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Já passaram algumas semanas mas não queria deixar de escrever sobre O Sol do Futuro, o filme de Nanni Moretti. Não é um filme extraordinário. É um filme imperfeito, como são geralmente as comédias do Moretti. Comédia dramática é como lhe chamam. Não é daqueles filmes em que se dê grandes gargalhadas. Fica sempre ali no limite entre o isto tem graça, isto é só parvo, isto é muito triste. Ainda assim, eu gostei bastante.
Palombella Rossa, de 1989, abria com um acidente de carro. Michelle (interpretado por Moretti) perdia a memória. Quem sou eu?, perguntava-se. "Ah, eu sou um comunista". Não vi nenhum filme anterior dele mas sei que, pelo menos a partir daí, o debate sobre a relevância do comunismo e sobre o que é ser comunista é uma constante nos filmes de Moretti.
Destaque para dois documentários:
A Coisa (1990) reúne intervenções de comunistas italianos durante os debates que aconteceram em várias secções do partido, após a queda do Muro de Berlim e do Bloco de Leste e depois de o secretário-geral do PCI, Achille Occhetto, ter defendido uma remodelação do partido, mudando o nome e os símbolos, para acompanhar a nova realidade. A desilusão dos velhos comunistas italianos, as memórias da resistência ao fascismo, as perguntas que ficam sem resposta, a defesa dos trabalhadores e de um ideal que, apesar de tudo, parece continuar a fazer sentido - o filme é um documento interessantíssimo sobre aqueles tempos.
Santiago, Itália (2018) viaja até ao Chile de Allende, breve experiência de socialismo que termina com o golpe de estado de 11 de setembro de 1973. Com muitas imagens de arquivo e os relatos de um grupo de entrevistados que, percebemos depois, são todos antigos militantes da esquerda que, depois de prisões e torturas e percebendo que a ditadura estava só a começar, acabam por se refugiar na Embaixada de Itália e, finalmente, ser extraditados para Itália como refugiados políticos.
Dos filmes de Moretti que vi, os meus preferidos são O Quarto do Filho (2001) e Três Andares (2021) que são, precisamente, aqueles que não são comédias e que têm menos política e mais família (cada pessoa tem as suas manias, não é?).
Mas, se olharmos para Palombella Rossa (1989), Caro Diário (1993), Abril (1998) e este O Sol do Futuro (2023), é muito fácil encontrar pontos de ligação. Antes de mais, porque as personagens interpretadas por Moretti são uma espécie de alter-egos do próprio realizador. Umas vezes mais assumidamente autobiográficas (como em Caro Diário e Abril), outras vezes menos, mas temos sempre ali um pouco de Moretti com os seus interesses, as suas dúvidas. Fazendo lembrar um pouco Woody Allen, até pela torrente de discurso atabalhoado e pelo tom auto-depreciativo, só que com questões muito diferentes. A política e o cinema são os seus temas de eleição, a política, o cinema e a vida misturam-se nos filmes como se misturam na vida de Moretti. Contaminam-se. Em Abril assistimos à chegada de Berlusconi ao poder. Nanni quer fazer um documentário sobre a campanha eleitoral mas, ao mesmo tempo, está a acompanhar a gravidez de Sílvia e o nascimento do seu filho, Pietro. A sua atenção dispersa-se. O pessoal e o político confrontam-se.
É também engraçado ver como Moretti envelhece no ecrã, um filme a seguir ao outro, e como as suas questões se mantêm ou se alteram. Podemos comparar a crise existencial da personagem do realizador de Abril com a crise existencial de Giovanni, a personagem do realizador de O Sol do Futuro. Neste, Nanni (diminutivo de Giovanni) assume quase o papel de um "velho do Restelo", que não entende como os jovens fazem cinema nem se quer vender à Netflix. Com um "realizador em crise", com Margherita Buy e Silvio Orlando, actores que conhecemos de outros filmes de Moretti, com momentos musicais e uma grande parada final com todas as personagens, O Sol do Futuro dá-nos uma certa sensação de déjà vu. A acção passa-se em 1956, durante a invasão da Hungria pela URSS, que o PCI apoia. Voltamos a ter um confronto entre pessoal e político. Que espaço para as pessoas e que papel para as ideias individuais num partido comunista? Afinal, o partido somos nós ou temos que nos sujeitar às decisões da cúpula?
Desta vez, talvez cansado de tanta desilusão, Moretti decide alterar o final da história e fazer da utopia realidade. Se não é para isso que serve ser o realizador do filme, então é para quê? Há uma ingenuidade grande naquele final povoado de bandeiras vermelhas, é verdade. Mas não nos enganemos: Moretti sabe que aquilo é um exercício de ficção sobre um futuro que poderia ter sido. Que está a mudar o passado porque não pode mudar o presente. É por isso que aquela alegria é também um bocadinho triste.