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Podia falar-vos das minhas mil angústias, do trabalho que me faz infeliz quase todos os dias, dos horários terríveis, do ordenado miserável, da prestação da casa a subir, da frustração, podia dizer-vos das noites que passo sem dormir preocupada com os meus filhos, com o futuro que não consigo prever nem controlar, da culpa permanente, sempre a culpa, das saudades, do cansaço, do quão farta estou de decidir o que vai ser o jantar, de preparar marmitas, de estender a roupa, de mandá-los arrumar os quartos e desligar os telemóveis, das listas de compras, da máquina da louça avariada, das luzes que se fundem, do bolor no tecto da casa-de-banho, das obras que queria fazer, que é preciso fazer, mas é tudo tão difícil, tantos problemas, tantas preocupações e ainda mais as guerras, as alterações climáticas, a pobreza, a maldade das pessoas, podia contar-vos dos dias, semanas, meses em que o meu corpo sangra incontrolavelmente por causa da porcaria da perimenopausa, do meu médico a dizer "é só sangue", com um sorriso de desdém, como se por ser mulher tivesse que aguentar todos os incómodos sem me queixar, dos quilos que ganhei, das rugas, das peles flácidas, da exaustão, da apatia que me invade em dias em que me afundo no sofá e não me apetece nada, falar-vos da solidão que se esconde atrás das gargalhadas.

É tudo verdade. E, no entanto, 2023 não foi só isto.

"Contra todas as evidências em contrário, a alegria".

A alegria dos putos nos dias bons. Só isso já basta.

Aprendi a fazer pão. Fiz pão. Voltarei a fazer pão, isso é certo.

Páscoa na praia de sempre. Os putos com pranchas de surf. E o meu pai comeu pizza pela primeira vez na vida.

Quando a Paula me diz: vou passar aí. E vamos as duas. Seja onde for.

Nós os três a jogarmos snooker numa noite de verão.

Um grupo de whatsapp com amigas pode ser um refúgio, um colo, um escape, um conforto. Sabermos que não estamos sozinhas. 

Os poemas que nunca teria descoberto sozinha e as pessoas que dizem esses poemas naqueles encontros que juntam comida e bebida e tantas partilhas. 

Os amigos. Os amigos de sempre, os amigos recentes, os amigos que vêm e que vão. Os que estão sempre aqui. Os que raramente vejo. Os que me levam para copos, jantares, programas, e me obrigam a sair de mim. Aqueles com quem converso e me fazem mergulhar no mais fundo de mim. Os que telefonam e os que mandam muitas mensagens. Os que quase não dizem nada. São todos importantes, à sua maneira.

As vezes em que consegui vencer a preguiça. Ir a uma aula de yoga ou de pilates. Caminhar. Pedalar. Passear. Ir. Não me deixar ficar. Partir a telha.

Os livros (Annie Ernaux, Fernanda Melchor, Anabela Mota Ribeiro, Alia Trabuco Zerán, Catarina Gomes, Susana Moreira Marques, Ruy Castro, Douglas Stuart, Abed Salama, outros que agora não me lembro porque não conto os livros que leio); os filmes (tantos, não consigo enumerá-los); os espectáculos (menos do que gostaria, mas ainda assim); os concertos (Chico e Caetano no mesmo ano é como ganhar o totoloto, não é? Mas também Blur, Arcade Fire, Dino D'Santiago, Ana Lua Caiano). As artes todas. Janelas abertas para o mundo. Oxigénio para mim.

A Garota Não. À parte porque é especial. Vi-a três vezes e foi sempre maravilhosa. "A vida fica difícil, o tempo passa tipo míssil, derramado em suor."

Os dias em que o trabalho vale a pena. Poucos mas bons.

Os putos a pintarem as paredes do quarto, com a música em altos gritos.

A viagem a Nápoles. E a Alda.

Os miúdos fizeram-me um "bolo da caneca" e foram acordar-me à meia-noite para me cantarem os parabéns.

Um ano sem aplicações de encontros. Muita tranquilidade.

O António a chegar a casa às quatro da manhã, vai ao meu quarto - "Mãe, já cheguei" - deita-se ao meu lado e conta-me como foi a noite.

O meu pai, de braço dado comigo, a reaprender a andar com a sua anca nova.

Tricotei um cachecol enorme e lindo.

Eu e o Pedro a andarmos de bicicleta junto ao Tejo.

Pôr música a tocar e passar horas a cozinhar. Não por obrigação, mas por prazer.

O Natal. Apesar de tudo. E o privilégio de participar numa festa diferente.

A casa da minha irmã, sinónimo de família, de Alentejo, o sítio onde voltamos sempre. 

A surpresa de encontrar alguém com quem me apetece estar. Aceitar a impossibilidade. Sentir que me poderia apaixonar. Ficar feliz só com a possibilidade.

Ter uma agenda para 2024. Fazer planos.

O verso de Manuel Gusmão que está no título desde post é bem conhecido, mas foi só quando o re-ouvi no espectáculo Bravo 2023!, dos Praga, que percebi que era a frase ideal para descrever este ano (ou esta vida). Contra todas as evidências em contrário, a alegria surge nos momentos mais inesperados. A tal da felicidade nas coisas pequenas, que é o combustível que nos faz continuar todos os dias e não nos deixa desesperar. Que nos salva.

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(nesta foto, a minha maior alegria, o meu maior medo, o meu tudo, para o bem e para o mal)

publicado às 09:23

14
Ago23

Sentir falta

De vez em quando, dou por mim a pensar: tenho de contar isto à minha mãe. É um pensamento rápido. Dura uns segundos, talvez nem isso. Quando dou conta, sorrio por dentro. 

Sei que é improvável, mas queria mesmo que isto nunca deixasse de acontecer.

publicado às 09:46

11
Set22

Fim do verão

Encerrámos oficialmente a época de férias com uns dias no nosso Algarve. Foram três meses de aventuras várias e muita felicidade, como sempre. Sem stresses nem preocupações, quase sem horários nem obrigações. Sem pensar muito na inflacção ou na prestação da casa ou nos 125 euros do Costa que não vão dar para grande coisa. Amanhã eu regresso ao trabalho, nos próximos dias os rapazes regressam às aulas. Já há nevoeiro no céu e previsão de tempestade para mais logo. Para não termos ilusões.

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O Pedro fotografado pelo avô. Os meus dois companheiros desta semana.

publicado às 18:35

28
Fev22

A minha mãe

A minha mãe. Também conhecida cá em casa como avó Mariana. E por quase toda a gente como a professora Nita. A minha mãe queria que eu escrevesse sobre ela e eu nunca fui capaz. Acho que ainda não sou. Só me ocorrem banalidades. Herdei dela as gargalhadas sonoras e as coxas largas. Talvez também o pragmatismo com que encarava os problemas. A mais bonita história de amor é a dos meus pais. Quando eu nasci a minha mãe já só tinha um braço. No entanto, nunca foi uma pessoa deficiente. Trabalhou sempre e fez tudo o que lhe foi possível e até mesmo o que parecia impossível, como bordar a ponto-de-cruz miudinho toalhas de mesa de jantar e fraldas e babetes para os bebés. Ensinou-me a fazer bolos e, o que é mais importante, a gostar de fazer bolos. Dizia-me que eu devia tratar melhor de mim e comprar roupas bonitas e arranjar o cabelo. Gostava de ler os meus textos e sei que tinha um orgulho enorme em mim, mesmo sem haver grandes motivos para tal. Tinha os seus momentos depressivos, tomava comprimidos para dormir e para acordar e para levar melhor esta vida e, apesar das muitas complicações de saúde de que já sofria, só se foi realmente abaixo neste último ano porque soube, desde o primeiro momento, que não iria conseguir. 

A minha mãe morreu na manhã do dia 22 de fevereiro. 

Ainda estou (ainda estamos) a tentar assimilar como é isto de continuarmos cá sem ela. É uma tristeza diferente das outras tristezas. Umas vezes mais presente, outras vezes mais disfarçada, mas uma tristeza que tem estado sempre por aqui nestes dias. 

Ficam as memórias boas. E dessas, felizmente, temos muitas. 

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Esta é a última fotografia que tenho da minha mãe. Tirada no meu último aniversário. Quando ainda acreditávamos.

publicado às 09:23

Não sejamos injustos. Houve coisas boas em 2021.

Novos trabalhos, novos desafios.

Voltei a fazer yoga. Sou péssima mas estou a esforçar-me.

A viagem a Paris.

Os bons momentos com os meus putos.

Caminhar, voltar aos transportes públicos, andar a pé sempre que possível.

Voltei à terapia. Também sou péssima nisto mas estou a esforçar-me.

Os meus amigos (vocês sabem quem são). Não estive com eles tanto quanto gostaria mas aproveitei todas as oportunidades para encontrá-los, abraçá-los e mostrar-lhes o quanto são importantes para mim.

Fiz uma amiga nova ("e coisa mais preciosa no mundo não há").

Os espectáculos que vi, os filmes e as séries, os livros (poucos mas bons), as músicas que descobri e todas as outras coisas boas da vida.

A família reunida e feliz no dia do meu aniversário.

Os sonhos do natal.

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Para 2022 só queria isto tudo mas mais. 

publicado às 13:31

26
Dez21

Do amor

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Casaram-se faz hoje 50 anos. E continuam a ser a mais bonita história de amor que conheço.

publicado às 09:31

15
Jun20

Desconfinando

Houve um momento, já quase no fim do almoço, em que, não sei bem como nem porquê, pusemo-nos a cantar os Vampiros do Zeca Afonso. E eu dei por mim a pensar nas saudades que tinha da minha família. Caramba. Encontrámo-nos, finalmente, no feriado do corpo de deus, depois de quase seis meses de distância - o que é imenso, até para mim que estou habituada a estar longe por dois ou três meses  - e demos abraços e beijos, com moderação mas demos, porque não podíamos não o fazer. Temos estado a desconfinar, lentamente mas a desconfinar. O Pedro voltou aos treinos de parkour e continua a brincar com os vizinhos no terraço - é engraçado ver como a quarentena uniu os miúdos destes prédios, uns que já se conheciam, outros que nunca sequer tinham aparecido à janela, e agora são todos amigos. O António tem saído pelo menos uma vez por semana para estar com os amigos, jogar à bola e cirandar por aí, e até foram um dia à praia. Com mil recomendações e máscara e gel para as mãos, mas a tentar recuperar a sua adolescência interrompida. E eu também. Apesar de ainda em teletrabalho tenho feito cada vez mais trabalhos na rua e tentado estar com algumas pessoas que são importantes para mim. Ainda faltam algumas. E têm sido encontros muito breves e sempre ao ar livre. Mas, apesar de todas as mensagens e telefonemas e videochamadas, e mesmo, na maior parte dos casos, sem beijos e abraços, não há nada melhor do que estar com as nossas pessoas. Só estar. Sentirmo-nos acompanhados. E depois as conversas, os olhares, as gargalhadas, os momentos partilhados. As canções que cantamos juntos. 

publicado às 10:03

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Coisas que tenho em casa para devolver ao meu pai: uma caixa que trouxe cheia de sopa de grão, livros que ele me emprestou nestes últimos meses (anos?) e que me tenho esquecido de levar de volta para o Alentejo, um marcador que veio com algum dos livros e onde se lê: "Nada no mundo é mais doce que o amor".

Na nossa família nunca demos grande importância aos dias disto e daquilo. Mas isto de nos sabermos forçadamente à distância, de repente, deixa-nos um bocadinho mais lamechas. Hoje é dia do pai e acho que esta imagem diz muito sobre nós.

publicado às 18:24

30
Dez19

Adeus, Hope

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Hoje despedimo-nos da Hope. Tinha onze anos e estava muito doente. Vamos todos ter saudades dela, em especial o Pedro.

(é o que dá fazer balanços antes do tempo, afinal, perdemos alguém este ano...)

publicado às 19:09

30
Dez19

Best of 2019

Foi, genericamente, um ano mau. Não tão mau quanto 2012. Mas provavelmente pior do que todos os outros. Ou então é porque ainda está tudo muito fresco na minha cabeça. Mas estou em crer que não. Este foi o ano em que me senti mais frustrada no meu trabalho. Este foi o ano em que me senti mais frustrada como mãe. Este foi o ano em que me senti mais sozinha do que nunca e em que a única pessoa que me fez cócegas no coração não se apaixonou por mim, o que também me fez sentir frustrada. O que, vendo bem, é o retrato perfeito da minha vida, toda ela muito mais ou menos. Muito assim-assim. Muito nada de especial. Não quero ser injusta. Sei que tenho uma família que me apoia e me ajuda em tudo. Sei que tenho amigos dos bons. Sei que tenho muita sorte porque não temos doenças graves e este ano não perdi ninguém. Sei que tenho uma casa pela qual pago um preço justo e tenho um emprego que, até ver, me vai dando para pagar as contas. Sei que tenho dois filhos lindos que amo até ao infinito e mais além. Mas no momento em que me sento a fazer um balanço deste ano que passou não consigo sentir-me feliz. Pelo contrário. A única palavra que me ocorre é frustração. E só não faço deste um post de lamentações porque quero acabar o ano como o comecei: a pensar em coisas boas. Vou fixar-me nelas. Vou reviver todos os momentos bons de que me lembrar e fazer deles as minhas passas da meia-noite (as passas que eu nunca como à meia-noite porque só gosto de passas misturadas com comida, se calhar tem sido esse o meu erro). 

Para memória futura, o meu melhor de 2019 há de ser qualquer coisa como isto:

Os dias em que não me zango com eles.

Aquela tarde a beber chá na cama da Aline.

O jardim da Gulbenkian.

Os beijos.

E os abraços.

Fazer bolos.

Um jantar inesperado no indiano com a Sónia C.

A alegria do Pedro no parkour.

Cantar a Valsinha de mãos dadas.

Chegar ao final de mais um ano lectivo.

As férias.

Almoçar com o João Miguel.

O António está mais alto do que eu.

O Panorâmico de Monsanto.

O almoço no terraço da Sónia.

Na esplanada com a Ângela.

Os vários jantares com elas (all aboard ou lá o que é).

Aquela noite com a Paula F. e o Ricardo.

As conversas com a Paula (e tudo o que não precisamos de dizer porque já nos conhecemos tão bem).

O Alentejo. E as minhas pessoas de lá.

Um dia de praia na Arrifana.

Outro na Praia Verde.

Vê-los a dar mergulhos.

O concerto da Mayra Andrade com a Lina.

A minha amiga curou-se de uma doença má.

A serenidade da Cecília.

O almoço de aniversário, marcado em cima da hora, com a Isabel, a Helena e a Rute.

Os meus amigos. Todos eles.

A minha cozinha.

A viagem com a Ana ao Algarve.

Tricotar.

Os filmes, os livros, os espetáculos, as exposições, as músicas. The National, Devendra Banhardt, Dino D'Santiago, CapicuaDulce Maria Cardoso, Francisco José Viegas, Afonso Cruz, Pedro Almodóvar, Tiago Guedes, Jafar Panahi, Grada Kilomba, Mário CruzTiago Rodrigues, Ivo Canelas, Mónica Calle, Miguel Seabra, Giacomo e Madalena. Outros de que agora não me lembro.

Dançar. 

Aqueles momentos em que acredito que vai correr tudo bem.

Nós os três.

Deitar-me de consciência tranquila.

publicado às 09:11


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