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Eu até estava em modo desligado, longe da actualidade, mas três notícias horríveis entraram pela minha semana de férias sem pedir licença:
Em França, começou o julgamento de um homem que drogava a sua mulher para permitir que outros homens a violassem enquando ela dormia. O homem "publicitava" a mulher num fórum online cujos membros fantasiavam com sexo não consensual e depois filmava esses actos sexuais. Foram identificados pelo menos 72 homens, dos 26 aos 74 anos, que violaram (alguns mais do que uma vez) aquela mulher (lembrei-me desta história).
Um canal de Telegram português é frequentado por cerca de 70 mil homens que partilham fotografias e vídeos de mulheres. Tem de tudo. Vídeos feitos na intimidade e fotografias tiradas na rua ou na praia. Imagens captadas com consentimento (mas não com consentimento para serem partilhadas) e imagens captadas às escondidas. Tem mulheres, jovens e até meninas. Como este, existem muitos outros canais e grupos, onde homens se sentem à vontade para expor e comentar mulheres que não fazem ideia que a sua imagem circula desta forma. Há homens que o fazem activamente, outros só vêem, mas nem por isso são menos culpados, uma vez que não só participam no grupo como nunca fizeram nada para pôr fim aos abusos.
A atleta Rebecca Cheptegei, do Uganda, morreu hoje, quatro dias depois de ter sido atacada com fogo pelo namorado: o companheiro regou-a com gasolina e incendiou-a, deixando-a com queimaduras em 80% do corpo. Ela acabou por não sobreviver. Tinha 33 anos.
Foi no Uganda, podia ter sido noutro sítio qualquer. Em 2021, 81.100 mulheres foram assassinadas em todo o mundo, de acordo com dados da ONU. Entre todas as mulheres e meninas mortas intencionalmente, 45 mil, ou seja cerca de 56%, foram mortas por parceiros íntimos ou outros membros da família. No ano passado, em Portugal, 17 mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica.
E é este o mundo em que vivemos. Um mundo onde homens maltratam e matam as suas companheiras. Onde homens não vêem problema em ter relações com mulheres inconscientes. Onde homens não respeitam a privacidade das mulheres. Onde homens fazem tudo para controlar e aprisionar as mulheres. Não todos os homens, claro, felizmente. Mas muitos. Muitos mais do que gostaríamos de admitir.
Ainda dizem que ser feminista está fora de moda, que já não é necessário. Mas eu olho à volta e vejo tanto por fazer. Sobretudo no que toca à educação e à socialização dos rapazes e dos homens: para que percebam o que é errado, para que não repitam comportamentos tóxicos, para que não participem nestas atrocidades, para que denunciem os outros homens sempre que necessário. Onde é que estamos a falhar?
Atenção: este texto contém spoilers.
Nunca tive uma Barbie. Tínhamos uma Cindy e duas Tuchas, lembro-me das Nancys e dos Carecas. Talvez a Barbie tenha chegado em força ao nosso mercado quando eu já estava a deixar de brincar com bonecas, não sei. Não me lembro de alguma vez ter desejado ter uma Barbie.
Desde que vi o primeiro trailer de Barbie - o filme que fiquei curiosa. Seguramente isto não seria um filme para crianças. Haveria humor e feminismo. E para que conste: sou bastante fã da Greta Gerwig e do seu companheiro Noam Baumbach, juntos ou em separado. Fui ver o filme no fim de semana, depois de uma semana de muito trabalho, antes de uma semana de ainda mais trabalho com a Jornada Mundial da Juventude. Não tinha lido nada. Levei algumas expectativas mas não me vesti de cor-de-rosa - comportamento que não entendo e que, lamento, acho até ridículo. A sala estava cheia, como aliás tem estado nas muitas sessões do filme em muitos cinemas. O filme começa bem. É muito engraçado imaginar como seria a vida da Barbie se existisse um mundo à semelhança da boneca e dos seus muitos acessórios. Depois, a mudança para o mundo real é talvez a parte mais interessante do filme, pela crítica à nossa sociedade e ao patriarcado. A Barbie percebe que, afinal, o mundo não é dominado pelas mulheres, o Ken descobre que pode ser mais do que um adereço da Barbie. Ri-me, confesso. Há piadas muito boas e inteligentes, referências interessantes. E depois, pronto, o filme perde-se. Começa a perder-se exatamente no momento em que a Barbie foge das garras da Mattel e a partir daí é um descalabro sem fim, torna-se aborrecido e tem falhas de verosimilhança. Os senhores da Mattel são uns palhaços sem qualquer justificação, o comportamento dos homens é uma cambada de estereótipos, a solução das mulheres é uma artimanha de treta. A sensação que dá é que o argumento entrou num beco sem saída e foi preciso encontrar ali qualquer coisa mesmo que não fizesse grande sentido. Arranjaram maneira de incluir às três pancadas os bonecos e bonecas que fogem da norma, mas a mensagem final não é de igualdade entre géneros. E isso custou-me um bocadinho. O feminismo, tanto quanto sei, não é defender a superioridade das mulheres sobre os homens. O final (tirando a parte lamechas, dispensável) acaba por se redimir um pouco: a Barbie-esteréotipo-de-mulher acaba por perceber que pior do que ser de carne e osso, envelhecer e morrer, será viver uma vida completamente estéril, sem qualquer emoção verdadeira. Apesar disso, saí com um travo a desilusão, com a sensação de que se perdeu uma bela oportunidade de fazer um filme mesmo revolucionário.
Fui só um dia, que a agenda não me permitiu mais, mas acabou por ser uma tarde gloriosa. E ouvi e li muitos relatos por aí. A segunda edição do Jardim de Verão, na Fundação Calouste Gulbenkian, programado por Dino d'Santiago, confirmou-se como um espaço de diversidade, igualdade, partilha e empatia, como infelizmente ainda há poucos nesta cidade que se diz tão diversa. Havia ali uma alegria que se sentia no ar. O que faz a diferença não é tanto a diversidade, que a essa pelo menos alguns de nós já estamos habituados, embora noutros contextos. O que faz a diferença é precisamente ver essa diversidade num espaço institucional e elitista, onde ela é tão pouco comum. Como escreveu o Vítor Belanciano: a "prova de que é possível fazer a diferença quando lugares institucionais de grande representatividade para o colectivo estão dispostos a partilhar o poder, o espaço, os sentidos e os imaginários, envolvendo de forma muito concreta quem por norma não acede a eles". É um caminho e é bom que esteja a ser feito.
Fotografia retirada do Facebook da Fundação Calouste Gulbenkian
(Aliás, abrir parêntesis aqui para dizer que o Belanciano continua a ter um dos olhares mais atentos e instigadores sobre a cultura contemporânea - pop ou urbana ou outra - e que, polémicas à parte, é sempre um prazer lê-lo, por agora só nas redes sociais.)
“Eu acho que as coisas estão a mudar, mas depois dou três passos fora da minha bolha e vejo que ainda está tudo longe do ideal, não sei se a sociedade efectivamente está a mudar.”
As palavras do Mário são certeiras. Porque escolhemos bem as nossas relações, pertencemos a um grupo restrito de pessoas que acredita que a mudança está a acontecer. Que há cada vez menos machismo, menos misoginia, menos homofobia, menos racismo, menos xenofobia, menos discriminação e menos preconceitos. Mas iludimo-nos. Basta uma viagem a essa lixeira que são as caixas de comentários dos jornais online para perceber que estamos muito longe dessa mudança. Aconteceu-me recentemente, primeiro com a entrevista ao Mário, que foi insultado de tudo e mais alguma coisa só por pintar as unhas e fazer tricot, e depois com um outro artigo sobre um novo projecto feminista, cujas fundadoras foram apelidadas de radicais, acusadas de não terem homem e mandadas para casa lavar a loiça, entre outros mimos. Como é possível?
Tenho muita dificuldade em lidar com esta realidade. Quero ficar na minha bolha. No meu cantinho de tolerância e empatia. Mas, por outro lado, não consigo ficar completamente fora do mundo, nem que seja porque (oh, que pretensão a minha) sinto que temos todos de fazer alguma coisa para impulsionar a mudança, ainda que pequena. É uma questão de cidadania. Não podemos passearmo-nos por aqui como se tudo isto, só porque não nos afecta directamente, não tivesse nada a ver connosco.
Na falta de melhor, continuo a falar e a escrever. São só palavras. Uma arma fraquita, mas é o que temos.
O número de Interrupções Voluntárias da Gravidez (IVG) pode ser usado como critério de avaliação da eficácia do planeameno familiar. Menos IVG correspondem a um planeamento mais eficaz, dizem os senhores que mandam.
E se fizéssemos a contabilidade de todas as pessoas que tiveram filhos porque não têm informação suficiente sobre reprodução e contracepção ou porque o parceiro não quis usar preservativo ou porque são elas que não gostam de usar preservativos, pessoas que tiveram filhos porque fizeram mal as contas, porque falharam a toma da pílula ou porque não conseguiram comprar uma pílula do dia seguinte, pessoas que tiveram filhos por acidente, um daqueles descuidos e agora já foste, pessoas que tiveram filhos por vergonha ou medo de fazer um aborto ou porque o companheiro se opôs ou porque alguém as intimidou. Filhos que não faziam parte dos planos.
E que, na verdade, não são grande exemplo da eficácia do tal do planeamento familiar.
(Nem sei se vale a pena comentar as declarações muito despropositadas da nossa ministra da saúde que diz que a IVG é um direito, assim como fumar. No sentido em que são coisas que as pessoas fazem porque querem, mesmo sabendo que são prejudiciais. Tal e qual, não é?)
Faltei a um jantar a que queria ter ido, aliás nesse dia nem jantei, e fui sozinha, o que é chato sobretudo por não ter com quem trocar ideias no final, mas apesar disto tudo fui ao CCB na sexta-feira porque não queria mesmo perder o Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, da Sara Barros Leitão. Eu já sabia que ia ser bom. Foi ainda melhor.
O espectáculo parte da realidade das criadas, mulheres que, fosse no século XIX ou no Estado Novo, iam trabalhar e viver para casa dos patrões perdendo todos os seus direitos (incluindo a liberdade, a privacidade, o direito a ter uma família e até uma vida própria) para se dedicarem a cuidar dos outros, tantas vezes sem pagamento justo nem descanso assegurado. Está tudo explicado NESTE livro que conta as histórias dessas miúdas vindas da província ainda crianças e das humilhações que sofreram.
Mas, depois, o espectáculo vem até ao 25 de abril para mostrar como até nas revoluções que se dizem de esquerda há uns que são mais iguais do que outros e até os sindicalistas precisam de alguém que lhes limpe o pó e faça o assado para o almoço. E, finalmente, viaja até aos nossos dias e faz-nos pensar nas criadas de hoje. Nas mulheres-a-dias, nas empregadas, nas senhoras da limpeza, em todas essas mulheres (porque são maioritariamente mulheres) que continuam a limpar as nossas casas. Já sem falar daquelas que, em 2021, continuam a ser "internas", sujeitas a essa quase-escravidão disfarçada de caridade, pessoas que "são como da família" só que não são, são as pessoas que limpam as sanitas das outras.
Têm essas mulheres - muitas delas imigrantes, racializadas, sem papéis, quase todas desfavorecidas social e economicamente - os seus direitos garantidos? Ou continuam a ser exploradas, assediadas, abusadas?
Esta é uma reflexão que é preciso ter. E que não é um problema só das elites, porque hoje em dia grande parte das pessoas tem empregada, nem que seja durante quatro horas por semana, como eu.
Num momento em que questionamos os horários laborais, as 40 horas por semana, as horas extraordinárias, é importante lembrar que todas essas regras foram instituídas num tempo em que muitas das mulheres ficavam em casa e asseguravam que as compras eram feitas, a casa era limpa, a comida chegava à mesa, as crianças eram educadas e mimadas. Eram criadas não pagas das suas próprias famílias.
Num momento em que lutamos pela igualdade de género e batalhamos pelo reconhecimento das mulheres no trabalho, exigindo que haja mais mulheres nas lideranças e que sejam igualmente pagas, não nos devemos esquecer que para as mulheres "saírem de casa" para trabalhar foi preciso que outras mulheres ficassem nessas casas a fazer o trabalho que antes era delas.
É o seu trabalho reconhecido? Estamos a dar-lhes o devido valor e a garantir-lhes adequadas condições de trabalho?
Porque não basta olhar para o passado e reconhecer como tantas coisas estavam erradas se não tirarmos daí alguma lição para o presente.
E, para além disto, o texto é óptimo, o uso dos objectos é surpreendente, a Sara é fantástica e está tudo lá, no sítio certo, para nos fazer sorrir e pensar, de tal forma que nem se dá pelo tempo passar. Eu sei que há poucas sessões mas, se puderem, não percam.
Descobri esta semana (eu sei, sou um bocadinho ignorante), por causa de umas pesquisas que andava a fazer, que a palavra assédio é usada em contexto militar.
Assédio: "acção que consiste em cercar militarmente uma posição inimiga, geralmente durante um período prolongado ou que se calcula dever durar muito. Sinónimo de cerco." (Priberam); "conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga" (Infopedia).
Fora do contexto militar, a palavra assédio tem mais ou menos o mesmo significado. É um cerco. Uma tentativa de domínio.
Falemos, então, do assunto do momento: o assédio sexual. Outra vez. As vezes que forem necessárias. E falemos, finalmente, do assédio sexual em Portugal.
Há mulheres que cometem assédio mas, convenhamos, na maioria dos casos o assédio é realizado por homens. Existe aqui uma forte componente cultural - não há nada na genética dos homens que os leve a ser javardos, os homens não sofrem de desejos incontroláveis nem têm ímpetos inatos que os levam a apalpar uma mulher na rua. Mas existe um caldo cultural no qual estes comportamentos têm sido apurados em lume brando ao longo de séculos. E que, como é óbvio, leva algum tempo a destruir. Estamos nesse caminho. Através da educação que damos aos rapazes e às raparigas. Através da legislação. Através dos debates que todos os dias temos no espaço público e que contribuem para mudar a forma como estes assuntos são encarados. Já conseguimos mudar muita coisa mas ainda há muito por mudar.
E é isso que estamos a tentar a fazer quando falamos publicamente sobre o assunto.
Há diferentes comportamentos masculinos que estão errados e que demonstram uma profunda falta de respeito pelas mulheres. Mas estando todos errados não são todos iguais.
Há as situações de rua (que também podem acontecer no local de trabalho) - os piropos, os encostos no metro ou no elevador, os gajos que não param de olhar para o nosso corpo, o maluco sentado no canto do autocarro a mexer na pila, os colegas que comentam a tua aparência (são elogios, quem é não gosta? lol). É tudo horrível. As mulheres aprendem cedo a proteger-se destas situações. Mudamos para o outro lado do passeio. Baixamos os olhos. Encolhemos os ombros para esconder o decote. Ignoramos as javardices que ouvimos. Mulher séria não tem ouvidos, foi o que nos disseram desde pequeninas. Mas não deveria ser assim. Não deveríamos ter que passar por isto. Nenhuma mulher deveria sujeitar-se a ser tratada desta forma, nem deveria sentir-se desconfortável ou insegura apenas pelo facto de ter um corpo. Muita gente acha que não, mas isto já é assédio.
Existem outras situações de assédio que são já um passo em frente, que é quando os homens tentam interagir com as mulheres e, mesmo quando elas recusam os seus avanços, eles insistem. Isto é comum acontecer na noite, em bares ou discotecas. Mas pode acontecer noutras situações sociais, em festas de amigos ou mesmo entre colegas de trabalho. Há homens que têm muita dificuldade em aceitar um não. Que insistem em chegar-se mais perto, em colocar uma mão no nosso braço, em fazer sorrisos e olhinhos e insinuações mesmo quando já demos a entender que não estamos interessadas. Porque, entendamo-nos: uma coisa é um homem estar interessado numa mulher, demonstrar de alguma forma esse interesse e ser retribuído, ela interage com ele e a coisa evolui como ambos querem - isso é aquele processo de sedução que se quer saudável e divertido; outra coisa é um homem estar interessado numa mulher, ela demonstrar que não está interessada e ele insistir, tomando atitudes cada vez mais intrusivas. Uma coisa não se confunde com a outra, acreditem.
Estas duas situações de assédio são não só bastante comuns como são geralmente desvalorizadas pelos homens que, quando confrontados, raramente admitem que estão a fazer alguma coisa errada. Afinal, são só homens a ser homens, não é? Ora agora, já não se pode dizer nada?
E, por fim, e num patamar ainda mais grave, diria eu, existe o assédio que é realizado por homens que estão numa posição de poder em relação à mulher. Os professores em relação às alunas. Os chefes em relação a subalternas. Os ministros, diretores, presidentes, senhores doutores (e etc.) em relação a qualquer mulher que, por algum motivo, sinta que se não corresponder pode ser prejudicada - no seu emprego, na sua vida. Sou uma sortuda, nunca passei por uma situação destas. Mas sei que, nestes casos, é triste dizê-lo, as mulheres acabam algumas vezes por sujeitar-se a fazerem coisas que não querem fazer. Por medo. Quase sempre por medo de represálias. Ou porque não têm, naquele momento, as ferramentas necessárias para saberem recusar, ou porque são muito novas ou muito frágeis ou porque se sentem encurraladas ou porque sentem que não têm opção, mas sempre por terem medo. Ou, então, recusam delicadamente os avanços e enfrentam sozinhas as consequências. E continuam a sentir medo.
Nada disto é aceitável.
E, sim, é bom ver que também em Portugal as vítimas estão a perder o medo de denunciar estas situações. Bravo, corajosas.
Mas também seria bom que todos nós tomássemos consciência da quantidade de vezes em que vimos estas coisas acontecer à nossa frente e não fizemos nada. As vezes em que não mandámos calar aquele colega inconveniente. As vezes em que avisámos alguém: "tem cuidado com o fulano" em vez de confrontarmos directamente o fulano. As vezes em que falámos entre nós e o máximo que conseguimos foi insultar o gajo pelas costas e garantir que íamos estar sempre ali para as nossas amigas.
As vezes em que pessoas com poder em empresas e instituições foram complacentes com estas situações, riram-se dos comentários sobre as estagiárias, olharam para o outro lado para não verem, encolheram os ombros e disseram "ele é assim" em vez de tomarem uma posição: admoestando os abusadores, abrindo processos disciplinares e deixando bem claro que tais comportamentos não seriam mais tolerados.
Nem todos os homens são assim, felizmente. Mas, infelizmente, basta que alguns o sejam para causar um enorme sofrimento nas suas vítimas.
A quantidades de testemunhos que li nestas últimas semanas - nas redes sociais e na imprensa - denunciando casos de assédio, e o baixo nível dos comentários, críticas e insultos lançados a essas mulheres mostram bem o quanto ainda nos falta andar.
Vamos?
É muito cansativo ser mulher no Dia da Mulher. No supermercado, havia ontem uma bancada especial com flores. No Facebook, amigos falavam do quanto as mulheres são especiais porque têm o poder de dar vida e mandavam mensagens desejando um "feliz dia". Na comunicação social, repetiram-se as entrevistas às mulheres de sucesso. A sério. É muito cansativo ser mulher no Dia da Mulher, o que nos mostra o quanto este dia ainda é necessário.
Fixemos isto: em 2021 houve uma mulher, diretora de um jornal, que se deu ao luxo de escrever nas suas redes sociais que "das fracas não rezará a história", como se só as CEO deste mundo fossem "mulheres com M maiúsculo". Infelizmente, não é a única a pensar assim.
Podíamos comentar como é fácil ser forte quando se é herdeira de uma empresa e se tem uma Marilene lá em casa a fazer o jantar para toda a família, mas não vamos entrar por aí, não é? O problema é muito mais grave do que isso. É que esta ideia de mulheres fortes e fracas remete para uma hierarquização das pessoas em função de um determinado conceito de estatuto social. E isso é algo tão inacreditavelmente preconceituoso.
Em nome das "fraquinhas" deste mundo, quero homenagear todas as mulheres - mesmo aquelas anónimas que não terão nunca direito a um rodapé nos livros de história - e dizer-lhes que independentemente de serem criadas ou gestoras de empresas, de serem ricas ou pobres, gordas ou magras, feias ou bonitas, de usarem chinelos ou saltos altos, independentemente do apelido, da cor da pele, da quantidade de pêlos que têm no corpo, independentemente de terem ou não filhos e dos motivos para tal, independentemente de terem nascido em Portugal ou na Índia, de morarem na avenida de Roma ou na Cova da Moura, independentemente das origens e das opções de vida, independentemente de se manifestarem na rua pelos vossos direitos ou de sofrerem em silêncio por todas as violências de que são alvo, vocês, mulheres, todas as mulheres, merecem ter todo o respeito, toda a liberdade e todos os direitos que os homens têm. E isto é só o começo da conversa.
Nunca tinha pensado nela até há dias, quando vi as notícias sobre a sua morte. Conhecia bem as imagens da menina negra que em 1960, desafiando a tradição segregacionista, foi para a escola primária pública em New Orleans, EUA, escoltada por quatro US Marshals que a mantinham longe das ameaças e dos insultos dos brancos. Mas nunca me tinha ocorrido que esta menina de seis anos, Ruby, não tinha de facto ido para a escola sozinha. Foi ela que ficou famosa, sim, por ser a primeira aluna negra naquela escola, mas foi a mãe, obviamente, que a meteu nesta batalha.
Lucille Bridges é o seu nome.
Nasceu no Mississipi e, tal como a maioria das crianças negras naquele tempo, não chegou a terminar a escola primária. Foi mãe em 1954, o ano do caso Brown vs. Board of Education, no qual o Supremo Tribunal considerou ilegal a segregação nas escolas norte-americanas. O Louisiana foi um dos estados que prolongou a discriminação até à publicação de uma lei federal, em 1960. Mesmo assim, o distrito escolar onde os Bridges moravam exigia que os alunos negros fizessem um exame para determinar se tinham condições para estudar com os colegas brancos. Nesse ano, Ruby foi uma dos 165 alunos que fizeram o exame, foi apenas uma das seis crianças aprovadas e foi a única a decidir frequentar a escola William Frantz Elementary, tradicionalmente uma escola branca.
O pai, Abon, estava reticente, foi a mãe que insistiu que ela deveria ir. "Queria que os meus filhos tivessem melhores oportunidades do que nós, queria que eles fossem para a escola e aprendessem", explicou numa entrevista posterior. Antes daquele primeiro dia de aulas, o diretor da escola disse-lhes, a ela e ao marido, que era melhor rezarem porque as coisas iriam ficar feias. E ficaram.
Naquele dia, Ruby saiu de casa com roupa e sapatos novos, oferecidos por um apoiante dos direitos civis, que a família não teria dinheiro para comprar, acompanhada pela mãe. Enquanto faziam o seu caminho a pé para a escola, uma multidão de brancos furiosos gritava "Two, four, six, eight, we don't want to integrate" e atirava-lhes tomates, ovos e garrafas. A casa da família esteve sob escolta policial durante todo o ano lectivo, várias famílias tiraram os seus filhos daquela escola, apenas uma professora aceitou dar aulas a Ruby - e por isso durante um ano ela teve aulas sozinha. Toda a família sofreu pressões, Abon perdeu o emprego e os pais acabariam por se separar.
Mas também houve muita gente a apoiar a família e, gradualmente, as escolas do Sul acabaram por aceitar o fim da segregação.
Ruby estudou sempre em escolas públicas não segregadas, terminou o liceu e é, desde então, uma activista dos direitos civis.
Este momento aconteceu há precisamente 60 anos, a 14 de novembro de 1960. A mãe de Ruby não aparece em muitas das fotografias daquele dia que se tornaram famosas. Mas, como sempre, as mães até podem ficar uns passos para trás e prescindir do protagonismo, mas estão lá.
Lucille morreu no passado dia 10 de novembro, com 86 anos.
Sobre saias e meninos já disse o que tinha a dizer há uns tempos AQUI.
O assessor da deputada, Rafael Esteves Martins, também disse o que tinha a dizer e esteve muito bem AQUI.
Um homem entrou de saias no Parlamento. Registe-se o momento histórico. Houve quem falasse em manobra de marketing. Será. Mas a mim o statement parece-me óbvio: estamos aqui para estraçalhar os estereótipos e os preconceitos e defender a liberdade de cada um ser como é. Que é, na verdade, uma das coisas que as pessoas que votaram no Livre esperam que o partido faça.
O resto são os polemistas do costume que acham que têm de ter opinião sobre a roupa que os outros usam como se isso lhes dissesse respeito. A sério. Cada um veste o que quer. Quando quer. Como quer. Prefiro mil vezes pessoas que estão na assembleia (ou noutro sítio qualquer) a exibir as suas tatuagens e piercings e ténis e chinelos e minissaias e o que mais lhes apetecer mas que trabalhem e sejam honestas do que gente engravatada com botões de punho e camisas vincadas mas que são uns trafulhas e incompetentes.
O "respeito pela instituição" mede-se em trabalho, assiduidade, pontualidade, preparação, empenho, seriedade. Não tem nada a ver com uma saia plissada.
(a foto é do Miguel Silva/ Jornal Sol)