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“Essa sensação de o tempo estar a escassear e uma pessoa ser demasiado medricas para fazer explodir a vida que leva.”
No livro De Quatro, Miranda July mostra como uma mulher de 45 anos enfrenta a sua crise de meia-idade (também conhecida como perimenopausa) e decide abanar a sua vida e o seu casamento tradicional para se permitir partir à descoberta daquilo que realmente gosta e quer para si. Antes que seja demasiado tarde. Ou seja, antes de o envelhecimento a desfigurar.
Há muito sexo em De Quatro. Há masturbação, sexo hetero e homossexual, fantasias, brinquedos sexuais, role play. É engraçado pormo-nos na cabeça de outra mulher. Porém, não gostei assim tanto quanto esperava deste livro, que me foi muito recomendado. Em parte acho que isso tem a ver com a escrita da autora e também com a tradução. Não foi só isso. Mas prefiro falar daquilo que gostei. Sendo um livro escrito por uma mulher sobre mulheres e envelhecimento é claro que há sempre algum momento onde nos reconhecemos. Por exemplo, na eterna questão: conseguiremos, apesar de todas as condicionantes sociais, ser quem realmente somos (ainda que para isso precisemos de ter um quarto-refúgio num motel a vinte minutos de casa, como esta mulher)? Ou na outra pergunta, que todas nos fazemos a determinada altura: como será a paixão (ainda haverá paixão) quando envelhecemos?
Depois, achei interessante a relação dela com as amigas e as conversas com outras mulheres, como quem percebe que afinal não está sozinha. E gostei de toda a parte mais doméstica, da relação da protagonista com o marido e o filho, a vidinha que temos e que às tantas já nem sabemos se estamos ali porque queremos ou simplesmente porque nos habituámos a viver daquela forma.
Falando com amigos, apercebo-me da quantidade de gente que vive infeliz em casamentos e que não sabe o que fazer. Porque é mesmo muito difícil ficar uma vida inteira com uma pessoa. As pessoas crescem e evoluem e é normal que aos 50 anos já não sejamos exactamente a mesma pessoa que éramos quando nos apaixonámos e fizemos juras de amor aos 20 e tal. Talvez por isso são cada vez mais as pessoas que pura e simplesmente não casam, também as que não querem ter filhos. São cada vez mais as que procuram outras maneiras de viver o amor. Não é à toa que cada vez mais se fala de relações abertas, de poliamor, de casais que querem permanecer juntos, mas que precisam que essa relação seja diferente do que é. E finalmente são cada vez mais as pessoas que dizem chega! e se divorciam.
Infelizmente são, parece-me, também muitas aquelas que se deixam ficar na infelicidade, como se o casamento fosse um buraco do qual não conseguem sair. Por causa dos filhos. Por causa da estabilidade. Por causa das memórias. Por causa do compromisso. Por causa de um sonho por cumprir. Por causa de dinheiro. Por causa dos outros. Por causa do medo. Por medo da solidão e da velhice. Por não terem a certeza que sozinhos ficarão melhor. Cada pessoa tem as suas razões, e são todas válidas. Mas quão triste será viver nesta espécie de beco sem saída?
Não tenho respostas nem conselhos. Só perguntas. E, ainda que não tenha adorado, ler um livro que me deixa tantas perguntas nunca é tempo perdido.
A este propósito:
@Quino
O que é que isto tudo tem a ver com "purgatório", que é o tema desta semana no largo? Ah, essa também é uma boa pergunta. Talvez encontrem respostas mais úteis aqui:
Depois de uma semana de muitas e fortes emoções, passei o fim-de-semana todo em casa, sozinha. Foi tempo para ler, escrever, ver filmes antigos, pensar na vida. Lá fora o vento e a chuva, de vez em quando uns raios de sol. Não adoro estar sozinha, mas sinto que, de vez em quando, também preciso destes momentos de silêncio e de confronto comigo mesma. É tudo uma questão de equilíbrio. No domingo à tarde temperei um frango e deixei-o a ganhar sabor durante horas, antes de o meter no forno por outras tantas horas. Quando os rapazes foram chegando, dos seus fins-de-semana, a cozinha estava quentinha e com aquele cheiro adocicado do assado. O frango ficou delicioso. Macio, húmido, a carne a soltar-se dos ossos. Um frango assado precisa de tempo. Não é possível fazer um bom frango assado no forno com pressa. Aquele frango precisou daquele domingo passado de pijama, das lágrimas que derramei enquanto acabava de ler o Somos o Esquecimento que Seremos, do colombiano Hector Abad Faciolince, da leveza de ver o Peggy Sue Casou-se, do Coppola (um filme de 1986 que não me lembrava de já ter visto, embora tudo aquilo me parecesse familiar), do espanto renovado ao reler passagens do António Lobo Antunes (tem coisas tão boas, caramba), da alegria de encontrar no Filmin A Ama de Cabo Verde, de Marie Amachoukeli, que queria ter visto no cinema mas acabei por deixar passar. Isto tudo até que finalmente nos sentámos os três a comer o frango tenrinho e saboroso e, entre conversas cruzadas e gargalhadas, olhámos para o calendário e fizemos planos para três meses (somos assim ambiciosos). Um jantar de família que não se vai repetir nos próximos dias, pois estarei a trabalhar à noite, e que cada vez acontece menos porque eles já não são crianças e temos todos as nossas vidas, com compromissos e actividades várias, mas talvez seja por isso que estes momentos são tão especiais. Ou então é o contrário, é por termos estes momentos tão bons juntos que, depois, podemos ir às nossas vidas descansados, sem dramas, sabendo que num domingo qualquer vamos encontrar-nos outra vez na cozinha, falar de coisas sem importância e ficar com as mãos sujas da gordura.
Falei com a Nofouz uns dias depois dos actos terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Alguém deu o contacto a alguém que me perguntou se não estaria interessada em entrevistar uma palestiniana da Cisjordânia. Nem hesitei. Trocámos umas mensagens em inglês e combinámos um dia para falar. Pouco antes da hora, ela desmarcou. Trabalha num hospital em Hebron, a cidade onde mora, e estava com muito trabalho. Tentámos uma segunda vez. Numa pausa do trabalho, Nofouz falou comigo. Tinha na altura 23 anos e estava a terminar o curso de Medicina. Falava um inglês perfeito. De vez em quando calava-se para deixar passar os aviões. Emocionou-se algumas vezes. Mas sabia o que queria dizer. "Neste momento, tenho medo de que todas as pessoas que morreram tenham morrido por nada, que todas as crianças que passam por noites de bombardeamentos estejam a sofrer por coisa nenhuma. As pessoas de Gaza estão a lutar por todos nós. Eles não têm opção a não ser lutar. Eles estão a lutar pelo nosso futuro e eu temo que a situação fique na mesma, que, depois da guerra, nada mude", disse-me. Contei a história de Nofouz o melhor que soube, tentando mostrar as contradições de quem cresceu no meio de uma guerra, a maneira como o ódio vai aumentando contra todos os argumentos, como as pequenas humilhações e injustiças de todos os dias transformam as pessoas. De vez em quando, a ver as notícias, lembro-me dela. Trocamos mensagens esporádicas. No outro dia, celebrámos a vitória do filme No Other Land, que ganhou o Óscar de Melhor Documentário. Foi filmado numas aldeias perto de casa dela. Pareceu-me animada com a perspectiva de um acordo de paz. Falava em viajar.
Esta semana voltaram os bombardeamentos em Gaza.
Sinto que o conflito israelo-palestino é demasiado complexo para se conseguir estar de um lado só. Tento ler opiniões de um lado e de outro. Tenho visto filmes, procuro informar-me. Andei a pesquisar sobre o movimento sionista e sobre como tantos judeus foram para aquela região quando Israel ainda não existia e os britânicos resistiam aos movimentos independentistas, quer de israelitas quer de palestinianos. Mas, um ano e meio depois, continuo sem ter uma posição definida. As soluções que parecem perfeitas no papel dificilmente resultarão quando postas em prática. Dois estados? Há demasiados subtextos, demasiada história, demasiados golpes e feridas por sarar, demasiado rancor acumulado para que a paz possa ser alcançada por vias diplomáticas. Ninguém quer ceder.
Acabei de ler O Coração Pensante, do escritor israelita David Grossman, que é muito crítico em relação a Netanyahu. A certa altura, diz: "Para quem vive em países onde a ideia de 'lar' é algo óbvio, devo explicar que para mim, para a minha consciência israelita, a palavra 'lar' cria um sentimento de segurança, protecção e pertença. Lar é um lugar onde posso existir em paz. Em que as fronteiras são reconhecidas por todos, e em particular pelos vizinhos. Mas tudo isto está envolto em nostalgia, em anseio de algo que, para mim ainda não se realizou totalmente. Por enquanto, sinto que a casa israelita é mais uma fortaleza do que um lar. Não há nela segurança nem paz, e os meus vizinhos acalentam muitas dúvidas e exigências sobre os meus quartos e paredes-fronteiras e, por vezes, sobre a sua própria existência. (...) Surge ainda um outro pensamento, o pensamento sobre os dois povos torturados: o israelita e o palestino, nos quais o trauma do refugiado é tão primário e fundamental, e apesar disso nenhum deles tem a mais leve compreensão pela tragédia do outro povo, para não falar compaixão."
Vizinhos. A maioria das guerras começa assim, entre pessoas que vivem lado a lado. De um lado ou de outro da fronteira. De um lado ou de outro da rua. Às vezes nem isso. Russos e ucranianos. Vietnamitas do norte e do sul. Sérvios e bósnios. Grupos étnicos diferentes no Ruanda. Facções opostas na Síria. Lembro-me de ver testemunhos de judeus que viviam na Alemanha antes da guerra, perfeitamente integrados, felizes, e de como, quase de um dia para o outro, passaram a ser mal tratados por aqueles com quem antes conviviam amigavelmente. Os vizinhos em quem confiavam tornaram-se seus inimigos.
Está sempre a acontecer, e o que é mais incrível é que parece que não aprendemos nada.
Crianças esperam a comida fornecida por uma organização humanitária em Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza (AP Photo/Abdel Kareem Hana)
Neste largo, a vizinhança é boa e escrevemos sem conflitos:
Um livro
É engraçado quando vamos lendo livros de um autor e vamos percebendo qual é o seu universo, os temas de que gosta, o espaço onde se movimentam as suas personagens. No seu mais recente livro, Toda a Gente Tem um Plano, Bruno Vieira do Amaral continua a sua investida pelos bairros mais pobres da margem Sul para nos mostrar aqueles que tantas vezes parecem invisíveis. Continua, por exemplo, entre gente que veio de África (ou do Brasil) e gente que procura conforto em deus. Gosto muito da maneira como o autor construiu esta história, evitando a linearidade, fazendo-nos ir lá atrás no tempo, uma vez e outra vez, para conhecermos melhor este Calita e as curvas da sua vida. Também gosto muito do cuidado que põe na criação das personagens e dos contextos, quase como se nos transportasse para aqueles locais, como se aquelas pessoas fossem de carne e osso e nos pudéssemos ter cruzado com elas em algum momento. Gosto de me apegar às personagens, de compreender as suas fraquezas, de ficar a torcer por elas. De sofrer com elas quando elas sofrem.
Um filme
Já o vi há algum tempo, mas, depois, com o barulho dos Óscares e a crise política que nos caiu em cima, acabei por não ter tempo de vir aqui escrever sobre O Atentado de 5 de Setembro. O filme acompanha o atentado terrorista ocorrido nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, mas do ponto de vista dos jornalistas do canal americano CBS, que estavam na torre do satélite, a uma centenas de metros da aldeia olímpica. Admito que será um filme que talvez toque mais os jornalistas. E ainda mais os jornalistas que estejam ligados à televisão. Afinal, aquela foi não só a primeira vez que os jogos olimpicos foram transmitidos em directo, mas também a primeira vez que um atentado terrorista foi transmitido em directo pela televisão - com todas as questões que isso levanta. Mas acho que pode ser interessante para toda a gente. Posso dizer-vos que, mesmo sabendo como aquilo ia acabar, o filme conseguiu envolver-me completamente e até deixar-me nervosa.
Uma série
Adolescência é mesmo imperdível. O nome diz tudo: é uma minissérie sobre a adolescência, nos seus muitos aspectos. A pressão a que os jovens estão sujeitos, por parte dos outros jovens, agravada pelas redes sociais. A influência que alguns gurus e ideologias podem ter sobre os jovens. A relação com os pais. A escola. O desespero dos professores. A falta de perspectivas. A falta de empatia. A linguagem. Os telemóveis sempre na mão. As portas dos quartos fechadas. A impotência dos pais. A culpa. Está lá tudo, mas ao mesmo tempo é uma série muito diferente de todas as outras séries que já vimos sobre adolescentes. São quatro episódios muito bem feitos, muito bem realizados, muito bem interpretados. O primeiro episódio tem imensa tensão. O episódio da escola é bastante perturbador. O último é o mais tocante (pelo menos, para mim). Fez-me pensar tanto. Não quero estar a contar muito. Está na Netflix. Vejam que não se vão arrepender.
O mês mais curto foi cheio de coisas boas.
A começar pelos concertos de Ana Lua Caiano e Amélia Muge e de Samuel Úria e Manel Cruz. Foram ambos muito bons. E também uma oportunidade para estar com alguns amigos queridos. Geralmente evito ter programas em dias de semana porque sei que estarei cansada e não me vai apetecer e depois vou ficar ainda mais cansada. Mas foi tudo tão bom nestas duas noites que valeu muito a pena.
Fui moderar um painel numa conferência na Gulbenkian. Deus sabe o que me custa expor-me assim, as noites que passo sem dormir, os nervos que me atacam o corpo. Ainda assim, fiquei mesmo feliz quando recebi o convite e achei o tema tão interessante, tão a minha cara, que é claro que não podia dizer que não [o que é o pior que pode acontecer?, não é?]. Olhando para trás, odeio ver-me e ouvir-me, encontro mil erros, mil coisas que podiam ter sido melhores. Mas tive muita sorte com o meu painel, eram pessoas realmente interessantes e com quem gostei muito de conversar.
Foi o aniversário da Helena, que é uma das minhas pessoas preferidas. E foi um dia mesmo bom porque estive com as minhas amigas mais antigas e com quem não tenho tido muita oportunidade de estar, por motivo nenhum especial, apenas porque andamos desencontradas. Foi como se estivéssemos de volta à faculdade, com as conversas a sobreporem-se e a cumplicidade e a honestidade e a amizade de sempre. Gosto mesmo destas miúdas que me entendem bem, mesmo quando falamos pouco. Esse dia; a tarde em que, do nada, combinei com a Isabel irmos ouvir a escritora, Elizabeth Strout à Livraria Bucholz; a caminhada de duas horas pelos caminhos de Monsanto, que me deixou de corpo cansado mas de coração cheio. Foram todos momentos especiais. Não me canso de o dizer: os amigos verdadeiros são o meu oxigénio.
O espectáculo do Tiago Rodrigues, No Yogurt for the Dead, é simplesmente incrível. O texto é muito bom, com um tema muito duro mas ao mesmo tempo com um sentido de humor apurado, a fazer-nos rir e chorar quase ao mesmo tempo. As barbas, a música, a atriz que fala neerlandês, o humor, a montanha - as soluções que ele encontrou para nos falar da morte do pai, ao mesmo tempo emocionando-nos mas criando uma distância segura, são perfeitas. E que dizer daquelas duas actrizes, a Beatriz Brás e a Manuela Azevedo. Sim, a Manuela, dos Clã. Já a tinha visto noutras peças, mas aqui ela excede-se e, além de cantar como sabemos que canta, é uma actriz de corpo inteiro.
Quem viu o espectáculo sabe como ele fala a todos os que já perderam alguém. É impossível não nos relacionarmos, não nos revermos em alguma das cenas. Ainda por cima, no natal tinha oferecido bilhetes à minha irmã e ao meu cunhado. Já estava contente por termos um programa juntos. Só depois reparei que o espectáculo era no mesmo dia do aniversário da morte da nossa mãe. Acabou por ser ainda mais especial.
Os problemas não se resolveram mas, este mês, parece que estiveram mais suportáveis. Os putos mais orientados. O trabalho menos odioso. Um bocadinho menos, vá. Ou então era eu que estava tão entretida a fazer planos para março que já não me chateei muito. Também há isso.
Estive com a Adília Lopes uma única vez, há mais de vinte anos, num ensaio do espectáculo A Birra da Viva, de Lúcia Sigalho. Queria lembrar-me melhor desse espectáculo, desse momento. Tenho tão boas memórias das noites passadas no Armazém do Ferro. A Lúcia Sigalho e a Mónica Calle foram uma revolução na minha vida. Eu era ainda uma miúda, mal tinha começado a pensar nestas coisas, e elas a fazerem espectáculos sobre isto de ser mulher, a dizerem-me que o importante é sermos quem realmente somos, assumirmos os nossos desejos e deitarmos fora a culpa, elas a mostrarem-me o caminho. Devo-lhes tanto. Foi por causa da Lúcia e desse espectáculo sobre mulheres e mães e sobre corpos que dão vida e morte que fiquei com vontade de ler a Adília. Foi depois de a ver ali, de ouvir a maneira contida, desassombrada, crua como falava, que fui descobrir os seus poemas. A Adília Lopes morreu ontem e eu li a notícia e não queria acreditar. Tinha apenas 64 anos. Fiquei tão triste. Chorei por ela e por mim e por todas as mortes que ficaram por chorar.
“Posso morrer porque amei e fui amada. Gostei de homens, de mulheres, de velhas (de velhos não), de bebés, de bichos, de plantas, de casas, de filmes, de concertos, de quadros, de teorias, de jogos, de pastéis de natas, de jesuítas, de russos, de hamburgers, de Paris e de Londres. Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York não se compara a um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante”
De Irmã Barata, Irmã Batata, de Adília Lopes
(na página 409 de Dobra, poesia reunida, 2021, Assírio & Alvim)
A minha descoberta do ano é Leila Slimani, uma escritora franco-marroquina de 43 anos, que nasceu em Rabat e aos 17 se mudou para Paris, estudou Ciência Política e foi jornalista. Dela, li O Perfume das Flores à Noite, que é um ensaio nascido do convite para passar uma noite num museu em Itália, e é ok para o que é. Mas depois descobri a sua ficção e fiquei rendida.Canção Doce é um livro extraordinário e O País dos Outros não lhe fica muito atrás. Quero muito ler os outros livros dela.
Canção Doce começa com um acontecimento trágico: uma ama mata as duas crianças de que é cuidadora. Voltamos depois atrás para conhecer a sua história. Estamos em Paris, em casa de um jovem casal de classe média culta, Paul e Myriam, não ricos mas com um bom nível de vida. Quando Myriam retoma a sua actividade profissional, como advogada, após o nascimento dos filhos, decidem contratar uma ama. Depois de várias entrevistas, a escolhida é Louise. A ama perfeita. Carinhosa com as crianças, boa dona de casa, excelente cozinheira, parece ter sempre tempo para fazer tudo e ainda brincar e dar atenção aos pequenos. Louise é a salvação daquela família. Mas, longe da vida de contos de fada da família, Louise também tem uma vida e tem os seus problemas, vive com dificuldades financeiras, sente-se sozinha, mal consegue dormir, há momentos em que a sua cabeça parece explodir. Aos poucos, a ama começa a ter comportamentos sufocantes, a relação com Myriam torna-se tóxica, tudo se desmorona até ao desfecho horrível.
Em O País dos Outros a acção passa-se em Meknés, em Marrocos, para onde os recém-casados Mathilde e Amine vão morar após a Segunda Guerra Mundial. Foi durante a guerra que Amine, marroquino que combateu no exército francês, conheceu Mathilde. Apaixonaram-se. Mas a vida em Marrocos acaba por ser um desafio enorme para esta jovem francesa, uma vez que, ali, as diferenças culturais tornam-se muito mais visíveis. A família instala-se numa quinta, Amine trabalha para que os campos produzam, Mathilde ocupa-se da casa, os filhos nascem e crescem ao mesmo tempo que o país inicia um processo revolucionário tendo em vista a independência. Mathilde sente-se sozinha. Amine teme pelo futuro. A relação nem sempre é pacífica, mas, mesmo quando tudo corre mal, continuam juntos. A história, tanto quanto percebi, é inspirada na da família da autora.
O que torna estas histórias especiais é a maneira como Leila Slimani as conta, numa escrita clara mas sem facilitismo, recusando a linearidade, entrançando pequenas histórias e pequenos acontecimentos para dar corpo ao tronco principal da narrativa, desviando-se sempre que sente que é necessário porque nenhum desvio é tempo perdido, pelo contrário, como numa pintura, todos os pormenores fazem parte do quadro que se está a pintar. A mim encheu-me completamente as medidas. Gosto quando me sinto tão afundada nas histórias que estas quase me parecem reais, quando consigo imaginar os rostos das personagens, entender o que sentem, visualisar os seus gestos, mergulhar nos seus mundos. Gosto desta atenção aos detalhes. Que a acção principal seja simplesmente a vida a acontecer. Que não seja preciso explicar porque é que Louise cometeu um crime horrendo ou porque é que Mathilde fica, mesmo depois de ser espancada pelo marido. Que as personagens sejam tão humanas que quase nos pareçam familiares.
Passado na Espanha durante a ditadura e atravessado pelas memórias da guerra civil e do franquismo, Caruncho, de Layla Carvalho, é um livro sobre mulheres e sobre pobreza, sobre classes sociais e privilégio, sobre violência de género e desamor. Além disso, muito bem escrito. E, no entanto, custou-me muito avançar por aquelas 120 pequenas páginas. Achei que tinha sido talvez o facto de haver uma dimensão sobrenatural, quase de terror, com uns toques de bruxaria à mistura, que me tinha afastado da obra. Sim, mas não só. Terminada a leitura, à medida que o tempo foi passando e aquela narrativa foi assentando em mim, percebi que o que me afastou foi o ódio. As personagens - quase todas mulheres - são movidas a ódio e a desejos de vingança. O caruncho que percorre as paredes da casa corrói-lhes também os corações. Não há amor que lhes valha. Não há uma centelha de esperança. Tudo ali é tristeza e ressentimento.
“A vingança interessa-me muito, tanto na literatura como na vida real”, disse a escritora numa das entrevistas que deu na altura do lançamento do livro em Portugal. “É uma força muito destrutiva, que acaba por consumir também aquele que se vinga, mesmo que o consiga fazer. Mas é também a única forma de justiça para os oprimidos.”
Tenho muita resistência à ideia de que a vingança é a única forma de justiça para os oprimidos. Mas um livro que nos faz pensar e que fica aqui a remoer-nos por dentro é sempre um bom livro.
Fui ver Anora no dia em que estreou, dia do meu aniversário. Uma matiné às duas da tarde no Nimas, a sala quase vazia, dois casalinhos jovens, uns quantos velhotes sozinhos. Entreolhamo-nos. Somos cúmplices. Somos os desocupados, aqueles que não têm mais nada que fazer numa tarde de sol a não ser enfiar-se numa sala escura, alheados do mundo. Quero lá saber. Gosto muito de ir a matinés, sobretudo durante a semana.
A protagonista, Anora, ou Ani, como ela prefere ser chamada, é uma "dançarina exótica". Trabalha num clube nocturno onde faz conversa com os clientes, dança para eles, no colo ou no varão, sussurra-lhes aos ouvidos, insinua-se de todas as maneiras possíveis para que eles desembolsem mais umas notas. Eventualmente, quando os clientes lhe agradam, Anora trabalha também como prostituta fora dali. Nas primeiras cenas do filme é só isto que acontece. Anora e as outras raparigas dançam e despem-se e seduzem homens com profissionalismo enquanto mascam pastilha elástica, nas pausas conversam sobre coisas banais e comem em tupperwares. Com desprendimento. Anora é uma operária do sexo, sabe exactamente o que tem de fazer, cumpre a sua função, maquinalmente. E é uma durona, não permite que abusem dela. Tem tudo controlado. As coisas complicam-se quando aparece um puto milionário, russo, disposto a pagar muito para poder estar com ela em exclusivo. A determinada altura, o filme muda de tom. Deixa de ser sobre uma dançarina exótica e passa a ser sobre uma miúda que, afinal, tem sentimentos. Que, quando tira o uniforme do trabalho, se deixa iludir e enganar como todas as outras. Que ainda acredita no sonho da Cinderela. E também uma miúda que não sabe lidar com a simpatia das pessoas porque, provavelmente, sempre foi só um corpo disponível para transação, como se essa fosse a única maneira de se relacionar de forma segura com os outros.
Gostei de Anora. O filme, vecendor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, mistura uma carga emocional com momentos quase cómicos, insinuando mais do que mostrando (e não estou a falar só de sexo). O Jorge Mourinha lembrou Pretty Woman - Um Sonho de Mulher, embora o filme com a Julia Roberts desse uma imagem bastante mais romantizada dessa máquina de vender sonhos que é a prostituição. Realizado por Sean Baker, o mesmo de Florida Project, e protagonizado pela impressionante Mikey Madison, ao lado de Mark Eidelstein como Vanya, Anora surgiu à minha frente precisamente no momento em que andava a ler A Teoria do King Kong, em que Virginie Despentes fala, entre outras coisas, sobre a prostituição, a pornografia e a prisão masculina em que o desejo das mulheres ainda está encerrado. Como feminista de esquerda educada numa sociedade conservadora e moralista, não tenho certezas nenhumas sobre como olhar para a prostituição. Exploração ou libertação? É um trabalho como os outros? Legalizar ou não? Numa tentativa para entender melhor o que estava em causa, escrevi há tempos sobre isso AQUI e AQUI. Ler a Despentes foi bom para me desassossegar, para me questionar, mas fiquei mais ou menos na mesma, ou seja, cheia de dúvidas.
Anora, com o seu corpo perfeito e descomplexado, exalando sensualidade, ilustra bem aquilo de que fala Despentes: ela tanto pode ser vista como a depravada que vai para a cama com qualquer um e é criticada pela sociedade por ser uma puta, como a miúda desesperada que faz o que é preciso para sobreviver e até consegue a nossa empatia. Na verdade, ela pode ser as duas ao mesmo tempo.