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Great Yarmouth, o filme de Marco Martins, remexeu-me por dentro de uma maneira que há muito já não sentia no cinema. Saí entorpecida da sala escura. Amargurada. Nos últimos dias, de vez em quando, lembro-me da Tânia, da sua minissaia de ganga, das rugas na cara séria, da voz rouca, dos passos firmes com que caminha pela ruínas da cidade, da bolsa que traz à cintura e onde guarda os seus preciosos apontamentos, quem pagou, quem deve, as notas enroladas em canudinhos e a caixa de Vicky Vaporup [o creme de cheiro intenso a mentol que coloca no nariz para não sentir os odores da podridão da fábrica, o cheiro dos perus mortos, das tripas, do sangue coagulado que se entranha nas mãos e nas roupas e não há maneira de se conseguir tirar aquelas nódoas], das aulas de inglês debitadas pelos phones nos ouvidos, do modo como repete a palavra "comfortably". Não há nada de confortável em Great Yarmouth, uma cidade inglesa à beira-mar, que já foi "the finest place in the universe", assim lhe chamou Charles Dickens, e agora é um lugar decadente, onde só os velhotes que não têm dinheiro para vir para o Algarve aparecem para férias baratas onde podem sentir a maresia, jogar às cartas, perder-se em noites de karaoke e ter aulas de dança de salão em hotéis de terceira mas que, ainda assim, são melhores do que os hotéis (chamar-lhes hotéis é um claro eufemismo) que Tânia gere, com precisão de merceeira, e onde instala os emigrantes portugueses, chegados em camionetas, carregados de sacos plásticos, que fogem da crise para tentar ganhar algum dinheiro a desossar perus. São portugueses em Inglaterra, podiam ser nepaleses nas estufas de Odemira ou indianos a pedalerem para nos entregarem hambúrgeres no pão à porta de casa. "Eles chamam aos portugueses pork cheese, mas eles precisam de nós para trabalhar nas fábricas", diz a Tânia, a "mãe" como eles lhe chamam, porque ela trata deles, arranjas-lhes casa, garante que têm trabalho e recebem o salário todas as semanas, a "puta de merda" como eles também lhe chamam, porque é ela que os engana com palavras doces, promete-lhes "good amenities" mas depois guarda-lhes os passaportes e prende-os naquela cidade sem sol onde os portugueses são tratados abaixo de cão (e a expressão aqui tem todo o sentido).  A Tânia, brilhante interpretação de Beatriz Batarda. Não é a única, mas é a que se destaca, porque é ela que nos conduz durante todo o filme. É com ela que acordamos todos os dias, ainda noite cerrada, é com ela que entramos na fábrica e sentimos o estômago às voltas, é com ela que sonhamos com dias de sol e dançamos ao som de Beverly Craven, "Promise me, you wait for me, 'cause I'll be saving all my love for you". Só o amor lhe (nos) dá alguma esperança. Só o amor lhe descobre as fragilidades. O amor, que amolece corações, não é bom conselheiro nos negócios, já o sabemos. Mas é o risco que temos de correr. "Comfortably", dizer mil vezes até conseguir acertar na pronúncia correcta e mesmo assim não saber como é, "comfortably".

Great Yarmouth é o filme que surgiu depois do espectáculo Provisional Figures - falei dele AQUI.

Se gostam de ficar desassossegados, não percam.

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publicado às 09:18



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