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Há uns tempos, revi o filme Os Acusados, realizado por Jonathan Kaplan e protagonizado por Jodie Foster. O filme é de 1988. Devo tê-lo visto pela primeira vez por volta de 1990, mais ou menos, porque naquela altura os filmes demoravam a chegar ao cinema da minha terra. Eu era uma miúda, não sabia nada da vida nem dos homens nem do sexo. E, no entanto, lembro-me de ficar bastante impressionada e revoltada. Lembro-me de ter falado sobre o filme com os meus amigos e de ficar chocada com o facto de alguns defenderem a tese do "ela estava a pedi-las". Era o que se dizia então. Crescemos, nós, as raparigas, a ouvir isso. Que não podíamos fazer determinadas coisas - usar determinadas roupas, ir a determinados sítios, ter determinados comportamentos como beber muito, dançar livremente, andar sozinhas na rua a determinadas horas - porque se as fizessemos algo de mau poderia acontecer e seria culpa nossa. "Estávamos a pedi-las". A palavra "provocante" só existe para as mulheres, nunca para os homens. Durante gerações, as mulheres cresceram sabendo que deviam controlar-se, conter-se, vigiar-se, porque era sua responsabilidade evitar que fossem assediadas ou abusadas. Aos homens nunca era imputada nenhuma responsabilidade porque eles, coitados, já se sabe, são como animais, que quando são "provocados" não se conseguem controlar. Este foi o discurso que todas ouvimos e contra o qual, fomos percebendo, tínhamos que nos revoltar. Isto para mim foi muito claro naquele dia em que vi "Os Acusados" e em que, mesmo sem saber o que era isso de ser feminista, mesmo sem ter lido os livros e sem conhecer as teorias, eu já sabia que não poderia haver desculpa para aqueles homens. Que a culpa nunca é da vítima, mesmo que use minissaia e esteja embriagada e dance como se fosse a maior sedutora do mundo. Nada disto legitima, desculpa ou atenua o comportamento dos homens.
Mais de 30 anos depois, o filme voltou a revoltar-me. Por tudo isto e ainda mais pela sua gritante actualidade. Porque mais de 30 anos depois o que é incrível é que este ainda seja um assunto que se discute. Que ainda haja quem use o estafado argumento do "ela estava a pedi-las" ou "foi ela que o provocou" ou "ela até queria". Que juízes e tribunais continuem a perdoar, que grande parte da sociedade continue a desculpar, que sempre que um homem é acusado de ultrapassar o limite um grupo de homens se una à sua volta para defendê-lo.
* "Se acabó" (acabou-se) é a tag que se tornou popular nas redes sociais acompanhando os protestos contra o vergonhoso comportamento de Luis Rubiales, presidente da federação espanhola de futebol, que beijou nos lábios uma das jogadoras após a vitória no campeonato do mundo. O caso é complexo porque não se reduz a um beijo: primeiro, porque a história começou há muito tempo, com as muitas denúncias das atletas de machismo e discriminação por parte das estruturas directivas, e o beijo acaba por ser a ponta do iceberg ou a gota que entornou o copo, como afirmaram as jogadoras em comunicado; e, depois, porque a reacção dos dirigentes aos protestos apenas serviu para confirmar a sua mentalidade retrógada, machista e abusadora. É só um beijo, dizem, tanto barulho por causa de um xoxo? Só que o beijo não é só um beijo. É um abuso. É um abuso de poder, como o são todos os abusos sexuais. E os abusos não podem continuar a ser tolerados.
Como é que ainda estamos a discutir isto?, essa é a grande perplexidade.
Adenda - este TEXTO da jornalista desportiva espanhola Gemma Herrero descreve bem o ambiente tóxico que nos trouxe aqui