Voltar ao topo | Alojamento: Blogs do SAPO
Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Sinto-me uma privilegiada. Por ter visto alguns dos espetáculos da Cornucópia. Por ter visto "Demónios", de Lars Nóren, na primeira vez que fui ao Teatro do Bairro Alto em 1997. "O Casamento de Fígaro" com aquele grupo de actores - Rita Durão, Rita Loureiro, José Airosa e Ricardo Aibéo. "O Colar", de Sophia, que era uma preciosidade. "A Gaivota", de Tchekov. "A Tempestade", de Shakespeare, com Nuno Lopes e João Pedro Vaz. "A Varanda", de Genet. Tantos outros. Mesmo quando algum espectáculo não me enchia as medidas, saí sempre de lá mais rica. Sinto-me uma privilegiada. Por ter visto Luís Miguel Cintra a representar. E por ter tido a oportunidade de conversar com ele, de o ouvir a explicar-me o teatro e a vida. A Cornucópia ajudou-me a ser uma espectadora melhor, mais atenta, mais exigente. A Cornucópia fez-me pensar. Mas também me divirtiu, deliciou-me, fez-me rir, comoveu-me. É tudo isso o bom teatro.
É verdade que já não se faz muito teatro assim, como o deles. Com aquele cuidado em cada pormenor, com aquela beleza, com aqueles cenários maravilhosos da Cristina Reis, com aquela dedicação exclusiva. Ali acreditava-se que para se conseguir a excelência era necessário tempo - para pensar, para criar, para investigar, para ensaiar, para errar e emendar e repetir, para reflectir, para descansar. Este tempo custa dinheiro. Hoje em dia, a maioria dos atores, encenadores e outros criadores tem que se dividir por muitas actividades, têm que fazer telenovelas de manhã, varrer o chão do teatro à tarde e subir ao palco à noite para conseguirem sobreviver. As companhias têm que preencher muitos quadros em excel, cumprir muitos objectivos, fazer não sei quantas criações novas por ano e mais as digressões e mais o serviço pedagógico e preencher mais uns formulários e cumprir não sei quantos prazos e regras e requisitos. A Cornucópia assumiu que não está para isso. Já fez o que tinha a fazer, já deu provas da sua qualidade ao longo destes 43 anos. As pessoas estão mais velhas, o Luís Miguel está doente. Não se vai pôr a fazer monólogos e peças portáteis só para cumprir objectivos de secretaria. Não poderia nunca baixar a fasquia da qualidade. "Não querem assim como nós fazemos, paciência", dizia ele de há uns anos para cá. "Não me vou pôr a mendigar subsídios." Mas mesmo com todos os avisos, mesmo vendo os sinais, não queríamos acreditar que este momento fosse chegar. (teria sido possível, como alguns defendem, ter aberto um regime de excepção para que esta companhia, ou outras, não tivessem que se sujeitar às mesmas regras dos grupos mais recentes e com outros modelos de produção? gostaria de acreditar de sim. mas temo que os problemas e as polémicas e até as injustiças que essa solução iria originar iriam acabar por torná-la desastrosa)
É muito triste, como me dizia o Tiago Rodrigues, saber que os nossos filhos já não vão poder ver os espectáculos da Cornucópia. Eu própria sinto isso às vezes, mas ao contrário, penso que pena não ter visto este espetáculo que aconteceu quando eu era ainda criança. Mas é assim mesmo. O teatro é a arte do efémero. Por isso eu fico triste mas prefiro pensar que foi uma sorte e um privilégio ter estado por aqui, nesta cidade, a ver teatro, e ainda ter apanhado a Cornucópia em actividade.
(eu sou das que tendem a ver sempre o copo meio-cheio, mas sobre isso falarei amanhã que hoje já é muito tarde)
Esta é uma imagem do primeiro espetáculo da Cornucópia, "O Misantropo" (1973)