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Fui ver Anora no dia em que estreou, dia do meu aniversário. Uma matiné às duas da tarde no Nimas, a sala quase vazia, dois casalinhos jovens, uns quantos velhotes sozinhos. Entreolhamo-nos. Somos cúmplices. Somos os desocupados, aqueles que não têm mais nada que fazer numa tarde de sol a não ser enfiar-se numa sala escura, alheados do mundo. Quero lá saber. Gosto muito de ir a matinés, sobretudo durante a semana.
A protagonista, Anora, ou Ani, como ela prefere ser chamada, é uma "dançarina exótica". Trabalha num clube nocturno onde faz conversa com os clientes, dança para eles, no colo ou no varão, sussurra-lhes aos ouvidos, insinua-se de todas as maneiras possíveis para que eles desembolsem mais umas notas. Eventualmente, quando os clientes lhe agradam, Anora trabalha também como prostituta fora dali. Nas primeiras cenas do filme é só isto que acontece. Anora e as outras raparigas dançam e despem-se e seduzem homens com profissionalismo enquanto mascam pastilha elástica, nas pausas conversam sobre coisas banais e comem em tupperwares. Com desprendimento. Anora é uma operária do sexo, sabe exactamente o que tem de fazer, cumpre a sua função, maquinalmente. E é uma durona, não permite que abusem dela. Tem tudo controlado. As coisas complicam-se quando aparece um puto milionário, russo, disposto a pagar muito para poder estar com ela em exclusivo. A determinada altura, o filme muda de tom. Deixa de ser sobre uma dançarina exótica e passa a ser sobre uma miúda que, afinal, tem sentimentos. Que, quando tira o uniforme do trabalho, se deixa iludir e enganar como todas as outras. Que ainda acredita no sonho da Cinderela. E também uma miúda que não sabe lidar com a simpatia das pessoas porque, provavelmente, sempre foi só um corpo disponível para transação, como se essa fosse a única maneira de se relacionar de forma segura com os outros.
Gostei de Anora. O filme, vecendor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, mistura uma carga emocional com momentos quase cómicos, insinuando mais do que mostrando (e não estou a falar só de sexo). O Jorge Mourinha lembrou Pretty Woman - Um Sonho de Mulher, embora o filme com a Julia Roberts desse uma imagem bastante mais romantizada dessa máquina de vender sonhos que é a prostituição. Realizado por Sean Baker, o mesmo de Florida Project, e protagonizado pela impressionante Mikey Madison, ao lado de Mark Eidelstein como Vanya, Anora surgiu à minha frente precisamente no momento em que andava a ler A Teoria do King Kong, em que Virginie Despentes fala, entre outras coisas, sobre a prostituição, a pornografia e a prisão masculina em que o desejo das mulheres ainda está encerrado. Como feminista de esquerda educada numa sociedade conservadora e moralista, não tenho certezas nenhumas sobre como olhar para a prostituição. Exploração ou libertação? É um trabalho como os outros? Legalizar ou não? Numa tentativa para entender melhor o que estava em causa, escrevi há tempos sobre isso AQUI e AQUI. Ler a Despentes foi bom para me desassossegar, para me questionar, mas fiquei mais ou menos na mesma, ou seja, cheia de dúvidas.
Anora, com o seu corpo perfeito e descomplexado, exalando sensualidade, ilustra bem aquilo de que fala Despentes: ela tanto pode ser vista como a depravada que vai para a cama com qualquer um e é criticada pela sociedade por ser uma puta, como a miúda desesperada que faz o que é preciso para sobreviver e até consegue a nossa empatia. Na verdade, ela pode ser as duas ao mesmo tempo.