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Na feira do livro do ano passado não consegui comprar o Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos porque o livro ficou esgotado em pouco tempo. Parecia que toda a gente andava a ler a Olga Tokarczuk, lembram-se? Acabei por comprá-lo em julho deste ano, numa fnac manhosa no intermarché de Lagos, numa semana em que estive na praia e, sabe-se lá como, ao fim de uns dias já tinha lido os três livros que tinha levado. Não foi fácil. Vinha embalada com a escrita gulosa da Alda de Céspedes, da Alana S. Portero e do Salman Rushdie (de que ainda hei-de falar um dia destes). E de repente encalhei ali em palavras menos comuns, numa escrita mais exigente. Desde logo porque me transportava para uma paisagem agreste e para mim completamente estranha, na Polónia. A autora entretém-se em pormenorizadas descrições da natureza, que me aborreceram. A natureza impõe-se em todo o livro: os animais, as plantas, os montes, a neve. Já para não falar da obsessão da protagonista com a astrologia, um mundo que nada me diz. Acabei por "entrar" no livro e até por simpatizar com aquela mulher, Janina, talvez um pouco "doida", como todos diziam, mas com uma sensibilidade especial e uma enorme capacidade de se dar aos outros, sobretudo os mais frágeis. O livro também retrata bem a maneira como as pessoas estão ligadas numa aldeia, e como os pequenos ódios e as pequenas amizades acabam por ser tão importantes neste microsmos. Confesso que fiquei curiosa para ver que mais escreveu esta autora premiada com o Nobel.
Estava eu a pensar no que iria ler a seguir quando me chegou à caixa do correio A Forasteira, de Olga Merino. Nunca tinha ouvido falar desta autora espanhola e não tinha qualquer referência sobre o livro. Mas algo ali me chamou a atenção. Estava mais uma vez perante uma protagonista feminina, a narrar-se na primeira pessoa. E mais uma vez perante uma mulher que, depois dos desaires da vida, encontra no campo a sua casa. Neste caso, um campo que me pareceu muito familiar. Era em Espanha, mas podia ser no Alentejo. O calor abrasador, a terra ressequida, a aldeia de portas fechadas, as vendas onde os homens bebem ao fim do dia, os suicídios, tudo ali eu conhecia, até a linguagem, com recurso a palavras antigas e até esquecidas mas que me faziam todo o sentido. Angie cresceu nos anos 80, como eu. Conheço as canções que lhe povoam a memória. Percebo a sua vontade partir, de se encontrar longe da aldeia. Percebo a sua vontade de voltar e de se encontrar na aldeia. É como se ela fosse uma velha conhecida, não uma amiga mas alguém com quem me consigo relacionar, porque partilhamos o mesmo mundo, vimos de terras que enfrentam problemas semelhantes com a agricultura e a falta de mão-de-obra e a falta de futuro. Não sei o que é que outras pessoas, com outras experiências, vão achar do livro, mas para mim foi realmente uma boa surpresa.
Completamente por acaso, o livro que li a seguir foi Terrinhas, de Catarina Gomes. Outra vez uma mulher a braços com as suas memórias e com um regresso à terra dos pais. Aqui a terra era outra - mais a norte, mais verdejante e montanhosa, plantada com batatas. Aqui não foi a terra que me conquistou mas foi a descrição exacta de como foi crescer naquele tempo. Os brinquedos, os programas na televisão, a decoração das casas. Aquela contenção que havia, não porque fosse mesmo necessária, mas porque era assim que devia ser. Aqueles pais sempre preocupados com um caminho que fosse um bocadinho mais incerto, "mas depois consegues arranjar trabalho, filha?". Aquele "o que é que as pessoas vão pensar" que orientava a nossa conduta. Outra vez o querer sair e o querer voltar. Este livro é, antes de mais, um grande hino à família e ao que existiu antes e que nos enforma de maneiras que nem sempre percebemos. Podemos tentar fugir, como Janina ou Angie ou Cláudia, mas dificilmemte conseguimos escapar ao nosso passado, tal como não nos conseguimos livrar da terra que se entranha nas unhas e na pele
Eu nunca usei a expressão "ir à terra", até porque nunca tive, efectivamente, uma ligação à terra. Venho do Alentejo mas de terras não sei nada, sou da vila, do alcatrão, das casas muito brancas, das ruas perpendiculares e paralelas. Durante muito tempo ia a casa, porque era ali de facto a minha casa. Depois, quando arranjei uma casa minha, passei a ir a casa dos meus pais ou, simplesmente, a Ferreira. Ainda assim, quando andei à procura de uma imagem para este post decidi roubar ao meu pai esta foto de terra. Cada pessoa tem a sua paisagem-casa. A minha é mais ou menos assim.
Julho. Tivemos os nossos dias de praia, poucos mas bons. Depois os miúdos também tiveram os seus dias de praia. Mandam-me fotografias repletas de céu azul e sorrisos rasgados. Estão enormes. Como crescem os filhos quando estão longe de nós. Temo que no regresso já não me caibam nos abraços que lhes quero (preciso) dar. A parte boa de os filhos estarem de férias sem mim é que, apesar de estar a trabalhar, tenho tempo de sobra para fazer as minhas coisas sem sentimentos de culpa nem pensar no que vai ser o jantar. Coisas como ficar horas sentada no sofá a ver os jogos olímpicos. Ou jantar com amigos. Ou ir fazer um workshop de cozinha do Médio Oriente no Mezze. Ou não fazer nada. Ou isto:
Dois espectáculos
À Primeira Vista, texto de Suzie Miller, encenação de Tiago Guedes, interpretação de Margarida Vila-Nova. Sobre isto de ser mulher, as agressões sexuais a que estamos sujeitas, o machismo da sociedade em que vivemos mas, sobretudo, do sistema judicial. As estatísticas dizem que uma em cada três mulheres já sofreram algum tipo de agressão sexual. Então, porque continuamos a tratar assim as vítimas? Porque continuamos a duvidar das suas palavras? A menosprezar o trauma que sofreram? A dar o benefício da dúvida aos agressores? Oh, coitado, foi só um deslize, tinha bebido de mais, ele no fundo não é má pessoa. O texto é muito bom. A Margarida Vila-Nova aguenta-se à bronca. O resultado não é uma obra-prima mas é bom. E importante. Depois de uma primeira temporada esgotada, o espectáculo vai voltar ao Teatro Maria Matos de 18 de setembro a 27 de novembro.
Madrinhas de Guerra, de Keli Freitas. Uma reflexão sobre o colonialismo e o modo como, em 2024, ainda romantizamos as "descobertas" dos portugueses que "deram novos mundo ao mundo" e a guerra onde tantos rapazes morreram e sofreram em nome de um império que não era seu. É um olhar inquiridor mas ao mesmo tempo com sentido de humor. Um espectáculo que parece estar inacabado, que levanta mais perguntas do que dá respostas, que nos deixa com vontade de mais. Vi-o no auditório do Museu de História Natural e só isso já foi uma experiência. Se o voltarem a encontrar por aí não percam.
Um livro
Tudo é rio, de Carla Madeira
Preparem-se para todo o balanço e toda a doçura que o português do Brasil nos pode dar. Porque há sotaques que parecem perfeitos para contar o amor (e desamor) e o desejo. Esta é a história de um improvável trio amoroso, a prostituta Lucy, o instável Venâncio e a doce Dalva, mas é também a história das suas famílias, das dores que trazemos connosco e da importância de procurarmos a alegria contra todas as evidências em contrário. Uma delícia.
Um filme
Memória, realizado por Michel Franco, com Jessica Chastain e Peter Sarsgaard. Um encontro improvável entre uma mulher que luta para sobreviver ao trauma (outra vez uma agressão sexual e todas as suas consequências) e manter-se longe do álcool e um homem que sofre de demência e está a perder a memória. Uma batalha entre aquilo que queremos recordar e aquilo que gostaríamos de esquecer. A alegria (a tal alegria) de descobrir o amor confronta-se com as dificuldades da vida real. A verdade é que todos precisamos de quem cuide de nós.
Uma série
Nem uma mais, série espanhola na Netflix, sobre como a violência sexual está presente no dia a dia de um grupo de amigas no liceu (outra vez, sim, juro que não foi de propósito, mas é um tema mesmo importante, ainda bem que se fala disto). Um namorado, um amigo, um professor, qualquer um pode ser um abusador. Mais uma vez, não é uma obra prima, mas é uma série muito bem feita, as miúdas são fantásticas e tenho a certeza que muitas de nós se vão relacionar com aquelas situações.
Como prometido, mais livros:
Ao Paraíso
Li-o há já algum tempo, mas não sei porquê na altura não escrevi e não queria mesmo deixar de referi-lo porque foi uma boa surpresa: Ao Paraíso, de Hanya Yanagihara. Desta autora tinha lido Uma Pequena Vida, que é, atrevo-me a dizer, um dos livros da minha vida. Comprei este Ao Paraíso de olhos fechados, segura de que ia adorar. Depois quando lhe peguei e percebi exactamente como seria, temi o pior. Eu não sou da ficção científica, da fantasia nem das distopias, gosto da realidade real, das coisas como elas são. Comecei de pé atrás, confesso. Mas o livro estão tão bem escrito, as personagens são tão verdadeiras, tudo é descrito com tantos pormenores e com tanto realismo, que foi impossível não me agarrar de imediato àquelas pessoas e àquelas histórias.
Sem querer revelar muito: a acção passa-se em três momentos diferentes - no século XIX, nos anos de 1990 e num futuro próximo - mas sempre centrada em Manhattan, numa Nova Iorque inventada, numa América inventada. São três histórias diferentes mas subtilmente ligadas, onde o que está em causa é, acima de tudo, a liberdade e o desejo que todos temos de encontrar o nosso paraíso (e o que estamos dispostos a fazer para isso?). Pelo meio, a família, os amigos, a sexualidade, o amor, a doença (e as epidemias), a morte. Também pelo meio, o que é uma nação, o que queremos ser enquanto sociedade, o que nos liga e o que nos separa, a igualdade e a desigualdade. É um livro que nos levanta tantas questões, nos dá tantas coisas para pensar, mas que, ao mesmo tempo, me emocionou profundamente.
Maus Hábitos
E por falar em emoções: Maus Hábitos, de Alana S. Portero. Que murro no estomago. A personagem principal é um rapaz que, criança ainda, se apercebe que é transgénero. A história é contada na primeira na pessoa e é incrível a forma como ela (ela, claro, porque se refere sempre a si mesma no género feminino) se descobre, reconhecendo-se nas travestis dos filmes e das revistas, nos gays e nas outras mulheres trans com que se vai cruzando, a forma como se percebe antes mesmo de ter as palavras certas para dizê-lo, a forma como crescendo descobre o amor e a sexualidade, como aprende a esconder-se e a mentir aos outros, ao mesmo tempo que aprende a aceitar-se e a libertar-se, cada vez mais. E por fim é brutal a forma como se confronta com a violência, os preconceitos e toda a maldade da sociedade, que lhe nega a sua própria identidade. Tudo tão bem contado. E tão revoltante e tão tocante em doses iguais. Não conheço nenhuma pessoa trans, não faço ideia do que será uma vida assim, posso apenas imaginar o sofrimento de uma pessoa impedida de ser quem é - mas para mim esta leitura foi reveladora. Gostaria muito de saber a opinião de alguém trans sobre este livro.
As Primas
Mais uma raridade: As Primas, de Aurora Venturini, é um livro sobre a deficiência. Quantos livros já leram com personagens com deficiência? Penso que nunca tinha lido um livro que abordasse de forma tão crua (e sem qualquer condescendência) as deficiências - mental e física. Há momentos em que pode até ser um pouco chocante, mas esse choque é como uma chamada de atenção à nossa consciência: porque estás a pensar isso?, porque estás a sentir isto?. Que preconceitos são esses que temos aqui escondidos? Conhecer os nossos preconceitos é o primeiro passo para podermos combatê-los - foi isso que este livro me fez. Neste caso, não posso dizer que tenha adorado a escrita e confesso que tive muita dificuldade em empatizar com as personagens, mas foi seguramente um livro que não me deixou indiferente.
Não estava prometido, mas quero deixar aqui também uma nota sobre dois filmes:
Retratos Fantasmas acabou de entrar para o catálogo da Filmin e pude assim colmatar aquela enorme falha de não ter conseguido vê-lo no cinema. É um documentário do brasileiro Kleber Mendonça Filho (o realizador de Aquarius) que é uma declaração de amor à sua cidade, o Recife, e sobretudo às antigas (e entretanto desaparecidas) salas de cinema. É um filme sobre a memória, cheio de imagens da infância e da casa onde ele cresceu, sobre a importância dos lugares no nosso mapa de afectos. E a memória, como sabemos, é um tema que me é muito caro. (Posso dizer que me emocionei, posso? Ando uma lamechas, não sei se é da idade, mas parece que tudo me emociona por estes dias)
E por causa de umas publicações no Instagram decidi voltar a ver Frances Ha, do Noam Baumbach com a Greta Gerwig. Sinceramente, já nem me lembrava muito de pormenores e, sim, é um filme sobre a entrada na idade adulta, não é de todo para o meu target, mas, o que querem?, voltei a gostar. Aquela maravilhosa ingenuidade, aquele acreditar que tudo é possível e, depois, os socos que levamos da realidade. No fim de contas, todos aprendemos a arrumar o quarto e a não gastar mais dinheiro do que temos, mas deveríamos manter sempre um pouco daquela espontaneidade, não é?
O Caderno Proibido é um livro que é como um diário escrito por uma mulher, Valeria, que tem 43 anos, trabalha como secretária num escritório, é casada com Michele, que trabalha num banco, e têm dois filhos, um rapaz e uma rapariga, ambos a terminar os estudos de Direito. Moram em Roma, numa Itália que se reconstrói depois do fascismo e das guerras. Vivem modestamente. Ao serão, Michele gosta de ouvir música clássica na rádio enquanto Valeria passaja a roupa. De vez em quando vão ao cinema. São felizes. Ou assim ela pensa.
A primeira entrada do diário é de 26 de novembro de 1950. Valeria, esposa dedicada, sai de casa num domingo de manhã para comprar cigarros para o marido. "Queria que, quando ele acordasse, os encontrasse na mesinha de cabeceira: aos domingos, dorme sempre até tão tarde." Na tabacaria vê um caderno de capa preta e sente uma incompreensível vontade de comprá-lo. Para escrever o quê? Não sabia, mas ainda assim compra o caderno. "Preciso mesmo de um."
Começar a escrever um diário causa imensas mudanças na sua vida. Em primeiro lugar, apercebeu-se de que não tinha qualquer privacidade. Não tinha (como disse Virginia Woolf) um quarto só seu, nem sequer uma gaveta que pudesse fechar com uma chave. Uma mulher-esposa-mãe não pode ter segredos, ainda que inofensivos? Não haveria espaço para Valeria ser Valeria, simplesmente, sem ser para os outros? E como seria essa Valeria verdadeiramente? Para escrever começou então a arranjar artimanhas e a dizer pequenas mentiras de forma a ficar sozinha. Esconder o caderno era também esconder uma parte de si, o que ao mesmo tempo considerava um direito mas a fazia sentir-se uma traidora. Finalmente, escrever no seu diário fê-la tomar consciência da sua vida, como nunca antes tinha acontecido. "Dantes, esquecia-me logo do que acontecia cá em casa; agora, pelo contrário, desde que comecei a tomar notas dos acontecimentos de cada dia, conservo-os na memória e tento perceber porque é que ocorreram."
Primeiro, achou que não teria nada de relevante para escrever, porque a sua vida era bastante monótona e normal. Mas, à medida que escrevia, as coisas do dia-a-dia pareciam ganhar novos contornos. “A minha vida sempre me pareceu insignificante, sem acontecimentos notáveis, fora o meu casamento e o nascimento dos meus filhos. Pelo contrário, desde que comecei por acaso a ter um diário, parece-me descobrir que uma palavra, uma entoação, podem ser tão importantes como os factos que estamos habituados a considerar importantes, ou até mais. Aprender a compreender as coisas mínimas que acontecem todos os dias é talvez aprender a compreender verdadeiramente o significado mais recôndito da vida.”
A cada novo dia, ao longo de seis meses, a cada nova entrada no diário, Valeria vai questionando o seu papel como mulher, mãe, filha, esposa, amiga, funcionária; toma consciência da hipocrisia da sociedade e da submissão a que está sujeita, só por ser mulher; põe em causa a educação que dá aos seus filhos, a relação que tem com Michele, as expectativas que todos parecem ter em relação a si; confronta-se com os sonhos que não cumpriu, com os sonhos que ainda quer concretizar, com o seu envelhecimento, imposto pelos outros mas que ela não sente no seu corpo nem na sua vontade. Quem sou eu, afinal? Como é que cheguei aqui? Para onde vou a seguir?
A italiana Alda de Céspedes escreveu O Caderno Proibido em 1952, mas - e isto é verdadeiramente impressionante - as mulheres de 2024 vão compreender Valeria e vão identificar-se com ela de tantas maneiras que também nós, à medida que lemos, nos pomos a perguntar como é que permitimos, ainda, mais vezes do que seria desejável, que seja o olhar dos outros a definir-nos. Porque uma mulher não pode, uma mulher não deve, a maioria das mulheres ainda tem tantos espartilhos na cabeça que dificilmente se expõe de forma franca, sem véus, sem subterfúrgios - e o que escreveríamos nós se tivéssemos também um diário secreto que mais ninguém fosse ler? Quem seríamos nós se não tivéssemos que sê-lo para os outros?
Por motivos óbvios, Valeria fez-me lembrar Delia. Gostei muito, muito deste livro que devorei na semana passada, enquanto desfrutava de uma merecida pausa no Algarve. Foram poucos dias, mas foram maravilhosos. E com óptimas leituras (irei tentar escrever sobre os outros livros que tenho lido e que valem também muito a pena).
Sabem aquele desespero das mães durante o confinamento de covid-19? Está todo contado em Dia, o novo livro do Michael Cunningham. Não é o meu género habitual de escrita, porque tem muitos diálogos, mas, surpreendentemente, cativou-me desde o momento em que me cruzei com aquela mãe sentada na escada do prédio, a tentar fugir da sua vida nem que fosse por um bocadinho. A mãe, o adolescente colado aos videojogos, o medo da morte, aquela crença parva de que íamos sair daquilo melhores pessoas, a certeza de que se não formos nós a fazer pela nossa vida provavelmente poderemos não ter uma segunda oportunidade. Falei com o autor e foi uma bela conversa.
A Sara Inês Gigante faz aqueles espectáculos auto-ficcionais e ao mesmo tempo a gozar consigo própria, com o seu corpo, com os seus sonhos, com o seu talento. Já era assim com a Massa Mãe e voltou a ser assim com Popular, um espectáculo que problematiza o que é isso de ser pop, o que é isso de ser elite ou para as massas, o que é isso de ser artista e de ser público. Ainda têm dois dias para ir vê-la e comer pipocas ao Teatro Meridional.
Acabei de ver Under the Bridge, uma série que reconta a história verdadeira do homicídio de Reena Virk, uma rapariga de 14 anos que foi morta pelo grupo de "amigos" numa terra perdida do Canadá. Tem Lily Gladstone, Riley Keough e mais uns miúdos desconhecidos mas talentosos. Devorei-a em dois dias, sacrificando horas de sono preciosas. Achei muito bem feita. Levanta questões muito sérias sobre a juventude, a "peer pression" e os ideais de beleza, a violência que surge sabe-se lá de onde, a importância da família e das redes de apoio, a dificuldade de educar (de entender, até de comunicar com) adolescentes, a culpa, o arrependimento, a justiça.
Não gosto de bailaricos nem de arraiais nem de música pimba. Mas gosto de junho. Dos dias grandes. De estar com amigos. Do alívio que são as férias da escola. Por entre contas para pagar, dias de trabalho deprimentes e comprimidos de ferro que me deixam enjoada, entregar finalmente o IRS, fazer exames de saúde vários e dias em que só me apetece ficar no meu canto e não me digam nada, coisas boas aconteceram em junho. É importante guardar as memórias boas e celebrá-las. Os momentos de felicidade - ainda que curtos - são sempre o que fazem isto tudo valer a pena.
Vou tentar escrever sobre o filme Ainda Temos o Amanhã sem estragar a experiência a quem ainda não viu. Este é o primeiro filme realizado pela italiana Paola Cortellesi, que é também a atriz principal, interpretando o papel de Delia, mulher nos seus 40 e muitos, mãe de uma rapariga jovem e de dois rapazes crianças, casada com um homem que a maltrata, numa sociedade muito machista, na Itália do pós-guerra, com a guerra ainda muito presente na vida das pessoas que enfrentam sérias dificuldades financeiras. Delia tem vários trabalhos, toma conta da casa e dos filhos, do marido e do sogro acamado, faz das tripas coração para conseguir pôr comida na mesa e, ao final do dia, é muito pouco acarinhada pela sua família. Delia sonha com mais.
Num tom cómico, apesar do tema sério, Ainda Temos o Amanhã é um filme sobre o empoderamento feminino e sobre todas nós, sobretudo sobre as mulheres que se deixam levar pelos arroubos românticos da juventude e acreditam que com elas será diferente, sobre as mulheres que trabalham incansavelmente sem se queixarem, sobre as mulheres que se apagam e abdicam da sua felicidade porque pensam que isso é o melhor para os seus filhos. É comovente ver a maneira como a mãe protege a filha, fazendo tudo para evitar que tenha uma vida igual à sua (as mães, as mães estão sempre lá, a amparar todas as quedas). E ainda que não seja uma obra-prima e me levante algumas questões (tenho algumas reservas, por exemplo, sobre a estetização das cenas de violência doméstica), gostei muito deste filme e, por vários motivos, tenho pensado muitas vezes nele nestes últimos dias. Fica a sugestão.
A propósito:
A Malnascida, um livro também de uma autora italiana, Beatrice Salvioni, sobre a condição feminina, ainda que centrada nas personagens de duas raparigas pré-adolescentes. A ação passa-se nos anos 30, mas o machismo que está lá ainda não se desvaneceu completamente nos nossos dias. Tem ali qualquer coisa de Ferrante. É daqueles livros que se lê num sorvo.
Os Anos Super-8 é um filme da escritora Annie Ernaux a partir dos filmes caseiros feitos pelo seu marido. Ernaux vai comentando o que ali se vê, contando as histórias por trás das imagens. Numa cena estão todos sorridentes, noutra de costas voltadas. De um natal para outro a alegria familiar dá lugar a um casamento destruído. Está disponível no Filmin.
"The only way I know to have a better sex life, or to resume your sex life, is to discuss it", diz o terapeuta Jeffrey Chernin. Já o sabíamos, mas nunca é demais lembrar: é preciso falar sobre as coisas, todas as coisas. Este artigo no NYTimes tem bons conselhos sobre relações (sobretudo sobre relações em crise). Como diz outra das especialistas citadas nesse texto: “Sex is about so much more than just what we do when our pants are off".
"Estás bem?", uma pergunta tão simples, talvez a pergunta que mais vezes fazemos uns aos outros, "Está tudo bem?". É, na maior parte das vezes, uma pergunta inconsequente, ninguém quer saber realmente se estamos bem, e por isso respondemos de forma mecânica, "Tudo", e seguimos com a conversa sobre o tempo, sobre o trabalho, sobre os filhos, sobre as eleições, o que for. Mas o que responderíamos se quiséssemos ser verdadeiramente honestos? Estou bem? Mesmo que não esteja "tudo bem", que nunca está tudo bem, estamos bem? Estou bem, digo a mim mesma. Se reflectir um pouco, se pesar os pratos da balança, se der o devido valor às coisas que me irritam e entristecem (valem assim tanto?), se quiser ser verdadeira, tenho que dizê-lo: estou bem. A vida não é a preto e branco. Os dias muito bons sucedem-se a dias muito maus que se sucedem a dias mais ou menos. No mesmo dia, temos coisas óptimas a acontecerem-nos e coisas que nos deprimem. Não é assim com todas as pessoas? Estou bem.
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Fiquei muito deprimida com os resultados das eleições. Ainda estou deprimida com isto tudo. Há muitas coisas na minha vida de todos os dias que não são perfeitas, mas tudo fica pior porque tenho que ver televisão e acompanhar as notícias relacionadas com a extrema-direita. Ouvir AV a toda a hora, as suas mentiras, os seus joguinhos, aquela retórica populista, a sua extrema falta de educação e falta de respeito por nós todos tem sido um grande foco de tristeza e desesperança. Por outro lado, existe também uma vontade de agir e reagir, partilhada por algumas pessoas à minha volta. Não sabemos ainda como, quando, onde, mas sinto que temos a responsabilidade de fazer alguma coisa.
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Já quase ninguém escreve nos blogues. Eu própria quase não escrevo no blogue. Não temos tempo, não temos paciência, assim como assim ninguém lê, pois não? Somos cada vez mais descartáveis. O Facebook está praticamente morto. O Twitter é um ninho de víboras, pessoas desejosas de dizerem coisas, seja o que for, desejosas de provocar reacções. No Twitter sou apenas observadora, mas o Instagram transformou-se no meu álbum de fotografias e memórias. O Instagram, como bem escreveu a Gabriela (que também se lamenta por escrever cada vez menos, e é uma pena), é aquela "rede social onde os mais novos só deixam 'histórias' efémeras e os mais velhos registos vários para a posteridade. É muito isto que nos diferencia, parece-me. Instagrams que vivem de marcas que permanecem e os outros, que têm zero publicações, mas inúmeras histórias que as 24 horas apagam". Eu sou da permanência ("é urgente permanecer", diz o poema de Eugénio de Andrade). A mim faz-me falta a escrita. Faz-me falta escrever-me. Não me tenho sentido suficientemente livre para fazê-lo, não sei como explicar-vos. Tenho de pensar melhor nisto.
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Emocionei-me muito a ver Um Mini Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente, um espectáculo do Teatro do Vestido, que conta um pouco da história Portugal dos anos da ditadura e da democracia. É mesmo preciso não esquecer.
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Os jornalistas fizeram greve. Não serviu para nada, não vamos ser aumentados nem vamos ter melhores condições de trabalho, os despedimentos vão continuar, os órgãos de comunicação continuam com problemas financeiros, e, no entanto, foi importante que nos juntássemos todos, que nos olhássemos, que os outros olhassem para nós, que disséssemos em voz alta que temos mesmo que fazer alguma coisa por nós, para mudar isto, que não podemos continuar a encolher os ombros. Foi um dia muito bonito.
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Fomos ver o Sérgio Godinho ao Coliseu. Foi tão bom, tão bom. Foi tão bom poder ouvir aquelas canções acompanhada daquelas pessoas (as pessoas são sempre o mais importante). Ouvir outra vez A Garota Não. Gritar pela paz, o pão e a habitação. Cantar o Zeca e o Zé Mário. Ter um "brilhozinho nos olhos" e acreditar que, apesar de tudo, este poderia ser o "primeiro dia do resto da nossa vida".
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Também fui ver a Patti Smith com os Soundwalk Collective ao CBB. Que maravilha. O espectáculo chama-se Correspondences e baseia-se na poesia de Patti Smith, a partir do trabalho de outros artistas, aquela voz incrível num ambiente composto por vídeos e sons, levando-nos numa reflexão sobre o mundo em que vivemos, a destruição da natureza, os desastres nucleares ou questões mais humanas da nossas existência. Foi uma experiência bastante intensa que terminou com um momento de libertação, o público todo de pé a cantar People Have The Power ("The power to dream, to rule/ To wrestle the world from fools").
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Ainda não tinha ido à Casa Fernando Pessoa depois da remodelação. Vale muito a pena. A exposição está muito bonita, com partes mais informativas e outras mais poéticas. Numa das salas há uma montagem de espelhos - porque cada um de nós é muitos, porque cada pessoa é diferente dependendo do ponto de vista. Aí, conseguimos ver-nos de costas. Completamente. Não sei se alguma vez me tinha visto de costas, como se fosse outra pessoa. Foi bastante estranho. Ficámos ali algum tempo. Há algo de quase transcendental nesta experiência.
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"I know not what tomorrow will bring" - foi esta a última frase escrita por Fernando Pessoa. Não sabemos o que o amanhã nos traz. Tenho feito um esforço para tentar viver o presente sem pensar no futuro. No meu futuro, no futuro dos meus filhos, no futuro em geral. Talvez seja por estar a chegar aos 50, não sei. Não é tanto um "seize the day" no sentido de fazer tudo e devorar o mundo como se não houvesse amanhã. Não é isso. É mais um ser feliz agora, por inteiro, sem alimentar expectativas para amanhã, tentando não me angustiar. Se me conhecessem saberiam que é um desafio e tanto. É quase como suspender o pensamento. Não vou dizer que é fácil, mas até agora tem sido possível e tem sido bom. Talvez o amanhã nos traga beijos e passeios de mão dada à beira-mar. Talvez o amanhã me traga uma tarde numa esplanada, sozinha, com um livro. Seja como for, o importante é estar em paz.
Calhou estar a ler Um Cão no Meio do Caminho, de Isabela Figueiredo, na mesma altura em que vi o filme All of Us Strangers, de Andrew Haigh. São obras sobre a perda daqueles que amamos e sobre orfandade. Em ambas, os protagonistas acabam por enterrar a dor numa vida solitária, à margem, incapazes de se dar aos outros, porventura incapazes de amar. Como se a ferida aberta pela perda dos pais numa idade muito precoce (na infância, na adolescência) contaminasse tudo o resto que vem a seguir - e o que vem a seguir é uma vida inteira.
É engraçado pensar que talvez se estas duas obras não tivessem coincidido no mesmo momento da minha vida eu não tivesse dado tanta importância a este aspecto. Até porque não há muito mais semelhanças entre elas.
Em All of Us Strangers, Adam (interpretado por Andrew Scott) é um jovem gay que cresceu nos anos 80 sentindo-se incompreendido e mal amado, sem nunca conseguir ser completamente honesto com os pais, que entretanto morrem num acidente, e, por isso, sem nunca ter a aceitação que desejaria, ainda que os tempos mudem e a sociedade pareça estar mais tolerante - ou talvez não, como comprovará Harry (Paul Mescal). Não quero revelar demais. Só dizer-vos que é tudo muito bonito. Até a tristeza de Adam, o medo com que resiste a entregar-se, o modo como ele imagina o amor e como os seus corpos se vão entrelaçando cada vez mais e deixando cair as defesas. Amar, seja qual for o tipo de amor, é colocar-se numa situação de enorme fragilidade e estar disponível para sofrer mais uma perda. É preciso estar disposto a correr o risco.
Mas é um risco necessário - ou, então, corremos um outro risco, o de passar pela vida sem nos ligarmos verdadeiramente a ninguém e sem sentirmos essa felicidade da partilha. Como se lê na contra-capa de Um Cão no Meio do Caminho: "Precisamos de alguém com quem falar. Não interessa de quê. Precisamos de uma voz humana".
Chorei copiosamente a ver o documentário 20 Dias em Mariupol, do jornalista Mstyslav Chernov, que retrata a saga da equipa de jornalistas da AP, os únicos jornalistas que ficaram na cidade de Mariupol nos primeiros dias da invasão russa e que se esforçaram para contar ao mundo o que ali se passava. Chorei pelas crianças que morreram, pelos pais em sofrimento, por todas as pessoas com medo. Pelos jornalistas que correram risco de vida. Pelos militares que salvaram os jornalistas porque perceberam a importância do que eles estavam a fazer. "Filmem isto, mostrem ao mundo o que nós estamos a passar", diziam-lhes os médicos. E se não fossem eles, se não fosse a sua coragem, como saberíamos?
Não chorei mas foi por pouco a ler Um Dia na Vida de Abed Salam, o angustiante livro de Nathan Thrall , jornalista norte-americano a viver há 12 anos em Jerusalém. O livro conta a história verdadeira de um acidente com um autocarro que, num dia de muita chuva, transportava crianças de uma escola palestiniana para um parque de diversões. Thrall ouviu as muitas versões daquela história. E foi ainda mais longe e quis saber as histórias das pessoas que, de uma forma ou de outra, estiveram ligadas a esse acidente. O pai que perdeu um filho, o condutor do autocarro, a professora que ia com as crianças, a médica que salvou vidas, o bombeiro que apagou o fogo, a enfermeira que não chegou a horas, o urbanista que planeou aquela estrada, o militar que a vigiava. Quase sem darmos por isso a história daquele acidente transforma-se na história da Palestina.
Desde 7 de outubro, são pelo menos 79 os jornalistas e profissionais de órgãos de comunicação social, a maioria dos quais palestinianos, mortos na guerra entre Israel e o Hamas. Quem irá contar as histórias daquelas pessoas quando não houver mais jornalistas na Faixa de Gaza?
Vejo nas redes sociais muitos comentários de pessoas que desprezam os jornalistas e que dizem que o seu trabalho não serve para nada. Eu também sou muito crítica em relação ao jornalismo que fazemos. Sim, é verdade, há muito mau jornalismo por aí. Por isso é cada vez mais importante preservarmos o bom jornalismo. Fazermos escolhas acertadas. Reflectirmos todos sobre o que andamos aqui a fazer. Fazermos o nosso trabalho o melhor possível. Porque, não tenhamos ilusões, o mundo será um lugar muito pior e muito mais escuro se (quando) não houver jornalistas. Quando estivermos exclusivamente à mercê de informações enviesadas, não verificadas, falsas, divulgadas sabe-se lá por quem e a servir sabe-se lá que interesses.
Esta semana realiza-se o 5º Congresso dos Jornalistas. Tenho vários mixed feelings sobre o que se passa nos media, não tenho qualquer espírito de classe e há muito tempo que não visto camisolas. Mas paguei a minha inscrição, talvez me apeteça passar por lá. E, por fim, peguei nas minhas dúvidas, fui perguntar a outros jornalistas o que é que eles achavam disto tudo e escrevi um artigo. É a minha singela participação para o debate.
O jornalista da Al Jazeera Wael Dahdouh chora a morte do seu filho Hamza, que também trabalhava para a Al Jazeera e que foi morto num ataque aéreo israelita em Rafah, Faixa de Gaza, domingo, 7 de janeiro de 2024. Dahdouh já tinha perdido a sua esposa, outros dois filhos e um neto nesta guerra e ele próprio quase foi morto. (Foto AP/Hatem Ali)
Um filme
Só há pouco vi o multipremiado Alma Viva, o filme de Cristèle Alves Meira. Não sei porque adiei tanto. Talvez porque tenho uma relação difícil com o cinema português. Ou porque na corrida dos Óscares estava a torcer pelo Great Yarmouth. Mas lá acabei por me resignar. E foi uma muito agradável surpresa, apesar de não ser grande fã do tema dos espíritos e do diabo. Na verdade este é mais um filme sobre um Portugal que às vezes, aqui em Lisboa, nos esquecemos que existe. O interior. Sobre as relações que se estabelecem numa pequena comunidade. Sobre emigração e raízes. Férias de verão por entre os montes, bailaricos e algodão doce, rezas e superstições, os badalos das cabras como música de fundo, os rituais da morte. Também é sobre a família - e os gritos e as desavenças e os abraços e tudo isso que faz as famílias. E sobre as mulheres. Todas bruxas, mesmo as que não. De sublinhar as excelentes interpretações de Lua Michel (a "garota", Salomé, que na vida real é filha da realizadora) e Ana Padrão.
Um livro
Mulher, Vida, Liberdade é um pequeno tesouro. Organizado pela Marjane Satrapi, artista iraniana que nos deu Persépolis, mas com a participação de vários ilustradores, este livro é tanto uma homenagem à luta das mulheres do Irão como uma aula de história ou um documentário sobre um país que vive num regime extremista do ponto de vista religioso e ditatorial do ponto de vista político. Satrapi acredita que a revolta pode sair vitoriosa. Eu não tenho tanta certeza. Podem saber mais neste artigo.
Uma boa notícia
No próximo ano celebram-se os 50 anos do 25 de Abril e, apesar de temer pelo resultado das eleições de março, estou pronta para, aconteça o que acontecer, descer a avenida da Liberdade e emocionar-me várias vezes a cantar o Grândola, Vila Morena. A propósito, publiquei hoje esta notícia sobre a classificação como Património Nacional de dois registos desta canção de Zeca Afonso: no I Encontro da Canção Portuguesa, em 29 de março de 1974, e no programa "Limite", da Rádio Renascença, na madrugada de 25 de Abril, onde serviu como senha para dar início às movimentações dos militares.