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Odeio anestesias. Lembrava-me perfeitamente das duas anestesias gerais que levei em criança. Lembrava-me da sensação de vazio que senti ao acordar. A sensação de ter perdido aquelas horas da minha vida. Não, não é como dormir. É como um salto no tempo. Um tempo que é como se não tivesse existido. O mais parecido, imagino eu, com a morte. Odeio anestesias e quando a médica me falou a primeira vez na hipótese da cirurgia foi só isso que me amedrontou, esse medo inexplicável de um sono tão pesado que não permite sonhos nem memórias nem nada, esse salto no vazio absoluto, essa sensação de morte. Fiz-me de forte. O medo era (como quase sempre) irracional, e eu sou uma pessoa bastante racional.
Há uma semana fui internada. Foi o António que me levou, contando piadas para disfarçar os nervos. Cada um tem a sua maneira de lidar com as situações de tensão e no caso dele é dizer parvoíces e manter aquele ar blasé, de chinelo no pé e sorriso na cara, como se não fosse nada. Tinha explicado aos rapazes todo o procedimento e o que me levou até ele. Faço questão de ser honesta com os miúdos sobre todos os assuntos, tentando ao mesmo tempo poupá-los a preocupações desnecessárias. É um equilíbrio nem sempre fácil de conseguir. Quando fiquei sem emprego ou quando a minha mãe adoeceu, por exemplo, senti que eram temas demasiados importantes para não serem falados, afinal, também faz parte do crescimento perceberem que existem problemas e que temos de lidar com eles da melhor maneira possível. Neste caso, não havia mesmo por que ficarem preocupados. A coisa era bastante simples.
A cirurgia - histerectomia total laparascópica por via vaginal - apresentou-se como a melhor solução para um problema que me atormentava há pelo menos dois anos: uma hemorragia constante e de grandes dimensões que não dava mostras de ceder à medicação. O meu médico anterior, um tipo simpático e de quem não tinha queixas até ao momento, não revelou qualquer empatia pela situação. "É só sangue", disse-me, como se eu me estivesse a queixar sem motivo, explicando-me que são coisas normais nesta idade e que o que tinha a fazer era aguentar até à menopausa. Eu aguentei durante algum tempo mas depois decidi procurar outra médica. Às vezes, a única coisa que queremos dos médicos é que nos ouçam, que valorizem aquilo que dizemos. Se eu digo que não estou bem é porque não estou bem, não é porque sou uma mulher histérica. As mulheres sangram todos os meses durante grande parte da sua vida. Aprendemos a viver com este desconforto. Mas houve um momento em que aquilo começou a perturbar-me realmente. Sangrar dias e dias seguidos, sangrar de maneira incontrolável é viver em permanente estado de alerta, sem saber se vou estar toda suja quando me levantar da cadeira, se vou ter que trocar outra vez os lençóis, se tenho tampões e pensos que cheguem para o dia, se vou ter forças para ir trabalhar, se me vai apetecer sequer sair de casa. O sangue afetou a minha vida e a minha auto-estima, deixou-me insegura, suja, cansada, envergonhada e, no fim de contas, doente, uma vez que fiquei com uma anemia brutal. A nova médica ouviu-me com atenção e mandou-me fazer alguns exames. "Vamos tentar resolver a situação", garantiu-me. E acho que só por isso senti-me logo melhor. Reencaminhou-me para outra médica, mais especialista. O que se concluiu foi que sim, estava na perimenopausa, e as hemorragias abundantes são parte dos sintomas desta fase, e que também tinha vários miomas, um deles, pelo menos, de grandes dimensões, que também provocavam hemorragias. Tudo coisas inofensivas. Perante isto, tinha duas soluções: continuar com a medicação para controlar as perdas (depois de várias experiências, chegámos a um cocktail de comprimidos diários que não resolviam completamente o problema mas tinham-no tornado suportável) até que fosse necessário, o que poderiam ser alguns meses ou alguns anos, ou fazer a cirurgia e acabar com isto de uma vez. Fui eu que optei por esta solução.
Percebi, nestes últimos anos, que há inúmeras mulheres a passarem pelo mesmo que eu. Mulheres que sangram, que sofrem, que choram, que se encolhem, que dormem de fraldas, que desesperam. Nunca ninguém me tinha falado disto. Falam dos calores e que se engorda, que se envelhece e pronto. As mulheres sempre foram muito boas a esconderem as suas dores. Mas quando eu comecei a desabafar logo houve quem dissesse eu também e ela também e vai-se a ver éramos muitas. Não me serviu de consolo. Não foi uma decisão leviana. Sei que não é consensual, mas não me apetece agora estar a justificar-me. Tive dúvidas, claro. Mas decidi. Pode ser que me arrependa um dia destes. Não há como saber. Não há soluções mágicas, há apenas soluções que, para cada um de nós, naquele momento, nos parecem melhores.
Eu estava calma. Descobri há já algum tempo que tenho esta capacidade de me manter calma em situações adversas. Não quis tomar nenhum calmante, entrei desperta na sala de operações, falei com toda a gente, e no momento de me darem a anestesia, quando senti aquele fresquinho a entrar-me pelo braço, ainda tive tempo para pensar "que maluqueira, maria joão, o que é que tu estás a fazer?"
Logo a seguir estava a acordar. Outra vez a sensação de vazio. O salto no tempo. A morte ali tão perto. A cabeça tonta, as náuseas, aquela desorientação inicial. Caramba, porque é que me meti nisto? Instintivamente levei a mão à barriga, só para confirmar que tinha tudo corrido como planeado, e fiquei imediatamente mais descansada: nada de pensos nem cicatrizes. "Correu tudo bem?", perguntei a um enfermeiro (tenho um carinho enorme pelos enfermeiros, as pessoas que nos cuidam nos momentos em que estamos mais frágeis). Nas horas seguintes esteve tudo muito nublado.
Ligaram ao António a avisar que eu já estava no quarto e vinte minutos depois estavam os dois ali a olhar para mim. O António a falar sem parar, o Pedro muito sério, muito calado, muito Pedro, a manter a distância. "É estranho, nunca te tinha visto assim", disse ele. Nunca tinham visto a mãe-fortaleza deitada numa cama, com soro na veia, um saco de xixi pendurado ao lado, a voz arrastada de quem ainda não está no seu perfeito juizo. Estavam apreensivos, isso era óbvio. O que terão pensado durante aquelas horas todas? Será que exigi demais deles desta vez? Será que não deveria ter permitido que viessem ver-me?
Nessa noite, a médica apareceu para me confirmar que tinha corrido tudo bem e que, a continuar assim, teria alta no dia seguinte. A mim, ali deitada, ainda meia tonta, algaliada, incapaz de me mexer, pareceu-me um bocadinho exagerado, confesso. E, no entanto, o dia amanheceu e tudo estava realmente melhor.
Sensivelmente 24 horas depois de ter acordado da cirurgia vim para casa pelo meu próprio pé. Apreensiva mas sem dores. Só tomei paracetamol nessa noite porque sentia um certo desconforto e não conseguia encontrar posição para dormir. Mais nada. A médica tinha razão. A medicina, de facto, evoluiu de forma incrível. Sei que existe uma cicatriz, mas é interior, não está à mostra. Sinto que fui "mexida", ainda não estou a cem por cento, mas é uma coisa mínima. Às vezes até me esqueço. E aqui estou. Com ordens para não fazer esforços, não carregar pesos, não me mexer muito. Mas também para me mexer cada vez mais. A cada dia que passa sinto-me melhor. Tenho aproveitado para ver filmes e séries, ler, pensar na vida. Tento não passar o dia a comer (um desafio e tanto). Atribuo-me pequenas tarefas (por exemplo, escrever este texto), faço planos que provavelmente nunca serão concretizados. Entedio-me. Houve ali um momento em que me comecei a enervar porque me apetecia aspirar a casa e lavar o chão, mas não podia, e os meus filhos têm sido uns queridos, lavam a loiça, levam o lixo e estão sempre a perguntar se estou bem, mas foi difícil convencê-los da necessidade de limpar a casa-de-banho.
Um dia de cada vez.
Já passou uma semana. Ainda só passou uma semana. Tudo depende do ponto de vista. So far so good. Não quero precipitar-me mas estou confiante e a verdade é que já só penso que ainda quero ir à praia. Espero que a médica me dê alta, espero que o verão se aguente, espero que tudo volte ao seu lugar. Não. Corrijo. Que tudo volte a um lugar melhor. Assim é que é. Muito melhor.
Podia falar-vos das minhas mil angústias, do trabalho que me faz infeliz quase todos os dias, dos horários terríveis, do ordenado miserável, da prestação da casa a subir, da frustração, podia dizer-vos das noites que passo sem dormir preocupada com os meus filhos, com o futuro que não consigo prever nem controlar, da culpa permanente, sempre a culpa, das saudades, do cansaço, do quão farta estou de decidir o que vai ser o jantar, de preparar marmitas, de estender a roupa, de mandá-los arrumar os quartos e desligar os telemóveis, das listas de compras, da máquina da louça avariada, das luzes que se fundem, do bolor no tecto da casa-de-banho, das obras que queria fazer, que é preciso fazer, mas é tudo tão difícil, tantos problemas, tantas preocupações e ainda mais as guerras, as alterações climáticas, a pobreza, a maldade das pessoas, podia contar-vos dos dias, semanas, meses em que o meu corpo sangra incontrolavelmente por causa da porcaria da perimenopausa, do meu médico a dizer "é só sangue", com um sorriso de desdém, como se por ser mulher tivesse que aguentar todos os incómodos sem me queixar, dos quilos que ganhei, das rugas, das peles flácidas, da exaustão, da apatia que me invade em dias em que me afundo no sofá e não me apetece nada, falar-vos da solidão que se esconde atrás das gargalhadas.
É tudo verdade. E, no entanto, 2023 não foi só isto.
"Contra todas as evidências em contrário, a alegria".
A alegria dos putos nos dias bons. Só isso já basta.
Aprendi a fazer pão. Fiz pão. Voltarei a fazer pão, isso é certo.
Páscoa na praia de sempre. Os putos com pranchas de surf. E o meu pai comeu pizza pela primeira vez na vida.
Quando a Paula me diz: vou passar aí. E vamos as duas. Seja onde for.
Nós os três a jogarmos snooker numa noite de verão.
Um grupo de whatsapp com amigas pode ser um refúgio, um colo, um escape, um conforto. Sabermos que não estamos sozinhas.
Os poemas que nunca teria descoberto sozinha e as pessoas que dizem esses poemas naqueles encontros que juntam comida e bebida e tantas partilhas.
Os amigos. Os amigos de sempre, os amigos recentes, os amigos que vêm e que vão. Os que estão sempre aqui. Os que raramente vejo. Os que me levam para copos, jantares, programas, e me obrigam a sair de mim. Aqueles com quem converso e me fazem mergulhar no mais fundo de mim. Os que telefonam e os que mandam muitas mensagens. Os que quase não dizem nada. São todos importantes, à sua maneira.
As vezes em que consegui vencer a preguiça. Ir a uma aula de yoga ou de pilates. Caminhar. Pedalar. Passear. Ir. Não me deixar ficar. Partir a telha.
Os livros (Annie Ernaux, Fernanda Melchor, Anabela Mota Ribeiro, Alia Trabuco Zerán, Catarina Gomes, Susana Moreira Marques, Ruy Castro, Douglas Stuart, Abed Salama, outros que agora não me lembro porque não conto os livros que leio); os filmes (tantos, não consigo enumerá-los); os espectáculos (menos do que gostaria, mas ainda assim); os concertos (Chico e Caetano no mesmo ano é como ganhar o totoloto, não é? Mas também Blur, Arcade Fire, Dino D'Santiago, Ana Lua Caiano). As artes todas. Janelas abertas para o mundo. Oxigénio para mim.
A Garota Não. À parte porque é especial. Vi-a três vezes e foi sempre maravilhosa. "A vida fica difícil, o tempo passa tipo míssil, derramado em suor."
Os dias em que o trabalho vale a pena. Poucos mas bons.
Os putos a pintarem as paredes do quarto, com a música em altos gritos.
A viagem a Nápoles. E a Alda.
Os miúdos fizeram-me um "bolo da caneca" e foram acordar-me à meia-noite para me cantarem os parabéns.
Um ano sem aplicações de encontros. Muita tranquilidade.
O António a chegar a casa às quatro da manhã, vai ao meu quarto - "Mãe, já cheguei" - deita-se ao meu lado e conta-me como foi a noite.
O meu pai, de braço dado comigo, a reaprender a andar com a sua anca nova.
Tricotei um cachecol enorme e lindo.
Eu e o Pedro a andarmos de bicicleta junto ao Tejo.
Pôr música a tocar e passar horas a cozinhar. Não por obrigação, mas por prazer.
O Natal. Apesar de tudo. E o privilégio de participar numa festa diferente.
A casa da minha irmã, sinónimo de família, de Alentejo, o sítio onde voltamos sempre.
A surpresa de encontrar alguém com quem me apetece estar. Aceitar a impossibilidade. Sentir que me poderia apaixonar. Ficar feliz só com a possibilidade.
Ter uma agenda para 2024. Fazer planos.
O verso de Manuel Gusmão que está no título desde post é bem conhecido, mas foi só quando o re-ouvi no espectáculo Bravo 2023!, dos Praga, que percebi que era a frase ideal para descrever este ano (ou esta vida). Contra todas as evidências em contrário, a alegria surge nos momentos mais inesperados. A tal da felicidade nas coisas pequenas, que é o combustível que nos faz continuar todos os dias e não nos deixa desesperar. Que nos salva.
(nesta foto, a minha maior alegria, o meu maior medo, o meu tudo, para o bem e para o mal)
A nossa casa está a precisar de uma intervenção. Andamos há anos a adiar. Porque uma pandemia, porque a inflacção, porque aquela empresa de obras afinal não é tão boa como parecia. Agora, finalmente, parece que já encontrámos uma pessoa de confiança que nos pôs em lista de espera. Uma questão de meses. Mas o destino, caprichoso, decidiu fazer das suas. A cama do António partiu-se. Ao fim de mais de 15 anos, aquele beliche fantástico, com armário e gavetas, o beliche mais fixe que havia no mercado e ainda por cima ideal para o espaço que tínhamos, o beliche comprado numa loja em Almada depois de grande pesquisa (a loja chamava-se Just4Kids e acho que já não existe, o beliche era mais ou menos assim, mas tinha mais umas gavetas pequenas), e que já tinha começado a mostrar sinais de cansaço, partiu-se. A substituição era urgente, não podia esperar meses. Decidimos, portanto, antecipar a remodelação do quarto. O que implicou retirar todos os (muitos) livros infantis que ainda lá estavam e as duas gavetas cheias de brinquedos que tinham resistido à última arrumação. O que implicou limpar primeiro a marquise, para lá acomodar uma estante. O que implicou arrumar uma parte do grande armário de parede, para lá guardar algumas das coisas que queria guardar. E já agora a despensa. E os armários da cozinha. E as pastas dos papéis. E as gavetas da roupa. Foram dias nisto. Separar o que era para manter, o que era para dar, o que era para o lixo. É impressionante a quantidade de lixo que guardamos. Coisas que não servem para nada, que achamos que poderão servir mas na verdade são inúteis. Perdi a conta aos sacos de lixo que enchemos, às viagens que fizemos até aos contentores. Os miúdos colaboraram. E no momento de pintar o quarto foram eles que meteram mãos à obra. Não ficou perfeito, mas ficou feito. Também é verdade que esta gente se farta depressa, pinta uma parede e depois acha que já está, que não é preciso limpar o chão nem a janela, arrumar tudo. Enfim. Andei entretida, foram umas férias um pouco diferentes.
No dia em que os senhores vieram para desmontar o beliche, os miúdos ficaram um bocadinho nostálgicos. Mas, depois, fomos ao ikea, eles escolheram móveis, tapetes, almofadas. Montaram tudo com a dedicação de quem está a fazer algo que quer muito, algo pela primeira vez ao seu gosto. Um quarto ficou pronto, o outro ainda está a meio, mas já é outra coisa, em vez de um quarto de crianças e um escritório temos agora dois quartos de gente crescida, de rapazes que já não brincam com legos mas que passam horas estendidos nas camas grandes a falar ao telefone. Eles estão felizes por ter espaços só seus. Trazem amigos, fecham as portas, ouvem música, dizem parvoíces, namoram, fazem o que lhes apetece. A dinâmica da casa mudou completamente, nem consigo explicar bem. Mudámos um quarto e, de repente, é como se nos tivéssemos despedido definitivamente dos últimos resquícios da infância.
É setembro. Está calor e depois chove, o pai fez anos, esta semana é a feira da minha terra, não tarda começa o novo ano lectivo, os putos precisam de sapatos novos. Eles crescem. É a vida a acontecer, tal e qual como se espera que aconteça.
"Sabermos que não temos mão na maior parte das coisas que acontecem é fundamental para o afrouxar da ansiedade." A frase é de Cláudia Lucas Chéu que, numa pequena crónica, resume muito daquilo que sinto. "Ainda hoje sofro bastante de um sentimento de querer controlar tudo, embora saiba agora o quão inútil e estúpido é este sentimento. Sei que não tenho mão em quase nada. As coisas acontecem e o que é preciso é saber lidar com elas ou não lidar de todo — por vezes fugir também é uma opção." A crónica intitula-se "Controlar o ingovernável" e é ilustrada por uma imagem do filme Lady Bird, de Greta Gerwig - uma cena que mostra a difícil relação entre filha e mãe.
Viver é, todos os dias, tentar "controlar o ingovernável". É muito isto que sinto na vida em geral e na relação com os meus filhos em particular. Vê-los crescer tem tanto de fascinante como de assustador. O amor mistura-se com o medo. As desilusões (podia fingir que não existem mas, sim, existem, no meu caso, muitas desilusões e frustrações e sentimentos de falhanço e até vergonha e todos esses sentimentos que estamos proibidos de dizer em voz alta mas que nem por isso deixam de ser reais) misturam-se com o orgulho. A vontade de lhes orientar os passos e garantir que tudo lhes corre bem e, ao mesmo tempo, sabermos que temos de deixá-los falhar e errar e descobrirem o seu próprio caminho.
Não podemos controlar tudo. Nem na nossa vida nem na vida dos filhos nem no mundo que nos rodeia. Aceitar isto não significa desistir dos nossos objectivos e dos nossos sonhos, não quer dizer que nos vamos sujeitar ao que acontece sem dar luta, que vamos deixar de fazer aquilo que achamos certo e que devemos e queremos fazer. Significa apenas (tentar) deixar de sofrer tanto, de nos angustiarmos e martirizarmos de culpa sempre que sentimos que as coisas fogem do nosso controlo. Aceitar as falhas e tentar aprender com os erros sem nos sentirmos a fracassar irremediavelmente.
Não é fácil, pois que não é. E eu só às vezes é que o consigo. Mas, ainda assim, continuo a tentar.
"A realidade só se mostra quando paramos, quando nos detemos antes de continuarmos", escreve Susana Moreira Marques. Está a falar como jornalista, como observadora, como pessoa que procura histórias e que quer entender o mundo à sua volta. É preciso tempo. Isto aplica-se ao jornalismo mas também à vida. É preciso tempo. Li o Lenços Pretos, Chapéus de Palha e Brincos de Ouro estendida numa espreguiçadeira, à sombra, à beira da piscina num hotel em Évora. Estava imenso calor. Os putos alternavam entre mergulhos para refrescar e ficar no quarto, ao abrigo do ar condicionado, com a cabeça enfiada nos telemóveis. Nas férias não há hora para deitar nem para acordar nem para almoçar. Deixamo-nos ir, simplesmente. Às vezes, entediamo-nos. Estivemos quase sempre calados. Conversávamos sobretudo durante as refeições, eu ri-me das parvoíces infantis deles, eles riram das minhas parvoíces de velha. Jogámos snooker. Tivemos conversas sérias. Achei-os crescidos. Durante uns dias, ali e depois mais a sul, existimos quase fora do mundo. Suspendemos a vida. Como se não houvesse problemas para resolver, como se na semana anterior eu não me tivesse zangado muito por causa de coisas graves, como se três semanas antes eu não estivesse preocupadíssima por causa de outras coisas graves, como se não houvesse decisões importantes a tomar, como se estivesse tudo bem. É esse o fabuloso super-poder das férias. Temos tempo. Para fugir daquilo que somos todos os dias.
E depois continuamos.
O livro é uma reflexão muito importante e bonita sobre o que é isto de ser mulher, a partir da viagem de Maria Lamas, no final dos anos 40, e da sua obra Mulheres do Meu País. Lembrou-me as minhas avós. Fez-me pensar na sorte que temos hoje e no quanto ainda nos falta andar. E fez-me pensar no tempo e na importância de abrandar.
Um dia, estava a conversar com a minha amiga Paula e o que é que vais fazer nas férias, sei lá, os putos não querem fazer nada, acham tudo uma seca, pois é, podíamos fazer alguma coisa juntos, isso era giro, eu gostava de os levar aos Açores, olha, eu também, o que dizes?, é uma boa ideia, pois é, vamos tratar já disso. Confirmámos as disponibilidades com os adolescentes, perdemos horas em sites a ver preços de voos e marcámos. São Miguel, aí vamos nós.
O único receio era juntar este quatro putos - o mais novo com 14 anos, um de 17, outro de 18 e a mais velha com 20. Os miúdos conhecem-se. Brincaram juntos quando eram pequenos. Tínhamos passado uma semana de férias em 2015 e tinha sido óptimo. E voltámos a encontrar-nos na praia durante uns dias em 2018. Mas, depois disso, vieram as adolescências. E a pandemia. Cada um cresceu à sua maneira. Tornaram-se pessoas muito diferentes. Ainda assim, pareceu-nos possível. E toda a gente estava animada com a ideia.
No primeiro dia, depois de uma noite mal dormida e de uma madrugadora viagem de avião, olhei para os quatro putos a dormitar estendidos na areia preta, cada um para seu lado, quase sem trocarem uma palavra entre si, e temi o pior. Ai, tu queres ver que isto vai correr mal? Mas, logo nessa noite, os três mais velhos saíram para beber um copo em Ponta Delgada e no regresso, quando o táxi os deixou à porta de casa à duas da manhã, já eram grandes companheiros. A partir daí correu tudo bem. Mesmo com todas as diferenças de gostos e de personalidades. Foi lindo de se ver, sobretudo os dois rapazes do meio que, há que admitir, vivem em mundos completamente distintos, mas conseguiram facilmente encontrar uma plataforma de entendimento e de cumplicidades que fez com que, pelo menos durante aqueles dez dias, fossem os melhores amigos.
Com este problema resolvido, as férias só podiam ser óptimas. Alugámos uma carrinha de sete lugares e fizemo-nos à estrada, por paisagens verdejantes, espreitando em miradouros, com os putos a protestarem por causa da música que as cotas escolhiam e nós a odiarmos a música que eles escolhiam. A ilha de São Miguel é linda, já se sabe, e entre águas quentes e águas frias, águas doces e águas salgadas, acho que mergulhámos em todos os cantos em que se podia mergulhar. Bom, eu não, bem entendido, que não sou muito de mergulhos, mas o resto do grupo. Da Caldeira Velha à Ponta da Ferraria, com passagens repetidas pela Poça da Dona Beija e pelas praias - Milícias, Pópulo, Mosteiros, Santa Bárbara (e os rapazes divertidos, nas ondas, a fingirem que sabiam surfar). Os dois rapazes foram acampar uma noite com amigos da ilha e foram a um "festival de música" numa aldeia próxima. As mães vestiram roupa colorida e foram destoar para a "noite branca" de Ponta Delgada. Fizemos umas férias low-cost, sem hotel nem restaurantes. E foi do melhor. Dormimos ao molho na casa da família Paula, comemos bolos lêvedos todos os dias, provámos os gelados do Tomé, eles beberam Kima, eu deliciei-me com os chicharros fritos e ainda tivemos a sorte de fazer um almoço nas Furnas, com uma bela de uma feijoada caseira.
Foram dias muito bons. Familiares. Entre amigos que são casa. Sem merdas. Foram dias muito felizes, daquela felicidade que nos enche a alma e nos faz pensar que, mesmo com todas as dificuldades e todas as tristezas, esta vida vale a pena. Porque, com sorte, uma vez por ano, temos direito ao nosso bocadinho no paraíso.
Viajei. Mas o importante não foi a viagem em si nem os passeios que demos por Bruxelas. O importante foi, primeiro, poder partilhar esta experiência com o Pedro e passarmos tempo os dois e voltarmos a andar de avião e tentar explicar-lhe que é bom sair de casa e descobrir o mundo (e também irritar-me um bocadinho com ele, que está naquela fase aborrescente mas, pronto, faz parte). E, depois, visitar a minha amiga Aline e a sua família. Já não nos víamos há quase um ano e foi bom demais voltarmos a partilhar as nossas alegrias e as nossas angústias e comer os seus cozinhados e desfrutar da sua alegria e da sua energia. E depois da viagem ainda deu para ir ao Alentejo e para passear por Lisboa, para ir ao MAAT - Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia ver as "Interferências" e a fantástica instalação do Vhils (por favor, não percam), para ver as maravilhosas "Bacantes" da Marlene Monteiro Freitas, para dar um passeio na praia, para ir dançar no Incógnito (as saudades que eu tinha disto), para fazer isto tudo ao mesmo tempo que estava com amigos bons e conversávamos e ríamos e chorávamos juntos. Porque o mais importante são sempre as pessoas que estão connosco neste caminho e os abraços todos que damos.
Foram 10 dias bons, depois de muitos dias difíceis, ou melhor, no meio de muitos dias difíceis. Não tem sido fácil, por vários motivos, muito diversos, muito meus. Mas, como diz, a canção:
"Tem vez que as coisas pesam mais
Do que a gente acha que pode aguentar
Nessa hora fique firme
Pois tudo isso logo vai passar
Você vai rir, sem perceber
Felicidade é só questão de ser
Quando chover, deixar molhar
Pra receber o sol quando voltar"
Fomos ver o espectáculo Meio no Meio, do Victor Hugo Pontes e da Arte em Rede, com um grupo de guerreiros-bailarinos maravilhosos. Os putos iam reticentes, como sempre. Eu, que escolho com pinças os espectáculos para vermos juntos, com medo que eles odeiem e acabem por não querer nunca mais ir comigo ao teatro, tremia um pouco por dentro, confesso. Mas foi bom. Foi muito bom. Foi emocionante e divertido e tocante e deu vontade de dançar e fez-nos pensar e a mim até me fez lacrimejar.
Pergunto-me muito o que ficará disto tudo. Das vezes que os levei ao teatro e a ver exposições, dos filmes e dos livros que lhes mostrei, dos passeios e das experiências que lhes proporciono, mesmo quando eles não querem, quando vão contrariados, a mal-dizer a mãe que lhes calhou na rifa. Será que fica alguma coisa? As pessoas à minha volta, talvez para me animarem, garantem que sim, que há sementes que só germinam mais tarde, que um dia a adolescência passa e todas as coisas boas que lhes demos vão finalmente revelar-se, mas às vezes tenho tantas dúvidas, parece que é tudo em vão.
Só sei que eles se divertiram ontem à noite, que gostaram, que talvez não tenham percebido tudo (sobretudo o mais novo) mas alguma coisa terão percebido e, se o espectáculo não serviu para mais nada, terá ao menos servido para lhes mostrar algo diferente dos vídeos parvos que eles vêem todos os dias no tictoc e no instagram.
Desta noite, para além do espectáculo, guardo os momentos passados a três. As músicas (horríveis) que o António nos fez ouvir no carro. O Pedro fascinado com a energia da cidade num sábado à noite. Os putos a descerem a rua do Carmo a toda a velocidade numa trotinete. Aquele momento em que me montei eu na trotinete, agarrada ao António, e desatei aos gritos julgando que ia cair e espatifar-me toda. As gargalhadas que demos juntos. As conversas que surgiram, as partilhas que só acontecem quando estamos relaxados. Só por isso já valeu o pena. E isso é muito.
Eu fui a Paris. Foi a minha loucura.
Fomos os três passar duas noites a Santa Cruz num sítio bem catita. Foi o nosso "momento família".
E depois fomos meia dúzia de dias para o Algarve já em modo "os meus e os amigos", que é uma coisa que resulta muito bem quando se tem filhos adolescentes.
Pelo meio, o Pedro teve uma semana de surf em Carcavelos, uma semana radical no Malhadal com a Junta de Freguesia e uma semana de actividades do clube de BTT.
E o António esteve em tantos sítios e com tantos amigos que é impossível agora dizer, só sei que quase não parou em casa e que ele elegeu estas como "as melhores férias de sempre".
Foram umas férias um bocadinho atípicas, como se previa. Mas palpita-me que a partir de agora a coisa vai ser mais ou menos assim. Cada um nos seus programas e, depois, tentar encontrar momentos, ainda que curtos, para estarmos juntos e sermos felizes fora da rotina infernal.
Estamos nesta aprendizagem, e até agora acho que nos estamos a sair bem.
Entretanto, no último dia de férias, o Pedro testou positivo para a covid e tivemos que ficar os dois em isolamento durante dez dias: ele no quarto a jogar playstation, eu na sala a trabalhar. Só assim para acabar em grande.
Já passou. Já levámos com o setembro em cima. E por mais que nos preparemos para isto nunca estamos preparados. Siga.
Já o sabíamos, desde o momento em que os segurámos nos braços eram eles apenas três quilos de gente a choramingar e a sujar as fraldas, mas à medida que crescem tomamos ainda mais consciência deste facto: o amor que temos pelos filhos é completamente irracional, incondicional e infinito. E isso é algo ao mesmo tempo maravilhoso e assustador. Não me canso de me surpreender com esta capacidade para amar de forma tão arrebatadora uma pessoa que tem as suas próprias ideias, tantas vezes contrárias às minhas, que faz escolhas com as quais posso não concordar, que tem atitudes que por vezes me parecem incompreensíveis, que regularmente me parte o coração e me deixa de rastos, a duvidar de mim mesma e da minha capacidade para ser mãe. Não toleraria isto a mais ninguém. Só aos filhos permitimos que nos façam sofrer assim. E no dia seguinte lá estamos a fazer-lhes festinhas na cabeça, a comprar o pão de que eles gostam para o pequeno-almoço, a pagar-lhes o Spotify Premium que nunca assinámos porque achamos que é dinheiro mal gasto, a perder noites de sono atormentadas pelas preocupações. E se ele não for feliz?, e só essa ideia é suficiente para sentir um aperto no peito que é quase insuportável. O amor que temos pelos filhos é resistente. Inquebrável. Gostarei de ti mesmo quando mais ninguém gostar, mesmo quando tu próprio não gostares (gostarei de ti mesmo quando não gostar). Só aos meus filhos poderei dizer isto tendo a certeza absoluta de que será sempre verdade.
E, no entanto, quando ele saiu de casa ainda há pouco, com a mochila às costas e os phones nos ouvidos, preparado para mais um recomeço, disse-lhe apenas "tem um dia bom". Acho que ele percebeu.