado às 11:29

"A realidade só se mostra quando paramos, quando nos detemos antes de continuarmos", escreve Susana Moreira Marques. Está a falar como jornalista, como observadora, como pessoa que procura histórias e que quer entender o mundo à sua volta. É preciso tempo. Isto aplica-se ao jornalismo mas também à vida. É preciso tempo. Li o Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro estendida numa espreguiçadeira, à sombra, à beira da piscina num hotel em Évora. Estava imenso calor. Os putos alternavam entre mergulhos para refrescar e ficar no quarto, ao abrigo do ar condicionado, com a cabeça enfiada nos telemóveis. Nas férias não há hora para deitar nem para acordar nem para almoçar. Deixamo-nos ir, simplesmente. Às vezes, entediamo-nos. Estivemos quase sempre calados. Conversávamos sobretudo durante as refeições, eu ri-me das parvoíces infantis deles, eles riram das minhas parvoíces de velha. Jogámos snooker. Tivemos conversas sérias. Achei-os crescidos. Durante uns dias, ali e depois mais a sul, existimos quase fora do mundo. Suspendemos a vida. Como se não houvesse problemas para resolver, como se na semana anterior eu não me tivesse zangado muito por causa de coisas graves, como se três semanas antes eu não estivesse preocupadíssima por causa de outras coisas graves, como se não houvesse decisões importantes a tomar, como se estivesse tudo bem. É esse o fabuloso super-poder das férias. Temos tempo. Para fugir daquilo que somos todos os dias. 

E depois continuamos.

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O livro é uma reflexão muito importante e bonita sobre o que é isto de ser mulher, a partir da viagem de Maria Lamas, no final dos anos 40, e da sua obra Mulheres do Meu País. Lembrou-me as minhas avós. Fez-me pensar na sorte que temos hoje e no quanto ainda nos falta andar. E fez-me pensar no tempo e na importância de abrandar.

publicado às 12:17

Tenho muitas dúvidas que vá conseguir fazer pão em casa. Mas esta tarde de sábado bem passada já ninguém me tira. Aprendi muito a ouvir o senhor João, guardador de sementes antigas, e a Ana Raquel, que nos iniciou nos segredos da massa-mãe. Além disso, estive com pessoas boas (umas amigas, outras completamente desconhecidas), desligámos do mundo durante umas horas, metemos as mãos na massa e comemos pão quente feito por nós, o que é todo um orgulho que nem vos conto. Se não fizer mais pão, estarei pelo menos mais atenta ao comprar.

O avental lindo foi bordado pela minha mãe.

As gargalhadas que se imaginam sonoras são minhas, claro.

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publicado às 20:53

Como posso viver a vida ao máximo e não desperdiçar o meu potencial?, perguntou Ruben, de 13 anos, ao músico Nick Cave, através do (maravilhoso) site "The Red Hand Files". 

A resposta é fantástica. Serve para o Ruben e serve para todos nós. É exactamente isto.

"Dear Ruben, 

When I read this question, my initial thought was that the kid who wrote this has nothing to worry about, they’re going to be all right. Ruben, you are very smart, you are engaged with the world and I’m not sure what your creative interests are, but you can certainly already write. Not only that, you are also reaching out for answers. At thirteen, this is all brilliant! Luckily for you, Ruben, I have some! So here goes!

Read. Read as much as possible. Read the big stuff, the challenging stuff, the confronting stuff, and read the fun stuff too. Visit galleries and look at paintings, watch movies, listen to music, go to concerts –  be a little vampire running around the place sucking up all the art and ideas you can. Fill yourself with the beautiful stuff of the world. Have fun. Get amazed. Get astonished. Get awed on a regular basis, so that getting awed is habitual and becomes a state of being. Fully understand your enormous value in the scheme of things because the planet needs people like you, smart young creatives full of awe, who can minister to the world with positive, mischievous energy, young people who seek spiritual enrichment and who see hatred and disconnection as the corrosive forces they are. These are manifest indicators of a human being with immense potential.

Absorb into yourself the world’s full richness and goodness and fun and genius, so that when someone tells you it’s not worth fighting for, you will stick up for it, protect it, run to its defence, because it is your world theyre talking about, then watch that world continue to pour itself into you in gratitude. A little smart vampire full of raging love, amazed by the world – that will be you, my young friend, the earth shaking at your feet.

Love, Nick"

publicado às 08:12

Quem vir o meu Instagram há de achar que a minha vida é um rodopio de comidas e festas, de espectáculos e passeios. É a chamada ilusão das redes sociais. Gosto de guardar naquele cantinho as coisas boas que me acontecem, algumas publicações quase sem explicação para os outros, só pequenas dicas para mim, para que um dia mais tarde, ao olhar para as imagens, me consiga lembrar: foi neste dia que estive com esta pessoa, foi neste sítio que me senti feliz. Um pouco como sempre fiz com os meus álbuns de fotografias, os meus álbuns que ultimamente tenho desleixado (mas ainda não perdi a esperança, ainda vou organizar estes últimos anos todos em álbuns, ainda vou!). Tenho esta pequena obsessão com a memória. Esta vontade de guardar tudo. Não coisas, não objetos. Guardar os pensamentos, os sentimentos, as sensações, as pessoas, os sítios, as vivências. E é também por isso que venho aqui escrever, talvez não tanto como gostaria, às vezes mesmo só porque sim, porque sei que a memória nos prega partidas e que, se não apontar aqui ou não publicar no Instagram, é provável que me esqueça e eu não quero esquecer a alegria que foi aquela noite com a Angel Olsen, ou aquele jantar com amigos, a maravilha do documentário sobre a Cesária Évora, a corrida para chegar horas ao "Perfect Match" dos Hotel Europa, o cansaço extremo que quase me fez sentar no chão a meio do concerto dos Bon Iver.

É que, feliz ou infelizmente, a vida não é só Instagram. A vida também é trabalhar, limpar a casa, dobrar meias, ir ao supermercado, fazer comida, arranjar marmitas, zangar-me com os putos, orientar estudos, pagar contas, ligar ao canalizador, mudar a areia do gato, ter insónias, pôr o despertador para as 6:30, arranjar ainda mais trabalhos. Há dias (semanas) em que julgo que não vai ser possível fazer tudo. Que me dói o ombro por causa das muitas horas ao computador. Que os olhos quase se fecham a meio de um texto que tenho de escrever. Que estou tão cansada que vai tudo corrido a pizzas e hambúrgeres e os putos começam a queixar-se que não têm roupa lavada. Que me vejo tão aflita que, mesmo com bilhetes comprados, só me apetece ficar embrulhada numa manta no sofá. Aconteceu-me na terça-feira. Atolada em trabalho, com o corpo moído e a cabeça feita em água, tive que inventar forças que não tinha para vestir um casaco e me meter no metro.

Ainda bem que fui.

E venho aqui escrever porque não quero mesmo esquecer a felicidade que senti por me ter sentado, numa cadeira apertada lá no cocuruto, num Tivoli lotado para ouvir as palavras sábias da Angela Davis e da Gina Dent. Angela, americana de 78 anos, militante de esquerda, anti-racista e feminista, pela igualdade de todos e pelos direitos civis, e, também, abolicionista. Gina Dent, que eu não conhecia até há poucas semanas, investigadora, activista e parceira de Angela. Que duas mulheres maravilhosas. Sensatas. Inteligentes. Curiosas. Atentas. Claras. Num mundo povoado por estrelas que vêm a "summits" debitar "talks" mil vezes repetidas e ensaiadas, é inspirador ouvir duas pessoas que têm tanto para dizer mas que também páram para ouvir, que perguntam, que querem saber. Que não mandam bitaites, apoiam-se em investigação. Que duvidam e põem-se a si mesmas em causa. E até dou de barato que tenham ideias polémicas ou utópicas. A igualdade e a liberdade para todos são, ainda, utopias. Imaginar um mundo sem sistema prisional e policial é de, facto, muito complicado, para nós que estamos aqui muito bem instalados na nossa vidinha, achando que as coisas são como são e pronto. "As prisões foram tão naturalizadas que nem pensamos que poderíamos existir sem elas", alertou Angela Davis. Mas, se não imaginarmos e se não pensarmos o que é que teremos de fazer para que a abolição seja possível, então é que nunca irá acontecer. 

Angela Davis e Gina Dent lembraram que as prisões não existiram sempre. E é até engraçado perceber como as prisões surgiram como alternativa positiva em relação àquilo que existia antes: a condenação à morte ou os castigos físicos violentos. As prisões eram o sítio onde os criminosos esperavam pela condenação e passaram a ser a própria pena. Ela explica isso no livro Estão as prisões obsoletas?. Isto é tudo muito recente. Foi preciso primeiro estabelecer o direito universal à liberdade para que se considerasse que tirar a liberdade a alguém poderia ser um castigo em si mesmo.

Depois, questionaram: para que servem as prisões? Unicamente para castigar? Não. As prisões servem também, alegadamente, para manter as sociedades mais seguras. Para que a violência desapareça das nossas vidas. E estamos a conseguir cumprir esse objectivo? Nem por isso. "Se estamos a dar uma resposta a um problema, e falhamos, porque é que insistimos nessa resposta?", interrogou Angela Davis nessa noite.

"Há quem acredite que as prisões são sítios violentos porque os presos são violentos, mas na verdade as prisões são locais violentos por causa da violência do sistema prisional." A violência do encarceramento. A violência da força policial. A violência da existência de armas, da linguagem usada, das regras estabelecidas. E ainda sublinhou um outro facto: apenas uma pequena percentagem de pessoas está presa por crimes violentos. A maioria está presa por delitos menores, por reincidir, por desrespeito a regras (por exemplo, da imigração).  

Perguntemo-nos, então: o que estamos a fazer - a nível social, educacional, cultural, político, económico, da saúde mental, da integração, da responsabilidade social - para prevenir a ocorrência desses delitos? O que estamos a fazer para reabilitar e reintegrar as pessoas que já passaram pela prisão, para que não voltem? Acreditamos mesmo que o nosso sistema prisional não se limita a ser punitivo, é também um sistema de empoderamento e de melhoramento dos indivíduos?

E podemos ir ainda mais longe, como ela vai: "Há pessoas que quando nascem já estão condenadas à prisão, são criminosos à nascença", disse. Porque existe o contexto e a desigualdade e todas as circunstâncias que nos moldam e condicionam. Porque nem todos os que cometem o mesmo crime têm a mesma pena. Porque existem crimes em relação aos quais somos mais condescendentes. Porque existem as questões raciais, culturais, de género, de nacionalidade, de classe. Porque existe a injustiça, o preconceito, o abuso de poder. 

Por fim: as prisões existem e são cada vez mais e estão cada vez mais cheias porque existe um "sistema industrial de prisões", as prisões são já parte do capitalismo - dão lucro, dão emprego, fazem a "máquina" funcionar. É difícil acabar com as prisões da mesma forma que é difícil acabar com os combustíveis fósseis ou com a exploração laboral - porque há muita gente com muito a poder a ganhar muito dinheiro com isto.

Se calhar, disseram elas, "temos que repensar o que significa sentirmo-nos a salvo (safe) e sentirmo-nos em segurança (security)". Se calhar,  temos que nos perguntar como é que lidamos com os problemas criados pelo capitalismo e em que mundo queremos viver? Se calhar, "não é preciso só abolir as prisões, é preciso criar uma nova sociedade, é preciso uma revolução". E, sim, sabemos que não vai acontecer já, mas podemos imaginar como é que seria viver num mundo assim, sem prisões, sem polícias, sem exércitos, sem guerras, sem armas, e podemos tentar começar por algum lado.

E eu nem estou a dizer que concordo com tudo o que ouvi. Teria que pensar mais amadurecidamente sobre o assunto para poder defender a abolição das prisões. Mas é tão bom questionar ideias feitas, é tão bom pensar e duvidar e procurar soluções. Sim, ainda bem que fui. 

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Estes são os livros que tenho de Angela Davis. Comprei propositadamente mas acabei por não conseguir ler o Abolition. Feminism. Now., porque me meti em trabalhos e tenho mesmo andado muito ocupada, mas, depois disto, fiquei ainda com mais vontade de lê-lo.

Se quiserem, podem ver a sessão com Angela Davis e Gina Dent AQUI.

publicado às 20:20

Não sejamos injustos. Houve coisas boas em 2021.

Novos trabalhos, novos desafios.

Voltei a fazer yoga. Sou péssima mas estou a esforçar-me.

A viagem a Paris.

Os bons momentos com os meus putos.

Caminhar, voltar aos transportes públicos, andar a pé sempre que possível.

Voltei à terapia. Também sou péssima nisto mas estou a esforçar-me.

Os meus amigos (vocês sabem quem são). Não estive com eles tanto quanto gostaria mas aproveitei todas as oportunidades para encontrá-los, abraçá-los e mostrar-lhes o quanto são importantes para mim.

Fiz uma amiga nova ("e coisa mais preciosa no mundo não há").

Os espectáculos que vi, os filmes e as séries, os livros (poucos mas bons), as músicas que descobri e todas as outras coisas boas da vida.

A família reunida e feliz no dia do meu aniversário.

Os sonhos do natal.

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Para 2022 só queria isto tudo mas mais. 

publicado às 13:31

27
Dez21

Natal - Lado B

Para quem, como eu, gosta tanto do natal, esta época festiva pode tornar-se um bocadinho deprimente. Porque é uma época em que geralmente estamos mais introspectivos, olhamos mais para dentro, focamo-nos mais nas tais coisas essenciais, e em que também, inevitavelmente, nos confrontamos com o passar do tempo, com mais um ano que está prestes a terminar. E, mesmo sem querermos, damos por nós a fazer balanços, a pensar no que perdemos e ganhámos nestes meses. A balança desequilibra-se bastante, tenho que admiti-lo. Será de mim ou parece que a partir de uma determinada altura, como cantam os Xutos, "a vida é sempre a perder"? Houve coisas boas, que houve, mas na hora de fazer as contas debatemo-nos sobretudo com todos os nossos pequenos e grandes falhanços, com as perdas, com as doenças e as ausências, com as dores variadas, do corpo e da alma, com os erros e as distâncias, com os planos incumpridos e os sonhos adiados. Com a solidão.

No dia de natal saí de casa às dez da noite, apanhei o metro e fui à ZDB ouvir o Legendary Tigerman. Há anos que queria fazer isto mas havia sempre qualquer coisa que me impedia (havia aquele ai agora vais sair sozinha no dia de natal, isso é mesmo coisa de pessoa falhada, então ficava em casa, igualmente sozinha e deprimida mas ao menos ninguém via). Fui. Não conhecia ninguém, não falei com ninguém. Estive ali a desfrutar da música e a deixar-me ir. E foi bom. Teria sido melhor se estivesse acompanhada? Imagino que sim. Mas é o que temos.

Sozinha por sozinha mais vale fazermos o que queremos. 

Além disso, esta música é simplesmente linda:

Life ain't enough  for you, de Legendary Tigerman

publicado às 11:37

Há um ano fui despedida.

Há um ano, houve um despedimento colectivo na Global Media. Em mais uma das suas reformulações, o Diário de Notícias decidiu extinguir a secção de Cultura e despedir os jornalistas que ainda lá restavam. Foi o terceiro despedimento colectivo a que assisti nos mais de vinte anos que ali passei - o primeiro em 2009 e o segundo em 2014 - por isso já sabia bem como estas coisas eram, já sabia das justificações atabalhoadas que nos dão, da hipocrisia dos directores que fingem que não é nada com eles, das injustiças que são cometidas nestes processos e da habitual falta de consideração da casa por quem ali trabalha. Não fiquei surpreendida nem magoada nem nada. Recebi o telefonema do director quando estava a meio de um trabalho. Terminei as entrevistas que estava a fazer, depois decidi andar a pé até casa e pelo caminho liguei para um advogado amigo e para os meus pais e fui fazer o jantar. Em momentos de crise, sou a pessoa mais racional do mundo. Avalio a situação, percebo quais são os próximos passos a dar e sigo. É sorrir e acenar, como diziam os pinguins.

A decadência do jornal era óbvia há muito tempo (e continua) e também há muito tempo que eu me sentia insatisfeita ali. Consegui sempre, e isso tenho que reconhecer, encontrar momentos de felicidade no meu trabalho, porque eu sou geralmente feliz quando saio da redacção para falar com pessoas e contar as suas histórias. Mas a verdade é que essas ocasiões eram cada vez mais rarasNos últimos anos sentia-me a sufocar. A mirrar. Varias vezes pensei em sair. Tive esta conversa com alguns amigos, todos me aconselharam a ir embora, a "mudar enquanto é tempo". Mas faltava-me a coragem. Acomodei-me. Porque é do meu feitio, por medo da mudança, mas também por ter noção das dificuldades desse passo, sobretudo quando se é divorciada e com dois filhos, deixei-me ficar. 

Apesar disto tudo, não posso dizer que seja fácil ser despedida. Não é.

É, antes de mais, uma machadada no nosso ego. É impossível não sentir uma certa humilhação ao sabermos que somos dispensáveis. Descartáveis. Uma coisa é nós querermos sair, outra coisa é não nos quererem. Não vale a pena dourar a pílula: esta parte é mesmo difícil de engolir. 

E é também uma machadada na nossa estabilidade. A estabilidade financeira, sim, e a estabilidade da vida em geral. Porque toda a nossa vida é organizada em função do trabalho, daquelas tarefas, daquelas rotinas. Sobretudo quando se trabalha muito tempo no mesmo sítio. A nossa identidade parece irremediavelmente ligada àquela frase com que nos apresentamos há mais de vinte anos: "Maria João Caetano, do Diário de Notícias". E, de repente, fica um vazio. É um pouco assustador, admito.

Felizmente, não tive muito tempo para me apoquentar. Ainda nem tinha assinado os papéis da rescisão e já tinha novos trabalhos no horizonte.

Passou um ano. 

Correu tudo bem.

É verdade o que dizem, quando se fecha uma porta, abre-se uma janela. E eu tenho espreitado por várias janelas, algumas delas com vistas bem bonitas.

Tenho um emprego e, para além disso, tenho feito alguns trabalhos que me dão muito prazer (por exemplo AQUI ou AQUI ou AQUI). Também faço coisas de que não gosto tanto, mas isso é a vida. Tenho encontrado pessoas que me desafiam e estimulam a ser melhor. Continuo a aprender coisas novas. Continuo a gostar de ser jornalista.

A verdade é que profissionalmente estou bastante mais feliz do que estava há um ano, e isso é uma surpresa para mim, confesso.

So far so good.

A parte boa de ir ao tapete é aprender a cair. E depois levantamo-nos, sacudimos o pó e estamos prontos para outra.

publicado às 08:22

As mulheres passam muito tempo a falar sobre o seu corpo, sobre os defeitos do seu corpo, sobre o que têm de fazer para melhorar o seu corpo. Reparei nisso em todos os meus grupos de amigas, não é uma coisa que afecte mais umas do que outras, é geral. Gordura, peso a mais, celulite, rugas, peles flácidas, pêlos, de tudo isto as mulheres se queixam. Olham-se ao espelho e vêem mil falhas. Eu é as ancas, eu o rabo, eu as pernas, eu a barriga, as mamas que são pequenas ou que são grandes demais. Até mesmo as que têm tudo no sítio insistem em encontrar imperfeições. As mulheres planeiam dietas e exercício físico, discutem métodos, trocam experiências, menus e receitas, beber muita água, fazer jejum intermitente, eliminar os hidratos, contar as calorias, correr quilómetros, ir ao ginásio, contratar um PT. As mais determinadas ponderam consultas com médicos diversos, comprimidos milagrosos, intervenções cirúrgicas. É uma tarefa sempre em progresso. Marca-se um jantar e em algum momento o assunto aparece. Há sempre alguém que não vai pedir sobremesa, que não pode comer pão ou batatas fritas ou arroz, ou que avisa que vai comer mas só porque é um dia excepcional, o meu dia da asneira. Há sempre alguém a precisar de se controlar, de fechar a boca, para, definitivamente, emagrecer. É esse o objetivo. Emagrecer. As mulheres querem-se magras. 

Não estou a criticar as outras mulheres, atenção. Eu não sou excepção. Eu também sou em parte assim. Eu também queria ser magra. Eu também odeio os mil defeitos do meu corpo. E há momentos em que odeio todo o meu corpo. Eu também morro de vergonha ao ir à praia, sinto-me meia desconchavada ao vestir um biquíni, odeio comprar roupa porque concluo sempre que nada me serve e tudo me fica mal e, como é óbvio, morro de medo que os homens não gostem de mim por me acharem feia e gorda. Essa sou eu no meu dia-a-dia, com a auto-estima bem lá em baixo.

A única diferença é que eu combato esta vergonha do corpo de uma maneira muito peculiar (reparem na palavra, eu não digo que é a maneira certa, é só a maneira que eu arranjei para lidar com isto e tentar sofrer o mínimo possível). Nunca fiz uma dieta nem nunca tive um plano de exercício destinado a melhorar o meu corpo. A batalha acontece toda dentro da minha cabeça. É uma batalha enorme entre todos os meus traumas de mulher, todos os ideais de beleza que me foram inculcados e todos os estereotipos que se entranharam em mim desde que nasci e dos quais, por muito que queira, não consigo fugir, e aquela certeza, que fui adquirindo, conscientemente, deliberadamente, de que um corpo é só um corpo, que este corpo, que é meu e do qual não me posso livrar, que é na verdade aquilo que tenho de mais irredutível, não pode, apesar disso, ser o que me define. Que eu sou muito mais do que um corpo. Que qualquer mulher é muito mais do que um corpo. 

É uma batalha, digamos assim, entre sentimentos e razão. Racionalmente, eu estou-me nas tintas para o corpo e sei que não é isso que importa, mas no fundo, lá bem no fundo, sou uma fútil como todas as outras.

Portanto, se estiver vestida, se estiver feliz, se estiver bem com a minha vida, consigo ser super-racional. Sinto-me invencível, quero lá saber de como é que deveria ser o meu corpo. Mas quando estou mais exposta, quando algo corre mal, nos momentos em que me sinto mais frágil por algum motivo, é como se o meu corpo passasse a pesar mais vinte quilos, sinto-me miserável, não tenho dúvidas de que sou uma baleia e de que nunca ninguém (leia-se, um homem) vai alguma vez gostar de mim.

É que, depois, ainda há isto, temos de reconhecê-lo, somos todas mulheres modernas e emancipadas e preocupamo-nos com o nosso corpo não por causa dos outros mas porque queremos ser saudáveis e sentirmo-nos bonitas para nós (se eu não gostar de mim, quem gostará?, não era assim o anúncio?), mas a verdade é que é muito mais fácil gostar de nós próprias quando há alguém que também gosta e nos mima e nos diz que somos maravilhosas. A minha luta, muito pessoal, também passa por aqui. 

Como vêem, não é fácil estar dentro da minha cabeça. Está cheia de contradições e de coisas de que não gosto mas que não consigo evitar. Acho que já tinha explicado mais ou menos isto antes. Este também é um trabalho em constante progresso. Acredito muito que ter consciência das nossas falhas é um passo importante para melhorarmos.

Por isso, hoje, só porque sim, avanço mais um pouco nesta auto-terapia, dizendo: este é o meu corpo.

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A foto foi tirada pela Filipa num dia feliz. Encolhida, claro, para esconder as banhas. Mesmo assim, jurei que nunca a mostraria a ninguém. Mas agora achei que era ideal para acompanhar este texto, em jeito de perde a vergonha e assume os teus podres e os teus quilos, só possível graças às conversas recentes com a Ângela e com o Tiago que, cada um ao seu jeito, me fizeram perceber o quanto ainda tenho por andar neste processo de auto-aceitação e auto-estima.

Isto sou eu a aprender a ser feliz no meu corpo.

E a rir, pelo caminho.

(oxalá não tropece e me espatife toda)

publicado às 10:06

10
Mai21

Nove anos

Bernardo Sassetti (1970-2012)

Haverá um ano em que deixamos de contar os anos? Talvez. Mas isso não quer dizer que esqueçamos.

Há feridas que, mesmo cicatrizadas, deixam marcas que são para sempre.

publicado às 09:42


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