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O Caderno Proibido é um livro que é como um diário escrito por uma mulher, Valeria, que tem 43 anos, trabalha como secretária num escritório, é casada com Michele, que trabalha num banco, e têm dois filhos, um rapaz e uma rapariga, ambos a terminar os estudos de Direito. Moram em Roma, numa Itália que se reconstrói depois do fascismo e das guerras. Vivem modestamente. Ao serão, Michele gosta de ouvir música clássica na rádio enquanto Valeria passaja a roupa. De vez em quando vão ao cinema. São felizes. Ou assim ela pensa.
A primeira entrada do diário é de 26 de novembro de 1950. Valeria, esposa dedicada, sai de casa num domingo de manhã para comprar cigarros para o marido. "Queria que, quando ele acordasse, os encontrasse na mesinha de cabeceira: aos domingos, dorme sempre até tão tarde." Na tabacaria vê um caderno de capa preta e sente uma incompreensível vontade de comprá-lo. Para escrever o quê? Não sabia, mas ainda assim compra o caderno. "Preciso mesmo de um."
Começar a escrever um diário causa imensas mudanças na sua vida. Em primeiro lugar, apercebeu-se de que não tinha qualquer privacidade. Não tinha (como disse Virginia Woolf) um quarto só seu, nem sequer uma gaveta que pudesse fechar com uma chave. Uma mulher-esposa-mãe não pode ter segredos, ainda que inofensivos? Não haveria espaço para Valeria ser Valeria, simplesmente, sem ser para os outros? E como seria essa Valeria verdadeiramente? Para escrever começou então a arranjar artimanhas e a dizer pequenas mentiras de forma a ficar sozinha. Esconder o caderno era também esconder uma parte de si, o que ao mesmo tempo considerava um direito mas a fazia sentir-se uma traidora. Finalmente, escrever no seu diário fê-la tomar consciência da sua vida, como nunca antes tinha acontecido. "Dantes, esquecia-me logo do que acontecia cá em casa; agora, pelo contrário, desde que comecei a tomar notas dos acontecimentos de cada dia, conservo-os na memória e tento perceber porque é que ocorreram."
Primeiro, achou que não teria nada de relevante para escrever, porque a sua vida era bastante monótona e normal. Mas, à medida que escrevia, as coisas do dia-a-dia pareciam ganhar novos contornos. “A minha vida sempre me pareceu insignificante, sem acontecimentos notáveis, fora o meu casamento e o nascimento dos meus filhos. Pelo contrário, desde que comecei por acaso a ter um diário, parece-me descobrir que uma palavra, uma entoação, podem ser tão importantes como os factos que estamos habituados a considerar importantes, ou até mais. Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias é talvez aprender a compreender verdadeiramente o significado mais recôndito da vida.”
A cada novo dia, ao longo de seis meses, a cada nova entrada no diário, Valeria vai questionando o seu papel como mulher, mãe, filha, esposa, amiga, funcionária; toma consciência da hipocrisia da sociedade e da submissão a que está sujeita, só por ser mulher; põe em causa a educação que dá aos seus filhos, a relação que tem com Michele, as expectativas que todos parecem ter em relação a si; confronta-se com os sonhos que não cumpriu, com os sonhos que ainda quer concretizar, com o seu envelhecimento, imposto pelos outros mas que ela não sente no seu corpo nem na sua vontade. Quem sou eu, afinal? Como é que cheguei aqui? Para onde vou a seguir?
A italiana Alda de Céspedes escreveu O Caderno Proibido em 1952, mas - e isto é verdadeiramente impressionante - as mulheres de 2024 vão compreender Valeria e vão identificar-se com ela de tantas maneiras que também nós, à medida que lemos, nos pomos a perguntar como é que permitimos, ainda, mais vezes do que seria desejável, que seja o olhar dos outros a definir-nos. Porque uma mulher não pode, uma mulher não deve, a maioria das mulheres ainda tem tantos espartilhos na cabeça que dificilmente se expõe de forma franca, sem véus, sem subterfúrgios - e o que escreveríamos nós se tivéssemos também um diário secreto que mais ninguém fosse ler? Quem seríamos nós se não tivéssemos que sê-lo para os outros?
Por motivos óbvios, Valeria fez-me lembrar Delia. Gostei muito, muito deste livro que devorei na semana passada, enquanto desfrutava de uma merecida pausa no Algarve. Foram poucos dias, mas foram maravilhosos. E com óptimas leituras (irei tentar escrever sobre os outros livros que tenho lido e que valem também muito a pena).