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Tenho andado a organizar álbuns de fotografias. Nos últimos dez anos desleixei-me muito, mas preciso dos meus álbuns. Organizar os álbuns ajuda-me a organizar a memória e isso ajuda-me a organizar a vida. Para outras pessoas não será tão importante. Mas para mim sim. Os álbuns e depois este meu diário em forma de blog e depois ainda a conta de instagram, faz tudo parte desta necessidade que tenho de fixar as memórias, de guardar as coisas boas (e as más, que na maior parte das vezes apenas se subentendem nas entrelinhas, mas eu sei onde estão e quais são), de encontrar (ou criar) uma narrativa. E, depois, folheamos os álbuns e descobrimo-nos felizes, mesmo em alturas em que parecia que tudo corria mal, ali estamos nós a sorrir, tantas coisas que fizemos, tantas coisas que vivemos, tantas pessoas que abraçámos. E até parece que faz tudo sentido. os meus pais
o Dinho e a vovó Ana
a avó Helena e o avô António
eu e a minha irmã no jardim
a avó Helena, a mãe e a avó Celeste
eu e a minha irmã na praça
a Ia
o avô Caetano
a família a crescer
e a crescer
(não garanto que esta seja a ordem cronológica das fotos, mas há de ser mais ou menos)
Na feira do livro do ano passado não consegui comprar o Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos porque o livro ficou esgotado em pouco tempo. Parecia que toda a gente andava a ler a Olga Tokarczuk, lembram-se? Acabei por comprá-lo em julho deste ano, numa fnac manhosa no intermarché de Lagos, numa semana em que estive na praia e, sabe-se lá como, ao fim de uns dias já tinha lido os três livros que tinha levado. Não foi fácil. Vinha embalada com a escrita gulosa da Alda de Céspedes, da Alana S. Portero e do Salman Rushdie (de que ainda hei-de falar um dia destes). E de repente encalhei ali em palavras menos comuns, numa escrita mais exigente. Desde logo porque me transportava para uma paisagem agreste e para mim completamente estranha, na Polónia. A autora entretém-se em pormenorizadas descrições da natureza, que me aborreceram. A natureza impõe-se em todo o livro: os animais, as plantas, os montes, a neve. Já para não falar da obsessão da protagonista com a astrologia, um mundo que nada me diz. Acabei por "entrar" no livro e até por simpatizar com aquela mulher, Janina, talvez um pouco "doida", como todos diziam, mas com uma sensibilidade especial e uma enorme capacidade de se dar aos outros, sobretudo os mais frágeis. O livro também retrata bem a maneira como as pessoas estão ligadas numa aldeia, e como os pequenos ódios e as pequenas amizades acabam por ser tão importantes neste microsmos. Confesso que fiquei curiosa para ver que mais escreveu esta autora premiada com o Nobel.
Estava eu a pensar no que iria ler a seguir quando me chegou à caixa do correio A Forasteira, de Olga Merino. Nunca tinha ouvido falar desta autora espanhola e não tinha qualquer referência sobre o livro. Mas algo ali me chamou a atenção. Estava mais uma vez perante uma protagonista feminina, a narrar-se na primeira pessoa. E mais uma vez perante uma mulher que, depois dos desaires da vida, encontra no campo a sua casa. Neste caso, um campo que me pareceu muito familiar. Era em Espanha, mas podia ser no Alentejo. O calor abrasador, a terra ressequida, a aldeia de portas fechadas, as vendas onde os homens bebem ao fim do dia, os suicídios, tudo ali eu conhecia, até a linguagem, com recurso a palavras antigas e até esquecidas mas que me faziam todo o sentido. Angie cresceu nos anos 80, como eu. Conheço as canções que lhe povoam a memória. Percebo a sua vontade partir, de se encontrar longe da aldeia. Percebo a sua vontade de voltar e de se encontrar na aldeia. É como se ela fosse uma velha conhecida, não uma amiga mas alguém com quem me consigo relacionar, porque partilhamos o mesmo mundo, vimos de terras que enfrentam problemas semelhantes com a agricultura e a falta de mão-de-obra e a falta de futuro. Não sei o que é que outras pessoas, com outras experiências, vão achar do livro, mas para mim foi realmente uma boa surpresa.
Completamente por acaso, o livro que li a seguir foi Terrinhas, de Catarina Gomes. Outra vez uma mulher a braços com as suas memórias e com um regresso à terra dos pais. Aqui a terra era outra - mais a norte, mais verdejante e montanhosa, plantada com batatas. Aqui não foi a terra que me conquistou mas foi a descrição exacta de como foi crescer naquele tempo. Os brinquedos, os programas na televisão, a decoração das casas. Aquela contenção que havia, não porque fosse mesmo necessária, mas porque era assim que devia ser. Aqueles pais sempre preocupados com um caminho que fosse um bocadinho mais incerto, "mas depois consegues arranjar trabalho, filha?". Aquele "o que é que as pessoas vão pensar" que orientava a nossa conduta. Outra vez o querer sair e o querer voltar. Este livro é, antes de mais, um grande hino à família e ao que existiu antes e que nos enforma de maneiras que nem sempre percebemos. Podemos tentar fugir, como Janina ou Angie ou Cláudia, mas dificilmemte conseguimos escapar ao nosso passado, tal como não nos conseguimos livrar da terra que se entranha nas unhas e na pele
Eu nunca usei a expressão "ir à terra", até porque nunca tive, efectivamente, uma ligação à terra. Venho do Alentejo mas de terras não sei nada, sou da vila, do alcatrão, das casas muito brancas, das ruas perpendiculares e paralelas. Durante muito tempo ia a casa, porque era ali de facto a minha casa. Depois, quando arranjei uma casa minha, passei a ir a casa dos meus pais ou, simplesmente, a Ferreira. Ainda assim, quando andei à procura de uma imagem para este post decidi roubar ao meu pai esta foto de terra. Cada pessoa tem a sua paisagem-casa. A minha é mais ou menos assim.
O primeiro disco que me lembro de termos, eu e a minha irmã, era do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo. Lembro-me da capa com ilustrações coloridas, das canções sobre a primavera e os cogumelos, da canção do capuchinho verde contada pela voz do Júlio Isidro. Não tenho dúvidas que se pusesse agora o vinil a rodar seria capaz de acompanhar, cantando quase tudo. Tenho o mesmo sentimento com os discos que tivemos a seguir: os dois volumes do "Brincando aos Clássicos", com a cara de Ana Faria a ocupar toda a capa, e, depois, o "Queijinhos Frescos". Ouvimo-los incontáveis vezes. Tínhamos canções preferidas, claro, mas ouviamo-las a todas, de seguida, acompanhando a audição com a leitura das letras que estavam na contracapa. O Luís, o Luís quer ir a Paris. Oh, Clarinha, olha as pombas, vem, não tenhas medo não. A Rita é catita só irrita a almoçar, ò Rita, a batata-frita não chega para alimentar. Quando acorda de manhã, o Nuno quer ser Tarzan, passear com a Chita, que é uma macaca bonita. Não preciso ir procurar na internet para saber. O João, o João quer ser cowboy ou então, então, super-herói. Ana, tens de dormir, já é tão tarde, dormes a sorrir. Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel. A Joana, que como eu, adorava o Natal. A Catarina que, também como eu, brincava e corria no recreio. O Zé que jogava à bola. A Marta com os seus ursinhos. O casmurro do Tóino. A Elisa com o seu cheiro a alecrim. O Ricardo com coração de leão. Os "Brincando aos Clássicos" adaptavam música clássica de compositores como Verdi ou Mozart, o "Queijinhos Frescos" era já um passo em frente, com músicas pop, como o Thriller, de Michael Jackson, e letras mais elaboradas, até porque a carreira de Ana Faria acompanhava o crescimento dos filhos, que eram mais ou menos da minha idade. Havia aquela canção que tanto nos fazia rir, "Onde tás ò Zé, vem estudar praqui, estou no balancé e a lição já li, e o que fizeste ao i?", com um sotaque alentejano carregado, mas que não levávamos a mal. Tínhamos onze anos e cantávamos a Ana Faria e a Madonna com a mesma intensidade. Depois vieram os Onda Choc, que foram um enorme sucesso. Era a Ana Faria que adaptava os hits do momento, escrevia as letras e ensaiava os miúdos. Ainda ouvi os Onda Choc, claro, ainda cantei que ele é o reeeei lá do liceu e que ela só quer, só pensa em namorar, mas já não tive esses discos e só me lembro de poucas canções porque entretanto meteu-se a adolescência e os Wham e os Xutos e no Natal pedia era os Polystar.
A última vez que vi a Ana Faria foi há cinco anos, quando fui entrevistar o marido, que foi seu parceiro musical e produtor dos discos. Nessa altura ela já não estava capaz de dar entrevistas, não me lembro se com Alzheimer ou outra doença mental, mas estava numa sala ao lado, entretida a pintar, e de vez em quando vinha mostrar os quadros que estava a fazer. Foi muito estranho vê-la, a mesma cara que estava nos discos que tanta companhia me fizeram, mas já não era bem ela. Morreu ontem, com 74 anos. É sempre um bocadinho triste quando morre alguém de quem temos tantas boas memórias.
Sobre a expressão "não páras no armeiro", usada pela minha mãe, o meu pai enviou-me uma explicação possível com os conhecimentos adquiridos na tropa: "O armeiro era o local apropriado para acomodar as armas durante o descanso dos militares (de noite). As armas saíam do armeiro, pela mão dos militares, quando retomavam a actividade. Portanto, sair do armeiro é ir à luta, parar no armeiro é, simbolicamente, sossego e paz".
Faz todo o sentido.
Na sequência da conversa, e porque as memórias são como as cerejas, recebi algumas fotografias dos tempos da tropa. Ora vejam lá o giraço:
Na Lisboa dos anos 80, fotografada por Luís Pavão e agora mostrada na exposição "Lisboa Frágil", no Museu da Cidade, há tabernas com balcões peganhentos; rebanhos de ovelhas a passearem por Alvalade; matinés dançantes onde as senhoras se sentavam em fileira, nas cadeiras encostadas à parede, controlando os passos atrevidos dos jovens; colectividades onde se jogava à laranjinha, às cartas, às damas. Parece que foi noutro tempo. E foi mesmo. Os anos 80 foram no século passado, foram há 40 anos, como é possível, é tão estranho pensar que os anos 80, os anos da minha infância, de que me lembro tão bem, estão, afinal, tão distantes de nós, a vida era tão diferente do que é hoje, sem telemóveis, sem internet, sem selfies, sem reels, sem polémicas da treta no twitter nem dancinhas no tik-tok. A vida era toda real, carne, sangue e suor. Para o bem e para o mal. Esta exposição é uma viagem a um mundo que já só existe nas nossas memórias. E, caramba, se me senti velha a percorrer estas fantásticas fotografias. Ainda assim, ou talvez por isso, vale muito a pena.
Fiquei curiosa sobre o Maradona depois de ter estado em Nápoles e de ter visto a admiração que aquela cidade tem pelo futebolista. Não fazia ideia. Na altura, o Maradona passou-me um bocado ao lado. Eu era miúda e não acompanhava muito a bola e, confesso, na final do Mundial de 1990, que foi mais ou menos quando comecei a gostar de futebol, estava a torcer pela Alemanha. Primeiro, porque eu estudava alemão e o meu liceu tinha um intercâmbio com uma escola em Dortmund que me levou a andar de avião pela primeira vez na vida, portanto, estava numa fase em que até comia salsichas com chucrute e kartoffelsalat; e, depois, porque aquele homem pequenino, atarracado e de penteado piroso não poderia nunca competir com o Lothar Matthaus, não é?
Ontem, que foi o dia de aniversário de Maradona, passou num canal qualquer um documentário sobre o jogador. É um filme realizado por Asif Kapadia, o mesmo que fez os documentários sobre a Amy Winehouse e o Ayrton Senna, usando as milhentas imagens de arquivo, muitas delas de vídeos caseiros. Pus-me a ver. O Maradona a correr que nem um touro selvagem contra tudo e contra todos, a inventar fintas, a passar por entre os adversários e a marcar golos atrás de golos. Parecia imparável. O filme acompanha sobretudo os anos da sua passagem por Nápoles, a relação com a cidade e com a Camorra, a infância pobre e a concretização de sonhos nunca sonhados, as vitórias, o relógio de ouro e o casaco de peles, o filho que não reconheceu, o golo com a mão, as festas e as mulheres, a cocaína, a mulher que aturou isto tudo desde que se conheceram quando eram ainda jovens e pobres, o modo como passou de adorado a odiado pelos italianos. É impressionante também a transformação provocada pelo vício, toda a decadência física. Diego Maradona nunca foi um "menino bem comportado", nem dentro nem fora do relvado.
A propósito, o Bruno Vieira do Amaral partilhou ontem, no Facebook, um texto sobre o Maradona, onde diz: "Não se pode comparar a nenhum jogador de futebol, por muito talentoso, competente e vitorioso que seja, porque foi muito mais do que um jogador de futebol. Sozinho, personificou a abundância de talento, a criatividade desmesurada e a desgraça previsível de todo um continente. A sua vida foi um épico, uma tragédia e uma farsa, muitas vezes ao mesmo tempo. Foi rei e bobo da corte. (...) o único território que Diego alguma vez reclamou foi o do coração dos adeptos e o seu único poder era o amor que lhe tinham. Pode-se discutir o que se quiser sobre a qualidade futebolística, comparar títulos e estatísticas, usar argumentos como quem usa floretes, mas ninguém de boa-fé pode contestar uma verdade evidente: nenhum futebolista foi tão amado quanto Maradona."
Também vale a pena ler o que o Marco Vaza escreveu no Público (para assinantes) a propósito da sua morte em 2020.
Continuo sem entender a idolatria, não entendo nenhuma idolatria. Mas deu para conhecer um pouco melhor Diego Maradona. Após a vitória no Mundial do México, o jogador deu uma entrevista televisiva no quarto onde tinha passado o último mês: nas paredes, mostrou orgulhoso, tinha uma fotografia da namorada, uma imagem da Virgem Maria e um poster de uma pin-up em nu frontal. Acho que é um bom resumo.
Nobel da Literatura para Jon Fosse. Conheço-o pelo teatro. Peças minimalistas, becktianas, quer pela forma quer pelo conteúdo, sempre a questionar o sentido disto tudo, a confrontar-nos com o absurdo do quotidiano. Poucas palavras, repetições, uma musicalidade que nos embala. Angústia, tristeza. Lembro também o seu jeito tímido, quase envergonhado, engolindo as palavras num inglês enrolado.
Dia de lembrar o Jorge e os dias d'A Capital. De agradecer ter vivido o que vivi. A brincar, a brincar, esta pessoa especialista em coisa nenhuma já entrevistou dois prémios Nobel da Literatura. Não está na internet, mas garanto-vos que aconteceu.
Lembro com alguma nostalgia aquelas sextas-feiras à noite em que íamos buscar filmes ao videoclube. Havia um Blockbuster enorme ao pé do Fonte Nova, ficávamos lá uma meia hora pelo menos, a escrutinar as capas dos dvds. É que naquela altura não havia smartphones nem maneira de, estando ali, perante um título, saber mais sobre ele. Guiávamo-nos pelos nomes dos realizadores e dos actores e pelos resumos elogiosos das contracapas. Decisões complicadas, não podíamos errar. Trazíamos sempre dois ou três filmes. E pipocas de microondas ou gelados Häagen-Dazs, doçuras que, sabe-se lá porquê, só comprávamos quando íamos ao Blockbuster. Depois, era aproveitar o serão e o fim-de-semana para ver os filmes, e, na segunda-feira, passar na loja antes de ir trabalhar para deixá-los na caixa de entregas. Isto, claro, antes dos filhos.
(encontrei esta imagem no Google e era mais ou menos isto, paredes e estantes cheias de filmes)
O Blockbuster fechou há bastante tempo. Agora temos a box da televisão por cabo que nos permite andar para trás para vermos o que quisermos, temos as plataformas de streaming e mais a internet inteira para procurar os filmes que nos apetece ver. Foi o que fiz durante os dois dias que passei em casa às voltas com mais uma (a terceira) gripe devido à covid. Não foi nada de grave, apenas um nariz fungoso e aquela apatia que nos impede de sair do sofá e nos tira a capacidade de pensar no que quer que seja. Pois no sofá fiquei e vi tantos filmes que nem tenho a certeza de me lembrar de todos.
O meu preferido foi este: You Hurt My Feelings, realizado por Nicole Holofcener, com Julia Louis-Dreyfus e Tobias McKenzie, uma comédia-dramática, espécie de crónica sobre o quotidiano de um casal de meia-idade e sobre aquelas mentiras que todos dizemos por amor a alguém - serão assim tão inofensivas? É um estilo de filme que vai muito na linha de séries como Easy ou Modern Love, com muitos donuts e cafés bonitos e gente a falar sobre os seus problemas, que também são os nossos problemas, sem grande profundidade mas sem ser tonto, está ali no ponto ideal. Gostei muito.
Também vi Rye Lane, estreia na realização de Raine Allen-Mirrer, protagonizada por David Jonsson e Vivian Oparah. Fiz uma pesquisa para "melhores filmes de 2023" e encontrei várias referências a este, por isso decidi arriscar. Rye Lane é uma rua real, no sul de Londres, e é aí, entre lojas e esplanadas coloridas, que se passa quase toda a acção. É uma comédia romântica e isso diz tudo sobre a história, mas ainda assim foi uma boa surpresa.
Gostei menos de Showing Up, filme de Kelly Richardt, com Michelle Williams a interpretar uma artista cheia de inseguranças antes da inaguração da sua exposição, com dificuldades em relacionar-se com a sua família de artistas e com a comunidade artística de Oregon, EUA. O filme esteve nomeado para a Palma de Ouro em Cannes e a Michelle está muito bem, mas a mim aborreceu-me um bocado e acho que até adormeci pelo meio (mas pode ter sido da febre, vá).
Finalmente, na RTP2 vi o documentário A Vida é um Autocarro Vazio, sobre a escritora Maria Judite Carvalho. É uma escritora que só descobri há relativamente pouco tempo, gostei muito dos dois livros que li dela e tinha muita curiosidade sobre o filme. Achei interessante, porque ela parece ter sido uma mulher fascinante. O documentário é mais ou menos.
No 25 de Abril de 1974 eu já andava por aí, na barriga da minha mãe. Nasci em liberdade e tenho muita noção do quão privilegiada sou por isso. Cresci a ouvir as histórias dos meus pais e dos meus avós, a saber da fome e do medo, da guerra e da opressão, da pobreza e da falta de perspectivas de futuro. Cresci sabendo que comigo seria diferente. Que na minha escola todas as crianças tinham sapatos nos pés. Que votar no dia das eleições é um direito, um dever e uma enorme alegria. Que podia discordar. Sou filha da escola pública e do serviço nacional de saúde, da Comunidade Económica Europeia e dos sonhos que se poderiam realizar: "Não somos ricos nem temos cunhas, mas se estudares e trabalhares podes ser o que tu quiseres", disse-me o meu pai. Eu estudei e trabalhei e aqui estou. Sou o que quero (e se não sou mais é porque não soube sê-lo).
Há dias em que isto faz tudo sentido.
Nos últimos dias andei a recolher testemunhos de pessoas muito fixes sobre o significado pessoal desta data.
Ontem estive no Palácio de Queluz a ver o Chico Buarque a receber o Prémio Camões e tive que me controlar para não deixar cair uma lagriminha.
Hoje, irei descer a avenida, encontrar amigos e dar abraços.
Gosto muito do dia 25 de Abril. Estou geralmente feliz. Emociono-me de todas as vezes que ouço o "Grândola". Sorrio sempre ao ver as imagens dos militares nas ruas, da multidão em êxtase, dos cravos. Sinto uma enorme gratidão e ao mesmo tempo o receio de que tudo isto seja demasiado frágil, às vezes tenho a sensação de que não estamos a cuidar tão bem quanto deveríamos da nossa democracia. Pergunto-me se faço o suficiente.
Esse questionamento também é uma das heranças do 25 de Abril.
Populares saudam os militares no dia 25 de Abril
A minha mãe. Também conhecida cá em casa como avó Mariana. E por quase toda a gente como a professora Nita. A minha mãe queria que eu escrevesse sobre ela e eu nunca fui capaz. Acho que ainda não sou. Só me ocorrem banalidades. Herdei dela as gargalhadas sonoras e as coxas largas. Talvez também o pragmatismo com que encarava os problemas. A mais bonita história de amor é a dos meus pais. Quando eu nasci a minha mãe já só tinha um braço. No entanto, nunca foi uma pessoa deficiente. Trabalhou sempre e fez tudo o que lhe foi possível e até mesmo o que parecia impossível, como bordar a ponto-de-cruz miudinho toalhas de mesa de jantar e fraldas e babetes para os bebés. Ensinou-me a fazer bolos e, o que é mais importante, a gostar de fazer bolos. Dizia-me que eu devia tratar melhor de mim e comprar roupas bonitas e arranjar o cabelo. Gostava de ler os meus textos e sei que tinha um orgulho enorme em mim, mesmo sem haver grandes motivos para tal. Tinha os seus momentos depressivos, tomava comprimidos para dormir e para acordar e para levar melhor esta vida e, apesar das muitas complicações de saúde de que já sofria, só se foi realmente abaixo neste último ano porque soube, desde o primeiro momento, que não iria conseguir.
A minha mãe morreu na manhã do dia 22 de fevereiro.
Ainda estou (ainda estamos) a tentar assimilar como é isto de continuarmos cá sem ela. É uma tristeza diferente das outras tristezas. Umas vezes mais presente, outras vezes mais disfarçada, mas uma tristeza que tem estado sempre por aqui nestes dias.
Ficam as memórias boas. E dessas, felizmente, temos muitas.
Esta é a última fotografia que tenho da minha mãe. Tirada no meu último aniversário. Quando ainda acreditávamos.