Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]



anora-1200-1200-675-675-crop-000000.jpg

Fui ver Anora no dia em que estreou, dia do meu aniversário. Uma matiné às duas da tarde no Nimas, a sala quase vazia, dois casalinhos jovens, uns quantos velhotes sozinhos. Entreolhamo-nos. Somos cúmplices. Somos os desocupados, aqueles que não têm mais nada que fazer numa tarde de sol a não ser enfiar-se numa sala escura, alheados do mundo. Quero lá saber. Gosto muito de ir a matinés, sobretudo durante a semana. 

A protagonista, Anora, ou Ani, como ela prefere ser chamada, é uma "dançarina exótica". Trabalha num clube nocturno onde faz conversa com os clientes, dança para eles, no colo ou no varão, sussurra-lhes aos ouvidos, insinua-se de todas as maneiras possíveis para que eles desembolsem mais umas notas. Eventualmente, quando os clientes lhe agradam, Anora trabalha também como prostituta fora dali. Nas primeiras cenas do filme é só isto que acontece. Anora e as outras raparigas dançam e despem-se e seduzem homens com profissionalismo enquanto mascam pastilha elástica, nas pausas conversam sobre coisas banais e comem em tupperwares. Com desprendimento. Anora é uma operária do sexo, sabe exactamente o que tem de fazer, cumpre a sua função, maquinalmente. E é uma durona, não permite que abusem dela. Tem tudo controlado. As coisas complicam-se quando aparece um puto milionário, russo, disposto a pagar muito para poder estar com ela em exclusivo. A determinada altura, o filme muda de tom. Deixa de ser sobre uma dançarina exótica e passa a ser sobre uma miúda que, afinal, tem sentimentos. Que, quando tira o uniforme do trabalho, se deixa iludir e enganar como todas as outras. Que ainda acredita no sonho da Cinderela. E também uma miúda que não sabe lidar com a simpatia das pessoas porque, provavelmente, sempre foi só um corpo disponível para transação, como se essa fosse a única maneira de se relacionar de forma segura com os outros.

Gostei de AnoraO filme, vecendor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, mistura uma carga emocional com momentos quase cómicos, insinuando mais do que mostrando (e não estou a falar só de sexo). O Jorge Mourinha lembrou Pretty Woman - Um Sonho de Mulher, embora o filme com a Julia Roberts desse uma imagem bastante mais romantizada dessa máquina de vender sonhos que é a prostituição. Realizado por Sean Baker, o mesmo de Florida Project, e protagonizado pela impressionante Mikey Madison, ao lado de Mark Eidelstein como Vanya, Anora surgiu à minha frente precisamente no momento em que andava a ler A Teoria do King Kong, em que Virginie Despentes fala, entre outras coisas, sobre a prostituição, a pornografia e a prisão masculina em que o desejo das mulheres ainda está encerrado. Como feminista de esquerda educada numa sociedade conservadora e moralista, não tenho certezas nenhumas sobre como olhar para a prostituição. Exploração ou libertação? É um trabalho como os outros? Legalizar ou não? Numa tentativa para entender melhor o que estava em causa, escrevi há tempos sobre isso AQUI e AQUI.  Ler a Despentes foi bom para me desassossegar, para me questionar, mas fiquei mais ou menos na mesma, ou seja, cheia de dúvidas. 

Anora, com o seu corpo perfeito e descomplexado, exalando sensualidade, ilustra bem aquilo de que fala Despentes: ela tanto pode ser vista como a depravada que vai para a cama com qualquer um e é criticada pela sociedade por ser uma puta, como a miúda desesperada que faz o que é preciso para sobreviver e até consegue a nossa empatia. Na verdade, ela pode ser as duas ao mesmo tempo. 

publicado às 09:33



Mais sobre mim

foto do autor