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A primeira meia hora foi um sufoco. Senti as dores de Martha tal e qual como se fossem as minhas. Tantas memórias que ressurgiram. Tive vontade de passar à frente mas ainda bem que não o fiz. A primeira meira hora é o que dá sentido ao filme. Na primeira meia hora estamos em trabalho de parto com aquele casal, Martha (interpretação de Vanessa Kirby) e Sean (Shia LaBeouf). Partilhamos com eles o entusiasmo e as dores. O parto é em casa e tudo parece correr bem até que tudo corre mal (lamento mas não dá para evitar os spoilers, se não quiserem saber mais pormenores é melhor não continuarem a ler).
Como continuar depois de um trauma destes? Isso é o que vemos no resto do filme.
Pieces of a Woman, do casal húngaro Kornél Mundruczó (realizador) e Kata Wéber (argumentista), tem muitas coisas boas, a começar pela extraordinária interpretação de Vanessa Kirby (como sou um pouco despistada demorei imenso tempo a perceber de onde conhecia aquela cara: era a princesa Margaret das primeiras temporadas de The Crown). Tem o inverno rigoroso e o rio que vai ficando cada vez mais gelado. Tem o verniz estragado, a loiça suja na pia, o cabelo desgrenhado. Tem aquele sofrimento maior do que o mundo. Tem as explosões de choro e fúria e desorientação dele. Tem uma cena de intimidade do casal que é tão realista que é impossível não nos sentirmos violadas. Tem a contenção e a força dela, que se recusa a ser uma vítima e a ficar paralisada pelo sofrimento. Martha quer seguir em frente, contrariando a vontade da família e até a vontade do seu corpo que não sabe que a bebé morreu, o corpo ainda é o corpo de uma mãe mesmo que ela não o seja.
O que me irrita um bocadinho em Pieces of a Woman é o exagero, parece que os argumentistas não souberam onde parar. Não bastava a morte da bebé, ainda é preciso o pai ser ex-alcoólico. Não bastava que o casal se afastasse e cada um deles procurasse um escape à solidão, o marido tinha que se envolver com a advogada que também é prima da mulher. Não bastava isto, tinha que haver uma mãe/avó que é extremamente crítica com a filha e que odeia o genro. E ainda por cima essa mãe/avó é uma sobrevivente do Holocausto. Ah e não bastava isto tudo ainda por cima a senhora começa a dar sinais de ter Alzheimer. A mim parece-me que todos estes pormenores eram dispensáveis. E até seria mais verosímil ver o casamento a acabar sem a intervenção da sogra, digo eu.
Ainda assim, vejam que não se vão arrepender. E venha de lá esse Óscar de Melhor Atriz.
Frida Mom é uma marca de produtos de higiene íntima feminina. O seu último anúncio publicitário foi censurado pela ABC e proibido de passar na televisão no intervalo da cerimónia dos Óscares. Demasiado gráfico, disseram. Não porque seja violento ou porque revele qualquer nudez, mas porque mostra algo que nunca é mostrado e de que ninguém fala: o sofrimento de uma mulher, depois de dar à luz, com algo tão básico como fazer chichi.
É um daqueles tabus que ainda existem em volta do corpo (sobretudo do corpo da mulher). O parto parece que já é um assunto mais ou menos normal mas a menstruação e as necessidades fisiológicas são temas proibidos. Sobre o pós-parto, então, ninguém fala. Nem às grávidas. É como se não existisse. Dizem-nos: "o corpo está preparado para cicatrizar e voltar ao lugar". Ninguém nos diz quão doloroso vai ser. Porquê?
Quando o António nasceu eu fui cortada e cosida, como quase todas as mulheres que vão parir aos hospitais públicos. A episiotomia é (ou pelo menos era) um procedimento de rotina, feito por princípio, sem se avaliar da sua real necessidade e sem que a mulher seja consultada. O pós-parto é terrível. As dores são imensas. No hospital, deram-me gelo para ajudar o inchaço a diminuir. Como sabem, mesmo depois do nascimento do bebé, o corpo continua a libertar muito sangue. E mesmo com dores e com pontos na vagina, é preciso ir à casa-de-banho, fazer chichi e cocó (e por mais que nos digam que está tudo bem, é inevitável ter medo de fazer força). Não é uma fase muito agradável. A cicatrização pode correr às mil maravilhas ou podem surgir complicações. No meu caso, talvez porque eu estava imbuída do espírito da super-mulher, típico de quem é mãe pela primeira vez, e me tenha esforçado mais do que era aconselhável, correu mal. Os pontos caíram mas a costura não cicatrizou, avisou-me a médica na primeira consulta do puerpério, daí o facto de as dores persistirem. Eu quase não me conseguia mexer, nem andar nem sentar-me normalmente. Foi preciso ter cuidados redobrados. De cada vez que ia à casa-de-banho lavava-me com água fria (que arrepio) e com um sabão especial e limpava-me com uma toalha com muito cuidado. Depois, usava o secador, com vento frio, para ter a certeza que a zona ficava bem seca. Tenho ideia que também punha uma pomada qualquer. O processo demorou quase um mês. Aquele mês em que estava a aprender a ser mãe, a lidar com hormonas aos saltos, com noites sem dormir e com essas coisas todas, boas e más, que nos acontecem no corpo e na vida quando temos um filho. Entretando, as dores passaram e a médica confirmou a cicatrização. Mas a minha (nossa) vida sexual continuou arruinada ainda por bastante tempo. Por medo, sim, mas também porque a cabeça é lixada e não é fácil ter vontade de procurar o prazer numa zona do corpo que tanto sofrimento me tinha causado. Com o segundo filho as coisas correram bastante melhor. Voltei a ser cortada e cosida mas já sabia o que tinha de fazer e não fazer, desde o primeiro dia, para evitar complicações. Doeu (doeu muito) mas foi tudo mais fácil e rápido.
Disto ninguém fala, não é?
Ah, não é bonito, é uma coisa íntima, que necessidade há de contar?
Pois eu acho que é muito importante. Quanto mais preparadas estivermos para o que vai acontecer mais hipóteses temos de que tudo corra bem. Quanto mais avisadas estivermos de que isto é normal, menos probabilidades haverá de nos sentirmos miseráveis e ainda mais deprimidas (porque este é um momento muito propenso a depressões). Quanto mais informados estiverem os que estão à nossa volta (incluindo os companheiros) melhor compreenderão o nosso sofrimento.
Não é bonito, pois não, mas existe, é o que é, portanto, mais vale aprendermos a lidar com isto como gente grande.
Chama-se The Letdown, ou em português da netflix Maternidade e Desapontamento, e são apenas sete episódios que todas as mães deviam ver. Para não se sentirem sozinhas. Para se sentirem menos falhadas. Melhor do que qualquer palestra de um guru qualquer que vos diga o que é que vocês deviam estar a fazer para serem melhores mães. Mesmo.
Esta é uma série australiana, protagonizada por uma fantástica Alison Bell mas que nos mostra não só a a experiência desta mãe de uma bebé como também outras experiências de outras mães que ela vai conhecendo. E está lá tudo. Qualquer pessoa que tenha sido mãe vai encontrar algum ponto de contacto. Seja a falta de dormir seja a falta de apetite sexual (ou o medo de voltar a fazê-lo). As dores do parto. O cansaço. A insegurança (bolas, a insegurança, quando é que nos livramos disto?). A incompreensão dos amigos que não têm filhos. A solidão, aquela grande solidão que se sente naqueles meses que passamos em casa com um bebé. A amamentação. As críticas dos outros. Os olhares reprovadores. As noites sem dormir. A total inaptidão de um marido que até aí era perfeito. As discussões. A casa desarrumada. O desejo de fazer tudo bem. O falhanço. O cansaço outra vez. As hormonas. A sogra. A nossa mãe. A culpa. Sentir que estamos a crescer. A enorme responsabilidade de ter um bebé ao nosso cuidado. Aquela sensação de que isto não é a nossa vida, é como se estivéssemos a ver um filme. Só que não.
É bom para rir. Se bem que às vezes também fiquei aqui com um nó na garganta.
Ser mãe de um bebé é isto tudo e é também absolutamente maravilhoso. Pode não ser exactamente como nós imaginávamos (e, sobretudo, nós não somos exactamente como imaginámos que seríamos) mas (lá vem o tal cliché) a verdade é que não há nada que se compare a este amor que sentimos por estas pessoas pequenas que nos fazem sentir tão miseráveis e felizes ao mesmo tempo. Acho que esse é um dos grandes mistérios da humanidade.
(depois melhora. numas coisas. e também piora. noutras. enfim.)
Alguns sites de notícias publicaram as fotografias com um aviso: estas imagens podem ser chocantes. Ou perturbadoras, também houve quem escrevesse perturbadoras. O mundo das mulheres continua envolto em mil tabus. A menstruação, a gravidez, o parto, a amamentação. Tudo tem de ser tapado, calado, velado, segredado. Como se tivéssemos que sentir vergonha por sermos mulheres. Quando na verdade não há nada mais natural, mais animal, mais banal do que isto. A mim parecem-me apenas imagens muito bonitas. Com vida.
(e eu com tantas saudades da minha barriga de grávida).
Deliciem-se em Birth becomes her.
tenho muitas saudades de estar grávida. tenho muitas saudades das minhas barrigas grandes. tenho saudades daquela felicidade aparvalhada que se sente quando descobrimos que estamos grávidos. daquela euforia que dura meses. de ambas as vezes. de ter uma vida pequenina a crescer dentro de mim. de imaginar o bebé que ainda está por vir. e, depois, de ter um bebé minúsculo no colo. tão leve. tão meu. daquele momento em que começa tudo de novo e acreditamos mesmo que tudo é possível. e, não, não vou ter outro filho, mas tenho muita muita muita pena.
Naomi McAuliffe
no The Guardian (claro)
"(...) Questionada sobre se iria ser substituída no ministério durante a licença de maternidade ou se iria demitir-se antes daquela licença, a governante respondeu: “É matéria que não me preocupa neste momento, agora o que me preocupa é que a gravidez corra bem e o trabalho continue a ser intenso.” (...)"
A notícia foi publicada ontem pela Lusa e reproduzida em todos os sites de informação, não sei quem foi o jornalista que fez a pergunta mas acho isto tudo extraordinário.
Demitir-se?
Demitir-se porquê?
Assunção Cristas e o Governo têm aqui uma bela oportunidade para darem o melhor dos exemplos às mulheres que trabalham e às empresas que as contratam. Vamos lá ver se não estragam tudo...
Na enfermaria onde estive após ter tido o meu segundo conheci uma mulher que chorava todas as noites. Ouviamo-la a fungar por trás da cortina. Diz que teve um parto horrível. Que foram muitas horas de sofrimento e que de repente estava tudo à volta dela a carregar-lhe na barriga e um médico com fórceps e a criança que não saía, uma aflição. No final ficou toda rasgada e dorida que mal se mexia e o bebé tinha ficado nos cuidados intensivos até ver se a demora e as amolgadelas na cabeça não lhe iriam deixar sequelas. Acabou de ter o filho e nem lhe podia pegar. Estava ali deitada e de três em três horas lá se arrastava até à outra ponta do hospital para ir amamentar o seu bebé e dar-lhe um bocadinho de colo até que as enfermeiras a expulsavam e lá vinha ela de olhos vermelhos morrer de inveja a olhar para mim e para as outras com os nossos rebentos.
Tenho uma amiga que passou horas, muitas horas, em trabalho de parto, completamente sozinha no corredor de uma maternidade. Não podia ter o seu companheiro com ela porque não tinha quarto. Não tinha quarto porque estava tudo cheio. E ali ficou a contorcer-se com dores, a vomitar para o chão, a gritar sem amparo, a senhora da limpeza a passar a esfregona por debaixo das suas pernas. De vez em quando, quando mudava o turno, alguém parecia interessar-se. Enfiavam uns dedos e iam-se embora. Horas nisto. Nenhuma explicação. Ninguém a quem recorrer. Agarrada à barriga. A doer.
Eu ouço isto e nem me posso queixar. Mas a verdade é que eu fui, voluntariamente, mais uma cliente desta fábrica nacional de parir bebés que são as maternidades públicas. Como tantas outras. Entramos ali e dão-nos logo um clíster e uma rapadela, sem pedir licença nem dar explicações, que ali nós somos utentes e baixamos a bola porque os doutores é que sabem e podem vir cá ver quantos dedos cabem as vezes que lhes apetece. Bata verde, catéter no braço, e agora ficas aí queitinha e deitadinha com o ctg a apertar-te a barriga. Se precisar de alguma coisa toque a campanhia que há de aparecer a auxiliar com cara de frete a perguntar o que é. Se quiser fazer xi-xi dão-lhe uma arrastadeira (porquê? as grávidas não se podem mexer e ir à casa-de-banho?). E ainda não chegámos à parte do parto propriamente dito. Onde os cortes são feitos por princípio, antes mesmo de se perceber se vai ser necessário. E só pode haver um acompanhante - e, portanto, se a mulher tem uma doula tem de prescindir do companheiro. E mesmo os pais não podem ficar depois do parto porque temos que ir umas horas para o recobro - podem ser duas horas ou seis horas, depende das vagas na enfermaria, e ali fica a mãe sozinha outra vez, agarrada ao seu recém-nascido, com as emoções aos pulos e ninguém para partilhar. (só eu mesmo que sou ideologicamente estúpida para me deixar levar duas vezes pela conversa de que os hospitais públicos é que são bons)
Li hoje no jornal Público que Portugal é o segundo país da Europa com mais cesarianas e que os hospitais deviam todos, mas sobretudo os particulares, fazer um esforço para diminuir o número de intervenções. Que esforço? Claro que aos senhores que mandam (e que são quase sempre senhores, o que pode ser parte da explicação mas não é a única) não ocorre que grande parte do problema se resolveria se as maternidades funcionassem como deve ser. Se não tratassem as mulheres como se fossem gado. Se tivessem o cuidado de preparar efectivamente as suas grávidas para o parto (e já agora uma preparaçãozita ao pessoal que lá trabalha também não seria má ideia). Porque enquanto houver histórias destas para contar é claro que haverá cada vez mais mulheres que, sempre que possível, vão recorrer aos hospitais particulares e chegar lá com a certeza absoluta que querem fazer uma cesariana porque não querem passar pelo que a amiga passou. E alguém as pode censurar?
Cá a mim podem chamar-me insensível à vontade. Não me importo. Gosto muito de estar grávida, de sentir a barriga a crescer, de fantasiar o meu bebé, de me sentir mãe desde o primeiro dia em atraso. Gosto ainda mais de ser mãe, de passar horas a olhar para o bebé (um bebé é como as ondas do mar ou como as labaredas de uma fogueira, uma pessoa nunca se cansa de ficar a olhar), de o ver crescer fora de mim, de me deliciar, em cada nova fase, com as suas aprendizagens, os primeiros passos, as primeiras palavras, o raciocínio cada vez mais elaborado. Mas não gosto do que está pelo meio. Lamento. E cá a mim podem chamar-me insensível à vontade, que eu não me importo, pois a verdade é que não consigo ver onde é que está a maravilhosa beleza do parto. Há até quem diga que o dia em que deu à luz foi o mais feliz da sua vida. A sério? Pois a mim a felicidade costuma doer-me um bocadinho menos. É que, não sei se já tinha dito, mas a mim, insensível como sou, nem a epidural me consegue afectar. Nada. Nicles. Uma fraude. Vem a anestesista e promete, com aquele ar de quem tem um poder mágico, que a próxima contracção ainda me vai doer mas que a outra já será menor e à terceira não sentirei nada. E eu, tansa, apesar da experiência de há quatro anos, ainda acredito. Achei que desta vez é que era. Mas não. À terceira contracção continuo a contorcer-me e daí a pouco já estou outra vez a bufar ou a soprar ou lá o que é que nos ensinam nas aulas de preparação para o parto, mas uma coisa é a Graça Mexia a dizer-nos ‘vem aí uma contracção’ e a gente imagina que dói e aquilo não custa, é só respirar e pronto, outra coisa bem diferente é começarmos a senti-la de facto, vem aí, vem aí, e não há nada que acalme aquela dor, uma pontada que vem sabe-se lá de onde e se espalha da barriga e dos rins até ao resto do corpo, uma coisa assim quase demoníaca, digo-vos eu que até nem costumo ser muito queixosa e quem me conhece sabe que não me deixo abater facilmente por uma gripe qualquer. Só que isto não é uma dorzinha de dentes nem uma ferida no joelho. Isto é um parto, senhoras e senhores, um parto à moda antiga, com direito a gritos e suores, uma coisa verdadeiramente animal - ali, de pernas abertas, a tentar expulsar a cria que carregámos durante nove meses, somos animais, não há outra hipótese, não há beleza nem tranquilidade nem marido a dar a mão que nos safe, só há força, força, força, sai daí puto, vá, deixa lá a mãe descansar. E, então, sim, lá vem a felicidade. Uma enorme felicidade. Por tudo ter finalmente terminado.