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Estamos em casa. Eu e os putos.
Não me queixo.
Lembro-me, primeiro, das pessoas que não podem ficar em casa. Os profissionais de saúde, claro. Mas também todos os outros que mantêm a máquina a funcionar. Os que trazem os legumes e as massas para os supermercados. Os que trabalham nos supermercados. Os padeiros. Os que recolhem o lixo. Os motoristas dos autocarros. Os polícias. Todos os outros.
Lembro-me, depois, das pessoas que ficam em casa mas que não podem trabalhar e que, por isso, não vão ganhar dinheiro. Os actores e músicos cujos espectáculos foram cancelados, por exemplo. Os técnicos e todas as outras pessoam que iam trabalhar nesses espectáculos. Os miúdos que trabalham nos quiosques de comida. Os condutores de tuk-tuk. Os donos de pequenos e médios negócios, sejam eles cafés, restaurantes, lojas de roupa ou de outra coisa qualquer, agências de turismo, táxis, tudo o resto. Quase todos os trabalhadores independentes e pequenos empresários vão passar por muitas dificuldades nos próximos tempos.
Leio por aí que este é um vírus democrático, atinge todas as pessoas sem distinção de classe social. É verdade. Mas também é mentira. Como sempre, os mais ricos estão em melhores condições de se defenderem. Os que têm contratos decentes e protecção social também. E os que têm profissões "limpas", os que trabalham com um computador e um telefone. Estamos de quarentena mas não somos todos iguais.
Somos privilegiados. Há que ter consciência disso.
E, no entanto, queixo-me.
Vou estar a trabalhar em casa, oito horas por dia, uns dias mais, uns dias menos, ainda não sei, mas vou estar a trabalhar. E só isso já seria complicado, na minha profissão, porque estou habituada a ir aonde as coisas acontecem e agora ou não acontecem coisas ou eu não posso ir lá. Vai ser bastante exigente. Mas há mais. Eu vou estar a trabalhar em casa com os dois putos. Que já não são crianças, já não se entretêm a fazer desenhos nem a brincar com bonecos. São adolescentes que vão discutir por causa da playstation. Que vão passar horas a ver youtube. Que vão ficar insuportáveis porque não terão como gastar a sua energia. Que vão ser uns queridos e ajudar-me muito, algumas vezes, mas também vão fazer-me a cabeça em água, isso é certo, outras tantas. Enquanto eu vou estar a trabalhar. Por isso, poupem-me, ok? Não quero saber da escola virtual nem das actividades muito bonitas que todos vocês me estão a aconselhar para eu fazer com os meus filhos. Li artigos em que me sugeriam tirar um curso qualquer online ou aprender a fazer origamis. Diziam-me para aproveitar para ler e para fazer arrumações em casa. Para fazer tiktoks com as crianças ou fazermos um filme familiar. Como se isto fosse uma espécie de férias e agora temos que nos divertir todos. Não. Se vocês vão ficar em casa e não têm que trabalhar, óptimo, aproveitem, sejam felizes. Mas eu vou estar a trabalhar e a cozinhar e a tentar manter a minha sanidade mental e no pouco tempo livre que me resta vou sentar-me no sofá e ver um filme ou então adormecer. Não tenho tempo para estudar com eles nem tenho cabeça para os obrigar a estudar sozinhos. E não sei se terei paciência para muito mais do que tentarmos sobreviver, mantendo a calma e sem nos zangarmos. Se conseguirmos isso já me darei por muito feliz. Tudo o que vier depois é lucro.
E, já agora, uma palavra de conforto e solidariedade a todos os pais e mães sozinhos que vão ficar quarentenados com os seus filhos e não vão ter nenhum adulto com quem se possam revezar nas tarefas domésticas e na atenção que vão dar aos filhos. Que não têm com quem conversar e desabafar, com quem palhaçar e gargalhar, quem lhes dê abraços e diga que vai ficar tudo bem. Quem os faça sentir menos sozinhos.
Estamos em casa. Eu e os putos.
Vamos ficar assim duas semanas, um mês, o tempo que for necessário. Se tudo correr bem, vamos safar-nos. Mas vamos chegar ao fim desta quarentena diferentes daquilo que somos hoje. Não sei se melhores, se piores, se mais enlouquecidos ou mais conscientes, se a odiar-nos ou mais próximos, se a dar importância só às coisas realmente importantes ou a cagar-nos para o mundo, não consigo imaginar. Mas sei que vai ser um desafio enorme.