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Na feira do livro do ano passado não consegui comprar o Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos porque o livro ficou esgotado em pouco tempo. Parecia que toda a gente andava a ler a Olga Tokarczuk, lembram-se? Acabei por comprá-lo em julho deste ano, numa fnac manhosa no intermarché de Lagos, numa semana em que estive na praia e, sabe-se lá como, ao fim de uns dias já tinha lido os três livros que tinha levado. Não foi fácil. Vinha embalada com a escrita gulosa da Alda de Céspedes, da Alana S. Portero e do Salman Rushdie (de que ainda hei-de falar um dia destes). E de repente encalhei ali em palavras menos comuns, numa escrita mais exigente. Desde logo porque me transportava para uma paisagem agreste e para mim completamente estranha, na Polónia. A autora entretém-se em pormenorizadas descrições da natureza, que me aborreceram. A natureza impõe-se em todo o livro: os animais, as plantas, os montes, a neve. Já para não falar da obsessão da protagonista com a astrologia, um mundo que nada me diz. Acabei por "entrar" no livro e até por simpatizar com aquela mulher, Janina, talvez um pouco "doida", como todos diziam, mas com uma sensibilidade especial e uma enorme capacidade de se dar aos outros, sobretudo os mais frágeis. O livro também retrata bem a maneira como as pessoas estão ligadas numa aldeia, e como os pequenos ódios e as pequenas amizades acabam por ser tão importantes neste microsmos. Confesso que fiquei curiosa para ver que mais escreveu esta autora premiada com o Nobel.

Estava eu a pensar no que iria ler a seguir quando me chegou à caixa do correio A Forasteira, de Olga Merino. Nunca tinha ouvido falar desta autora espanhola e não tinha qualquer referência sobre o livro. Mas algo ali me chamou a atenção. Estava mais uma vez perante uma protagonista feminina, a narrar-se na primeira pessoa. E mais uma vez perante uma mulher que, depois dos desaires da vida, encontra no campo a sua casa. Neste caso, um campo que me pareceu muito familiar. Era em Espanha, mas podia ser no Alentejo. O calor abrasador, a terra ressequida, a aldeia de portas fechadas, as vendas onde os homens bebem ao fim do dia, os suicídios, tudo ali eu conhecia, até a linguagem, com recurso a palavras antigas e até esquecidas mas que me faziam todo o sentido. Angie cresceu nos anos 80, como eu. Conheço as canções que lhe povoam a memória. Percebo a sua vontade partir, de se encontrar longe da aldeia. Percebo a sua vontade de voltar e de se encontrar na aldeia. É como se ela fosse uma velha conhecida, não uma amiga mas alguém com quem me consigo relacionar, porque partilhamos o mesmo mundo, vimos de terras que enfrentam problemas semelhantes com a agricultura e a falta de mão-de-obra e a falta de futuro. Não sei o que é que outras pessoas, com outras experiências, vão achar do livro, mas para mim foi realmente uma boa surpresa.

Completamente por acaso, o livro que li a seguir foi Terrinhas, de Catarina Gomes. Outra vez uma mulher a braços com as suas memórias e com um regresso à terra dos pais. Aqui a terra era outra - mais a norte, mais verdejante e montanhosa, plantada com batatas. Aqui não foi a terra que me conquistou mas foi a descrição exacta de como foi crescer naquele tempo. Os brinquedos, os programas na televisão, a decoração das casas. Aquela contenção que havia, não porque fosse mesmo necessária, mas porque era assim que devia ser. Aqueles pais sempre preocupados com um caminho que fosse um bocadinho mais incerto, "mas depois consegues arranjar trabalho, filha?". Aquele "o que é que as pessoas vão pensar" que orientava a nossa conduta. Outra vez o querer sair e o querer voltar. Este livro é, antes de mais, um grande hino à família e ao que existiu antes e que nos enforma de maneiras que nem sempre percebemos. Podemos tentar fugir, como Janina ou Angie ou Cláudia, mas dificilmemte conseguimos escapar ao nosso passado, tal como não nos conseguimos livrar da terra que se entranha nas unhas e na pele

Eu nunca usei a expressão "ir à terra", até porque nunca tive, efectivamente, uma ligação à terra. Venho do Alentejo mas de terras não sei nada, sou da vila, do alcatrão, das casas muito brancas, das ruas perpendiculares e paralelas. Durante muito tempo ia a casa, porque era ali de facto a minha casa. Depois, quando arranjei uma casa minha, passei a ir a casa dos meus pais ou, simplesmente, a Ferreira. Ainda assim, quando andei à procura de uma imagem para este post decidi roubar ao meu pai esta foto de terra. Cada pessoa tem a sua paisagem-casa. A minha é mais ou menos assim.

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publicado às 15:24



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