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25
Abr25

Liberdade

Não sei bem quando é que tive consciência do privilégio que é viver em liberdade, como nós vivemos, mas sei que aconteceu muito cedo e que há de ter sido seguramente a partir de conversas com o meu pai, a partir de filmes e séries sobre a escravatura e as ditaduras e as guerras, por causa das aulas de história e dos acontecimentos à minha volta, com a ajuda das músicas que fui ouvindo, dos livros que fui lendo, dos artigos em jornais, das notícias na televisão. Vi o Muro de Berlim a cair em directo e lembro-me de ficar impressionada com a alegria esfuziante daquelas pessoas do Leste. Vi a Praça de Tiananmen. O Mandela a ser libertado e o apartheid a desmoronar-se. Isto tudo aconteceu quando eu estava no liceu. Eu já sabia, mas acho que viver aquelas coisas naquela idade, ao mesmo tempo que me descobria e construía, me tornou ainda mais consciente do que é ser livre. 

Não sei bem quando é que tive consciência de que não era totalmente livre, mas sei que aconteceu muito mais tarde. Não estou a falar da liberdade para fazer tudo o que me dá na real gana sem pensar nas consequências, não é isso. Estou a falar da liberdade como espaço pessoal, íntimo. A liberdade para pensar com o mínimo de amarras. Para ser eu. Sem medo. Sei que não é possível fazê-lo completamente mas é possível caminhar nesse sentido e, de há uns tempos para cá, essa é a minha batalha. Estou ainda muito longe. Estou cada vez mais próxima.

A liberdade é uma luta constante, diz a Angela Davis. É frágil e precisa ser cuidada todos os dias. Seja com actos heróicos, com palavras ou até "só" com a nossa consciência. 

É por isso que, não desmerecendo o Zeca, o Sérgio, a Garota e todas as outras músicas que canto emocionada, acabo sempre por voltar aqui:

Nina Simone, I wish I knew how it feels to be free

*

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A foto não é de hoje, mas o sentimento é o de sempre.

*

A liberdade também está a passar por aqui:

publicado às 11:51

18
Abr25

Despertador

Eu sou das manhãs. Seja a que horas for, mesmo que seja cedo ou muito cedo, acordo com energia e boa disposição. Não preciso daquele tempinho para despertar o corpo, nem necessito de café para ter conversas articuladas. E muitas vezes acordo até antes do despertador. Fresca e pronta para o que vier. De manhã estou no meu melhor. É a melhor altura para trabalhar, para fazer exercício, para pensar, para tomar decisões. 

Fui das manhãs até mesmo quando as noites se tornaram mais desafiantes, naquela altura, quando eles eram bebés, em que havia noites realmente complicadas. Passei muitas horas a dar colo, a dar mama, a cantar canções, a mudar fraldas. Houve noites em que mal dormi e julguei que não ia aguentar. Mas depois, via a luz da manhã começar a entrar pelas frestas da janela, respirava fundo e fazia uma espécie de um restart mental. Bom dia! E de repente o cansaço desaparecia e ia buscar energia sabe-se lá onde. Habituei-me, então, a passar as noites num estado constante de vigília. Ao minímo barulho, ao mais sussurrado "mãe" vindo do quarto ao lado, abria os olhos e ficava operacional. Nesse período tornei-me perita na arte de acordar e voltar a adormecer. Acordar para trocar lençois molhados de xixi ou para avaliar uma febre ou acalmar um filho depois de um pesadelo ou aquecer um copo de leite ou dar espaço para mais um na minha cama. E quando eles começaram a crescer bastava-me ouvir o barulho da porta ou o António a assomar ao meu quarto, "mãe, já cheguei". Nesse estado semi-acordado, tive conversas sérias e até dei raspanetes, mas também dei miminhos, fiz camas para amigos que apareceram sem avisar, tratei bebedeiras e outras maleitas. E no minuto seguinte voltava a dormir como se nada fosse.

Entretanto, já não tenho essa capacidade tão apurada. Mas mesmo agora, em que as noites são desafiantes por outros motivos, em que acordo para ir à casa-de-banho ou por coisa nenhuma, uma vez ou várias vezes, em que volta e meia passo horas a fio em claro a pensar na vida, continuo a ser das manhãs e, embora com mais dificuldade, sou capaz de sorrir ao dia que começa e de levantar-me da cama sem ronha ao primeiro toque do despertador. 

Tudo, menos fazerem-me ficar acordada até muito tarde. Se me querem feliz, não me convidem para tomar um copo, convidem-me antes para um bom pequeno-almoço.

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Outros despertadores a tocarem neste largo:

publicado às 16:58

11
Abr25

Purgatório

“Essa sensação de o tempo estar a escassear e uma pessoa ser demasiado medricas para fazer explodir a vida que leva.”

No livro De Quatro, Miranda July mostra como uma mulher de 45 anos enfrenta a sua crise de meia-idade (também conhecida como perimenopausa) e decide abanar a sua vida e o seu casamento tradicional para se permitir partir à descoberta daquilo que realmente gosta e quer para si. Antes que seja demasiado tarde. Ou seja, antes de o envelhecimento a desfigurar.

Há muito sexo em De Quatro. Há masturbação, sexo hetero e homossexual, fantasias, brinquedos sexuais, role play. É engraçado pormo-nos na cabeça de outra mulher. Porém, não gostei assim tanto quanto esperava deste livro, que me foi muito recomendado. Em parte acho que isso tem a ver com a escrita da autora e também com a tradução. Não foi só isso. Mas prefiro falar daquilo que gostei. Sendo um livro escrito por uma mulher sobre mulheres e envelhecimento é claro que há sempre algum momento onde nos reconhecemos. Por exemplo, na eterna questão: conseguiremos, apesar de todas as condicionantes sociais, ser quem realmente somos (ainda que para isso precisemos de ter um quarto-refúgio num motel a vinte minutos de casa, como esta mulher)? Ou na outra pergunta, que todas nos fazemos a determinada altura: como será a paixão (ainda haverá paixão) quando envelhecemos? 

Depois, achei interessante a relação dela com as amigas e as conversas com outras mulheres, como quem percebe que afinal não está sozinha. E gostei de toda a parte mais doméstica, da relação da protagonista com o marido e o filho, a vidinha que temos e que às tantas já nem sabemos se estamos ali porque queremos ou simplesmente porque nos habituámos a viver daquela forma.

Falando com amigos, apercebo-me da quantidade de gente que vive infeliz em casamentos e que não sabe o que fazer. Porque é mesmo muito difícil ficar uma vida inteira com uma pessoa. As pessoas crescem e evoluem e é normal que aos 50 anos já não sejamos exactamente a mesma pessoa que éramos quando nos apaixonámos e fizemos juras de amor aos 20 e tal. Talvez por isso são cada vez mais as pessoas que pura e simplesmente não casam, também as que não querem ter filhos. São cada vez mais as que procuram outras maneiras de viver o amor. Não é à toa que cada vez mais se fala de relações abertas, de poliamor, de casais que querem permanecer juntos, mas que precisam que essa relação seja diferente do que é. E finalmente são cada vez mais as pessoas que dizem chega! e se divorciam.

Infelizmente são, parece-me, também muitas aquelas que se deixam ficar na infelicidade, como se o casamento fosse um buraco do qual não conseguem sair. Por causa dos filhos. Por causa da estabilidade. Por causa das memórias. Por causa do compromisso. Por causa de um sonho por cumprir. Por causa de dinheiro. Por causa dos outros. Por causa do medo. Por medo da solidão e da velhice. Por não terem a certeza que sozinhos ficarão melhor. Cada pessoa tem as suas razões, e são todas válidas. Mas quão triste será viver nesta espécie de beco sem saída?

Não tenho respostas nem conselhos. Só perguntas. E, ainda que não tenha adorado, ler um livro que me deixa tantas perguntas nunca é tempo perdido.

A este propósito:

  • muito interessante o podcast 451 MHz sobre o livro;
  • no outro dia, a Tânia Graça falava um pouco sobre os motivos porque se fica numa relação em que não se é feliz;
  • também apanhei por acaso um artigo na The Atlantic com boas dicas para quem, como eu, tem dificuldades em fazer mudanças na sua vida: To Be Happier, Stop Resisting Change;
  • outra perspectiva engraçada aqui: "Para as mulheres, o melhor sexo pode chegar depois dos 50"
  • Não sabia quem era a Miranda July, tive que ir à procura. Nesta entrevista ela fala um pouco das suas motivações para escrever este livro. All Fours é um dos nomeados para o prémio britânico Women's Prize for Fiction, cujo vencedor será anunciado a 12 de junho; e também já se sabe que o livro vai ser adaptado para uma série de televisão.

Captura de ecrã 2025-04-07 211737.png @Quino

O que é que isto tudo tem a ver com "purgatório", que é o tema desta semana no largo? Ah, essa também é uma boa pergunta. Talvez encontrem respostas mais úteis aqui:

publicado às 08:48

04
Abr25

Planta

Os meus colegas mais novos acham que eu sou uma pessoa estranha porque tenho sempre papel e caneta. Quando conversamos e lhes conto que quando comecei a trabalhar não tinha internet, olham-me como se eu fosse um bicho raro. Como é que sabiam o que estava a acontecer?, perguntam-me. Na maior parte das vezes, se não fosse uma coisa mesmo muito importante, não sabíamos. Só mais tarde. Horas mais tarde, dias mais tarde. Mas para nós era normal. Eles não entendem. Tenho que lembrá-los que cresci sem telemóvel. Mais ainda: a minha primeira televisão era a preto e branco e só tinha um canal. E, depois, já era a cores mas só tinha dois canais. Não tinha comando. Tínhamos que levantar-nos do sofá para mudar de canal. Ah ah ah ah ah ah. Sou uma pessoa que venho de um tempo distante, para eles é como se fosse da pré-história. É impossível explicar-lhes como era viver num mundo onde não se podia fazer pausa nem voltar atrás na box para ver o que perdemos. Onde não controlávamos o que víamos, éramos meros receptores. As notícias às 20:00, meia hora depois, a novela brasileira. Os desenhos-animados logo de manhã ou à hora do lanche. A teleculinária antes do almoço. Víamos muita coisa que até não nos interessava assim tanto, mas era o que estava a dar. Ao fim de semana havia os documentários dos animais, o basquetebol da NBA, a fórmula 1. Os programas do Júlio Isidro. O Clube Amigos Disney. Os filmes nas matinés. As séries de ficção científica. E claro que víamos todos os reclames (há quanto tempo não dizia esta palavra?). Naquele tempo, a pasta medicinal Couto andava na boca de toda a gente. Escrevíamos com Bic laranja para escrita fina e Bic Cristal para escrita normal. No natal vinha o coelhinho do chocolate Regina e as Bombokas - “só há uma, é para mim!”. No verão era um Cornetto para mim, um Cornetto para ti, no inverno bebíamos Brasa, a bebida que aquece o coração. Dizíamos bom dia com Mokambo e íamos dormir com o Vitinho. Tenho a cabeça cheia de frases dos anúncios. Posso não me lembrar do que preciso comprar no supermercado, mas, bastam pequenas coisas para, do nada, desatar a cantar, sem me enganar, os jingles da minha infância. Como “É Boca Doce é bom, é bom, é, diz o avô e diz o bebééééé” Ou “Um Bongo, um Bongo, o bom sabor da selva, em cada pacotinho uma festa de oito frutos”. Ou “Aquela máquina!”. Ou “Pa-pa a pa-pa, pa-pa a pa-pa, Cérelac”.

Por isso, quanto a vocês não sei, mas a mim se me falam em planta, só consigo pensar na margarina. Nunca - nunca! - comi pão com Planta, mas isso não fará de mim menos “lambona”.

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Outras plantas que crescem neste largo:

publicado às 10:19

28
Mar25

Lugar-comum

Ficar deitada ao teu lado. Ficarmos deitados um ao lado do outro. A olharmo-nos. A abraçarmo-nos. A conversarmos. A rirmos. Ficar deitada ao teu lado. Ou em cima. Ou em baixo. Estar contigo em qualquer posição, em qualquer lugar, a qualquer hora. Cheirar-te. Deixar que o teu cheiro se entranhe na minha pele. Descobrir-te. Cada milímetro de ti. Beijar-te. Ficar só a sentir o calor do teu corpo, a tua respiração tranquila, encostar a minha cabeça levemente no teu peito enquanto dormes. Passear contigo. Ver como te movimentas seguro pela rua. Como me estendes a mão. Vamos? Ouvir a tua voz. Ouvir-te em todas as línguas. Ouvir-te sobre todos os assuntos. Por acaso sabes como adoro ouvir-te? Desde aquele dia de chuva em que fomos jantar num restaurante quase vazio no Bairro Alto e eu, a comer pataniscas e arroz de feijão, só pensava onde é que tu tinhas andado durante este tempo todo e não conseguia parar de sorrir. Ficam a doer-me os músculos da cara de tanto sorrir quando estou contigo. Contigo, transformo-me num cliché ambulante. Passear de mãos dadas. Ficar abraçados a ver o mar. Partilhar a sobremesa. Beijarmo-nos como adolescentes no meio da rua. Ouvir músicas lamechas. Encontrar significados profundos em frases pirosas do instagram. Mandar mensagens com corações. Chorar de saudades. Esperar por ti, com borboletas na barriga, na porta das chegadas do aeroporto. O melhor lugar-comum é saber que existe um lugar onde nos encontramos e somos felizes, no matter what. Os nossos braços, o nosso abraço. O nosso lugar comum.

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Mural do Beijo, de Joan Fontcuberta, em Barcelona

Outros lugares-comuns do nosso largo:

publicado às 11:31

21
Mar25

Vizinhos

Falei com a Nofouz uns dias depois dos actos terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Alguém deu o contacto a alguém que me perguntou se não estaria interessada em entrevistar uma palestiniana da Cisjordânia. Nem hesitei. Trocámos umas mensagens em inglês e combinámos um dia para falar. Pouco antes da hora, ela desmarcou. Trabalha num hospital em Hebron, a cidade onde mora, e estava com muito trabalho. Tentámos uma segunda vez. Numa pausa do trabalho, Nofouz falou comigo. Tinha na altura 23 anos e estava a terminar o curso de Medicina. Falava um inglês perfeito. De vez em quando calava-se para deixar passar os aviões. Emocionou-se algumas vezes. Mas sabia o que queria dizer. "Neste momento, tenho medo de que todas as pessoas que morreram tenham morrido por nada, que todas as crianças que passam por noites de bombardeamentos estejam a sofrer por coisa nenhuma. As pessoas de Gaza estão a lutar por todos nós. Eles não têm opção a não ser lutar. Eles estão a lutar pelo nosso futuro e eu temo que a situação fique na mesma, que, depois da guerra, nada mude", disse-me. Contei a história de Nofouz o melhor que soube, tentando mostrar as contradições de quem cresceu no meio de uma guerra, a maneira como o ódio vai aumentando contra todos os argumentos, como as pequenas humilhações e injustiças de todos os dias transformam as pessoas. De vez em quando, a ver as notícias, lembro-me dela. Trocamos mensagens esporádicas. No outro dia, celebrámos a vitória do filme No Other Land, que ganhou o Óscar de Melhor Documentário. Foi filmado numas aldeias perto de casa dela. Pareceu-me animada com a perspectiva de um acordo de paz. Falava em viajar.

Esta semana voltaram os bombardeamentos em Gaza. 

Sinto que o conflito israelo-palestino é demasiado complexo para se conseguir estar de um lado só. Tento ler opiniões de um lado e de outro. Tenho visto filmes, procuro informar-me. Andei a pesquisar sobre o movimento sionista e sobre como tantos judeus foram para aquela região quando Israel ainda não existia e os britânicos resistiam aos movimentos independentistas, quer de israelitas quer de palestinianos. Mas, um ano e meio depois, continuo sem ter uma posição definida. As soluções que parecem perfeitas no papel dificilmente resultarão quando postas em prática. Dois estados? Há demasiados subtextos, demasiada história, demasiados golpes e feridas por sarar, demasiado rancor acumulado para que a paz possa ser alcançada por vias diplomáticas. Ninguém quer ceder.

Acabei de ler O Coração Pensante, do escritor israelita David Grossman, que é muito crítico em relação a Netanyahu. A certa altura, diz: "Para quem vive em países onde a ideia de 'lar' é algo óbvio, devo explicar que para mim, para a minha consciência israelita, a palavra 'lar' cria um sentimento de segurança, protecção e pertença. Lar é um lugar onde posso existir em paz. Em que as fronteiras são reconhecidas por todos, e em particular pelos vizinhos. Mas tudo isto está envolto em nostalgia, em anseio de algo que, para mim ainda não se realizou totalmente. Por enquanto, sinto que a casa israelita é mais uma fortaleza do que um lar. Não há nela segurança nem paz, e os meus vizinhos acalentam muitas dúvidas e exigências sobre os meus quartos e paredes-fronteiras e, por vezes, sobre a sua própria existência. (...) Surge ainda um outro pensamento, o pensamento sobre os dois povos torturados: o israelita e o palestino, nos quais o trauma do refugiado é tão primário e fundamental, e apesar disso nenhum deles tem a mais leve compreensão pela tragédia do outro povo, para não falar compaixão."

Vizinhos. A maioria das guerras começa assim, entre pessoas que vivem lado a lado. De um lado ou de outro da fronteira. De um lado ou de outro da rua. Às vezes nem isso. Russos e ucranianos. Vietnamitas do norte e do sul. Sérvios e bósnios. Grupos étnicos diferentes no Ruanda. Facções opostas na Síria. Lembro-me de ver testemunhos de judeus que viviam na Alemanha antes da guerra, perfeitamente integrados, felizes, e de como, quase de um dia para o outro, passaram a ser mal tratados por aqueles com quem antes conviviam amigavelmente. Os vizinhos em quem confiavam tornaram-se seus inimigos. 

Está sempre a acontecer, e o que é mais incrível é que parece que não aprendemos nada.

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Crianças esperam a comida fornecida por uma organização humanitária em Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza (AP Photo/Abdel Kareem Hana)

Neste largo, a vizinhança é boa e escrevemos sem conflitos:

publicado às 10:10

Não sou uma pessoa divertida. Não tenho jeito para dizer piadas. Não tenho um humor refinado. Não sou a pessoa que alivia o ambiente na sala com uma daquelas frases que a todos faz rir. Gostava de ser, gostava mesmo. Toda a gente gosta dessas pessoas. Tenho amigas assim e morro de inveja da sua presença de espírito, do seu tom acutilante, da capacidade de dizer a coisa certa no momento certo. A mim sai-me sempre mal. Por isso já nem me esforço por ter graça. Sou boa a rir. Aí sim, sou inconfundível. Não sabes quem é a Maria João? É aquela que tem aquelas gargalhadas. Demorei a aceitar esta minha característica. Aprendi a rir de me rir, se é que isto faz algum sentido. Ainda hoje, não sei se é uma coisa boa ou má. As pessoas que se riem têm mais dificuldades em serem levadas a sério. Como se por rir eu não pudesse fazer bem o meu trabalho. Ou não tivesse as minhas próprias tristezas. 

N’O Nome da Rosa, Umberto Eco refere o segundo livro da Poética, de Aristóteles, considerado perdido, no qual o filósofo, ao tratar da comédia, faz uma apologia do riso e das suas virtudes. Pelo contrário, na abadia onde se passa a acção do romance de Eco, o riso é proibido. ′′O riso mata o medo, e sem medo não pode haver fé. Aquele que não teme o demónio não precisa mais de Deus", diz uma das personagens. Ali, o riso, transgressor, é perigoso - e pode, em última análise, matar. Ficções à parte, a verdade é que, ao longo da história, o riso foi sempre associado aos tolos (muito riso, pouco siso, lá diz o ditado). Ou, no caso das mulheres, à leviandade.

Felizmente, evoluímos. Os cientistas descobriram que rir faz bem à saúde do corpo e da cabeça. "Sorriam", diz a Eunice Paiva aos seus filhos no filme Ainda Estou Aqui (outra vez, eu sei; este filme tem andado aqui a remoer). Sorriam, que sorrindo é mais fácil levar esta vida cheia de contrariedades, é nisto que acredito. Felizmente tenho muitos motivos para sorrir. E quando me rio, rio-me com gosto, com prazer, desbragadamente quase. O melhor riso é aquele que acontece quase sem pensarmos, que se espalha pelo corpo todo, que faz barulho. Aquelas gargalhadas que vêm mesmo cá de dentro, que não conseguimos (nem queremos) controlar. Tenho aprendido, com o tempo, a rir de mim mesma. Não me era óbvio nem fácil. Rir do corpo balofo, da idade que avança, dos esquecimentos, das figuras ridículas, das trapalhices. A vida às vezes é tão absurda que, não sei o que o diabo faria, mas a nós só nos resta rir. 

*

Como de costume, à sexta-feira há outros diabos que se riem:

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publicado às 09:45

Às vezes no meio de um acontecimento feliz, um qualquer - um jantar com amigos, uma brincadeira com os miúdos, um silencioso dia de praia só com um livro, um barulhento encontro de família, um passeio de mão dada, um concerto daqueles -, de repente dou por mim a parar um segundo e a pensar: porra, sou mesmo uma pessoa com sorte. 

Nesses momentos fugazes de felicidade plena, sinto-me em paz, de coração lavado.

Quero guardar esse sentimento, tê-lo sempre comigo. A minha reserva pessoal de alegria para usar em caso de necessidade. Para os dias em que estou miserável e penso que vai tudo correr mal. As boas memórias são o detergente mais eficaz.

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Diz que há outros corações lavados por aí:

publicado às 09:36

28
Fev25

Carimbo

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A primeira foi uma borboleta. Já sei que é uma piroseira, mas eu sou um bocadinho pirosa, por isso não me aborreçam. Hoje faria diferente, faria uma borboleta à mesma, mas de outra maneira, mais pequena, mais esvoaçante. Mas hoje sou outra pessoa e aquela borboleta, desenhada sem grande graça, é daquela pessoa que se sentiu a afundar num dia de maio e teve que se reinventar com o que tinha à mão. As pessoas complicam muito esta coisa das tatuagens. Porque “fica para a vida toda, tens de pensar bem”, disseram-me. Ora, ora. Os amores também eram para a vida toda e depois afinal não foram, mas mesmo quando terminam deixam-nos sempre marcas. É isso viver. Acumular marcas no corpo, quer sejam visíveis ou não. Rugas, cicatrizes, sinais, tatuagens, culpas, amores, desilusões, memórias, felicidades. Faz tudo parte. Não dá nunca para apagar aquilo que vivemos, por muito que queiramos, por mais que se lave e se esfregue o corpo com força e com raiva como a Fernanda Torres no filme Ainda Estou Aqui. O meu corpo conta a minha história. Cada carimbo que faço na pele é um capítulo dessa história. A borboleta do divórcio. Os corações que são os meus filhos (ai, que pirosa, outra vez). A liberdade dos 50 (meus e da Revolução), porque ser livre, ser verdadeiramente livre, é das coisas mais preciosas e mais difíceis, e é aquilo que procuro todos dias (falhando sempre, mas cada vez melhor, como dizia o Beckett). Quero fazer mais uma. Já decidi o que será, mas ainda não quando será. A seu tempo. Com alegria.

Quando for velha e enrugada, por entre as peles flácidas e as estrias, as minhas tatuagens dirão de mim tudo o que há para dizer, mesmo que eu já não o consiga lembrar.

Tatuagem, Chico Buarque

*

As minhas companheiras do largo também hão de andar a carimbar por aí:

publicado às 09:54

21
Fev25

Teias de aranha

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Limpar armários. Tirar tudo, lavar, arrumar de volta. Limpar o fogão, mudar a areia do gato, esfregar nos intervalos dos azulejos, lavar as loiças da casa-de-banho, deitar lixívia na sanita, lavar o chão, sentir aquele cheirinho a flores do detergente. Trocar os lençóis das camas, limpar o pó, borrifar pronto pelos móveis, aspirar os tapetes, sacudir as almofadas. Despejar os baldes do lixo, arrumar a roupa espalhada pelos cabides, desviar o sofá, limpar atrás das cómodas, endireitar os livros nas estantes. Horas nisto, às tantas apetece-me desistir, mudo a playlist do spotify para algo mais animado a ver se custa menos. Doem-me as costas e juro que nunca mais. Mas, no fim, fica tudo um brinco. Há lá prazer maior do que este? Passeio-me pela casa como se estivesse de visita. Abro as portas dos quartos e fico a admirar a minha obra. Até parece uma casa como deve ser (a minha mãe ficaria orgulhosa, não consigo evitar este pensamento, lá se vai o feminismo pelo cano abaixo). Dura pouco a limpeza, daqui a nada chega um puto do futebol e vai tomar banho e o outro que deixa a mochila no chão, e os lanches e a vida, e logo à noite já ninguém vai saber do trabalho que tive, mas por agora deixem-me aproveitar, até me vou sentar aqui no sofá um bocadinho a descansar e a sorrir para a televisão desligada, tão limpa que quase me serve de espelho. 

Se pudéssemos limpar a vida como limpamos a casa, isso é que era de valor. Nada de teias de aranha na cabeça nem lixo a atrapalhar-nos os passos. 

*

Este texto foi escrito com um colectivo de gente que gosta de se meter em trabalhos. Sigam as outras teias de aranha aqui:

publicado às 09:20


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