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Na minha casa havia (e quando eu digo a minha casa quero dizer a casa onde cresci) uma cozinha que tinha uma porta para uma despensa. Na porta da despensa estava sempre pendurado um calendário, daqueles que tinham uma fotografia com gatinhos ou flores no topo e depois era preciso ir arrancando as páginas para passar os meses. Todos os anos mudávamos o calendário.
Lembrei-me disto quando estava a ler Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral. Aliás, lembrei-me de muitas coisas da minha infância porque o narrador do livro, que é também o autor, há de ter mais ou menos a mesma idade do que eu e cresceu nos anos 70 e 80 a ver as novelas que eu via, a ouvir as músicas que eu ouvia e a ter brincadeiras e conversas muito parecidas com as minhas. Esse foi, sem dúvida, o primeiro grande fascínio que este livro exerceu em mim. Quando ele fala do Bataclan eu sei exactamente do que é que ele está a falar. Ou o Zeca Diabo. Ou a Vera Roquete. Ou as bicicletas BMX. Ou o 605 Forte. Até porque a Margem Sul é um bocado Alentejo. Bruno Vieira Amaral tem essa habilidade de trazer estes pequenos nadas das nossas vidas quotidianas para os seus romances. De transformar as minhas memórias de infância em cenário de um crime. A Baixa da Banheira onde eu ia de visita aos meus tios, o parque infantil com um avião onde brincava com os meus primos, aquelas ruas cheias de blocos de apartamentos como não havia na minha terra. O trânsito na ponte para chegar a Lisboa.
Há mais coisas neste livro de que gosto mesmo muito. Uma é o facto de a ficção assentar não só em memórias como em factos reais. O autor teve, certamente, de fazer uma enorme investigação para poder trazer todos aqueles factos para o livro sem cometer erros. Seja citar um artigo de jornal ou referir um acontecimento que apareceu no telejornal em 1985, o filme que estava a dar na televisão ou as cheias que molharam Luanda. São estes pormenores verdadeiros que dão consistência àquela história e àquelas personagens. E lhe permitem imaginar as vidas que poderiam ter existido pelo meio. Juntar as histórias que a avó lhe contou com as histórias que a avó lhe poderia ter contado e aquilo encaixar tudo de tal maneira que deixa de ser possível distinguir entre verdade e ficção. Acho esse trabalho fascinante.
E, finalmente, um tema que tanto me interessa: nunca tinha lido nenhum romance onde se retratasse tão bem a vida dos africanos e portugueses que vieram das ex-colónias. E dos seus filhos e netos. Claro que há O Retorno, da Dulce Maria Cardoso. Mas no livro do Bruno Vieira Amaral já estamos numa fase posterior - na fase da instalação, da integração (ou não), do que se seguiu. Dos sonhos que ficaram para trás. Da África que se instalou à volta de Lisboa. Dos bairros como guetos. Dos trabalhadores nas obras. Ou na Lisnave. Nos domingos com cerveja. Nos sabores que vieram de longe. E os putos que cresceram nesses novos bairros e que de África só ouviram falar.
Que boa leitura.