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O primeiro disco que me lembro de termos, eu e a minha irmã, era do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo. Lembro-me da capa com ilustrações coloridas, das canções sobre a primavera e os cogumelos, da canção do capuchinho verde contada pela voz do Júlio Isidro. Não tenho dúvidas que se pusesse agora o vinil a rodar seria capaz de acompanhar, cantando quase tudo. Tenho o mesmo sentimento com os discos que tivemos a seguir: os dois volumes do "Brincando aos Clássicos", com a cara de Ana Faria a ocupar toda a capa, e, depois, o "Queijinhos Frescos". Ouvimo-los incontáveis vezes. Tínhamos canções preferidas, claro, mas ouviamo-las a todas, de seguida, acompanhando a audição com a leitura das letras que estavam na contracapa. O Luís, o Luís quer ir a Paris. Oh, Clarinha, olha as pombas, vem, não tenhas medo não. A Rita é catita só irrita a almoçar, ò Rita, a batata-frita não chega para alimentar. Quando acorda de manhã, o Nuno quer ser Tarzan, passear com a Chita, que é uma macaca bonita. Não preciso ir procurar na internet para saber. O João, o João quer ser cowboy ou então, então, super-herói. Ana, tens de dormir, já é tão tarde, dormes a sorrir. Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel. A Joana, que como eu, adorava o Natal. A Catarina que, também como eu, brincava e corria no recreio. O Zé que jogava à bola. A Marta com os seus ursinhos. O casmurro do Tóino. A Elisa com o seu cheiro a alecrim. O Ricardo com coração de leão. Os "Brincando aos Clássicos" adaptavam música clássica de compositores como Verdi ou Mozart, o "Queijinhos Frescos" era já um passo em frente, com músicas pop, como o Thriller, de Michael Jackson, e letras mais elaboradas, até porque a carreira de Ana Faria acompanhava o crescimento dos filhos, que eram mais ou menos da minha idade. Havia aquela canção que tanto nos fazia rir, "Onde tás ò Zé, vem estudar praqui, estou no balancé e a lição já li, e o que fizeste ao i?", com um sotaque alentejano carregado, mas que não levávamos a mal. Tínhamos onze anos e cantávamos a Ana Faria e a Madonna com a mesma intensidade. Depois vieram os Onda Choc, que foram um enorme sucesso. Era a Ana Faria que adaptava os hits do momento, escrevia as letras e ensaiava os miúdos. Ainda ouvi os Onda Choc, claro, ainda cantei que ele é o reeeei lá do liceu e que ela só quer, só pensa em namorar, mas já não tive esses discos e só me lembro de poucas canções porque entretanto meteu-se a adolescência e os Wham e os Xutos e no Natal pedia era os Polystar.
A última vez que vi a Ana Faria foi há cinco anos, quando fui entrevistar o marido, que foi seu parceiro musical e produtor dos discos. Nessa altura ela já não estava capaz de dar entrevistas, não me lembro se com Alzheimer ou outra doença mental, mas estava numa sala ao lado, entretida a pintar, e de vez em quando vinha mostrar os quadros que estava a fazer. Foi muito estranho vê-la, a mesma cara que estava nos discos que tanta companhia me fizeram, mas já não era bem ela. Morreu ontem, com 74 anos. É sempre um bocadinho triste quando morre alguém de quem temos tantas boas memórias.
Não sou a maior fã dos Pogues nem tinha nenhuma memória especial de Shane MacGowan (1957-2023), mas, caramba, que me emocionei a ver os vídeos do seu funeral.
Glen Hansard, Lisa O'Neill e The Pogues interpretam "Fairytale of New York":
De vez em quando, dou por mim a pensar: tenho de contar isto à minha mãe. É um pensamento rápido. Dura uns segundos, talvez nem isso. Quando dou conta, sorrio por dentro.
Sei que é improvável, mas queria mesmo que isto nunca deixasse de acontecer.
Chama-se 12 e, sobre ele, escreve a Pitchfork: "Much like his friend and Merry Christmas, Mr. Lawrence castmate David Bowie did with Blackstar, as well as Leonard Cohen with You Want It Darker, Sakamoto is staring down the prospect of his own death, meditating on the legacy that he will leave behind. But rather than mythologize his life in narrative songwriting or theatrical instrumental fireworks, he’s chosen a quiet grace, one more subtle and restrained than even his softest prior work. Rarely does an album this understated say so much."
Sobre Sakamoto escrevi AQUI.
Eu, que morro de medo de morrer (a repetição é intencional), admiro imenso estas pessoas - como Sakamoto, Bowie, Cohen - que olham a morte de frente e a desafiam, continuando a criar beleza. Uma beleza triste e comovente, mas, ainda assim, beleza.
O melhor que podemos fazer é ouvi-lo:
Acordei com a notícia triste: morreu o Jorge Silva Melo. O Jorge. Que me mandava mensagens no Facebook: "Não nos queres vir ver?". Ou então alertava-me para coisas que aconteciam noutros teatros que não os dele: "Trata deles". Que me perguntava sempre: "Como está o António?", porque se lembrava de me ver grávida e tinha fixado que o meu filho tinha o nome do seu "rapaz de Lisboa". O Jorge que marcava entrevistas no "Estrela, 60, onde antes era O Bando", dizia, como se eu fosse desse tempo e soubesse. Que tinha sempre consigo um termo de chá. Que fumava cigarros atrás de cigarros. Não gostava de todos os espectáculos dele mas não faz mal. Aprendi tanto a vê-lo e a ouvi-lo. O Jorge que nos mostrou a Sarah Kane (e tanto outros autores) e o Miguel Borges (e tantos outros actores) e nos fez percorrer os caminhos d'A Capital numa altura da minha vida em que ir ver teatro naquelas ruínas no meio do Bairro Alto fazia todo o sentido. Que me falava de filmes e de espectáculos e de actores. Brilhavam-lhe os olhos quando falava dos "seus" actores. Que estava sempre disponível para conversar, sobre a crise na cultura, sobre as peças que ia fazer, sobre os atores desaparecidos, sobre as dificuldades do teatro. "Quando queres?". Só houve uma vez que me disse que não: "Desculpa, são memórias de que não quero falar. Beijos". O Jorge que falava apaixonadamente. E que inventou os ensaios de imprensa feitos à tarde, com cenas para televisão à parte, com semanas de antecedência, para dar tempo para tudo. Até para morrer e deixar um espectáculo pronto a estrear.
A minha mãe. Também conhecida cá em casa como avó Mariana. E por quase toda a gente como a professora Nita. A minha mãe queria que eu escrevesse sobre ela e eu nunca fui capaz. Acho que ainda não sou. Só me ocorrem banalidades. Herdei dela as gargalhadas sonoras e as coxas largas. Talvez também o pragmatismo com que encarava os problemas. A mais bonita história de amor é a dos meus pais. Quando eu nasci a minha mãe já só tinha um braço. No entanto, nunca foi uma pessoa deficiente. Trabalhou sempre e fez tudo o que lhe foi possível e até mesmo o que parecia impossível, como bordar a ponto-de-cruz miudinho toalhas de mesa de jantar e fraldas e babetes para os bebés. Ensinou-me a fazer bolos e, o que é mais importante, a gostar de fazer bolos. Dizia-me que eu devia tratar melhor de mim e comprar roupas bonitas e arranjar o cabelo. Gostava de ler os meus textos e sei que tinha um orgulho enorme em mim, mesmo sem haver grandes motivos para tal. Tinha os seus momentos depressivos, tomava comprimidos para dormir e para acordar e para levar melhor esta vida e, apesar das muitas complicações de saúde de que já sofria, só se foi realmente abaixo neste último ano porque soube, desde o primeiro momento, que não iria conseguir.
A minha mãe morreu na manhã do dia 22 de fevereiro.
Ainda estou (ainda estamos) a tentar assimilar como é isto de continuarmos cá sem ela. É uma tristeza diferente das outras tristezas. Umas vezes mais presente, outras vezes mais disfarçada, mas uma tristeza que tem estado sempre por aqui nestes dias.
Ficam as memórias boas. E dessas, felizmente, temos muitas.
Esta é a última fotografia que tenho da minha mãe. Tirada no meu último aniversário. Quando ainda acreditávamos.
Bernardo Sassetti (1970-2012)
Haverá um ano em que deixamos de contar os anos? Talvez. Mas isso não quer dizer que esqueçamos.
Há feridas que, mesmo cicatrizadas, deixam marcas que são para sempre.
Foi morto mas a verdade é que era uma pessoa difícil e estava sempre a arranjar chatices.
Foi espancada mas a verdade é que ela era muito respondona e tinha a mania.
Foi atacado mas a verdade é que tinha um passado violento e até já tinha estado preso.
Foi violada mas a verdade é que andava sempre com roupas provocantes e a pavonear-se por aí.
Não.
A verdade é que não há justificação para estes actos. Temos de perceber isto de uma vez por todas. Nada no passado ou na personalidade ou na vida de uma pessoa justifica a violência.
Vem isto a propósito da morte de Bruno Candé que parece que era boa pessoa mas até podia não ser. Não é isso que está em causa neste momento.
Uma pessoa que toma a decisão de sair de casa com uma arma e, a sangue frio, atirar quatro vezes sobre um homem, no meio da rua, à vista de todos, sem medo e sem hesitações, não tem desculpa. Não há nenhum mas que se possa pôr nesta frase.
É um assassino.
E se está louco é um louco perigoso e não pode andar à solta.
Bernardo Sassetti (1970-2012)
Noite (Alice)
Antes de morrer, e sabendo bem o que a esperava, a médica e cientista Maria de Sousa (1939-2020) escreveu um poema em inglês. O também poeta João Luís Barreto Guimarães fez uma tradução, mas eu prefiro a versão original (porque odeio o pronome vós e todas as suas conjugações verbais, é tão mais bonita a simplicidade do you). Um poema sobre a morte e sobre todas as pequenas-grandes coisas que levamos desta vida (e que deixamos nesta vida). Os risos. Os momentos. As nossas pessoas. Caramba. Tão triste e tão belo.