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O que fariam se soubessem que vão morrer em breve?

Molly quer fazer sexo. Quer fazer sexo sem culpa, sem tabus, sem restrições. E gostaria também de ter um orgasmo fazendo sexo com outra pessoa, algo que nunca conseguiu.

De alguma forma a série Dying for Sex está ligada ao livro da Miranda July de que falei aqui, só que em vez de uma mulher perante a constatação de que está a envelhecer temos uma mulher, um pouco mais nova, com o diagnóstico de um cancro terminal. Em ambas a mesma necessidade, a mesma urgência, de viverem como bem lhes apetece este tempo tão curto que têm pela frente. E isso inclui não continuar numa relação que não as faz feliz e explorarem os seus desejos sexuais, que até aqui estavam aprisionados.

Molly, interpretada por Michelle Williams, tem outros traumas para resolver, incluindo o facto de ter sido abusada sexualmente quando era criança e de ter uma relação complicada com a mãe. E tem uma grande amiga, Nikki, que muda toda a sua vida para a acompanhar nesta fase (e esta é também uma série sobre a amizade e a dor de perder alguém que nos é muito querido).

A série baseia-se na história verdadeira de Molly Kochan, uma americana de Los Angeles que, depois de quatro anos antes ter tratado um cancro, em 2015, quando tinha 41 anos, foi diagnosticada com cancro da mama em estádio 4. Nessa altura, decidiu embarcar numa aventura de descoberta sexual e contar tudo num podcast em que conversava com a sua melhor amiga, Nikki Boyer. “O sexo faz-me sentir viva - e é uma óptima distracção da doença”, disse. O podcast só foi lançado depois da sua morte, em 2019. Molly também contou a sua história no livro de memórias, Screw Cancer: Becoming Whole, que foi lançado em 2020.

Acho que nunca tinha visto uma série que retratasse de forma tão pormenorizada a vida com cancro e o caminho para a morte. Apesar do humor e de todo o sexo, senti-me muito angustiada, sobretudo nos últimos episódios. Se, por um lado, é incrível que já se consiga falar destes temas e fazê-lo assim, com esta personagem tão luminosa e especial, por outro lado, não consegui deixar de me sentir extremamente triste e de pensar em todas as pessoas que eu conheço que passaram por situações semelhantes. O que terão pensado? O que terão sentido? Sentiram-se sozinhas? Será que fizemos tudo o que era possível por elas? 

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publicado às 19:02

publicado às 14:05

É um filme sobre a morte - e sobre a doença e a proximidade do fim e a eutanásia. Mas é também um filme sobre a amizade. É por isso que, apesar de abordar um tema tão perturbador, O Quarto ao Lado é um filme que nos dá alguma esperança: não estamos sozinhos. E enfrentar isto tudo sabendo que temos num qualquer quarto ao lado uma pessoa que nos ama é talvez a maior fortuna do mundo. 

O Quarto Ao Lado é a primeira longa-metragem de Pedro Almodóvar falada em inglês. Interpretada por uma atriz americana (Julianne Moore) e outra britânica (Tilda Swinton), com a acção a passar-se nos Estados Unidos. Continua a ser um Almodóvar de pleno direito. As cores, os enquadramentos, a música, a encenação, as referências  (John Houston, Buster Keaton, Edward Hopper, James Joyce) - tudo é de uma beleza enorme e milimetricamente pensada, e tudo é muito característico de Almodóvar. Só as interpretações - extraordinárias, como é óbvio -  são de uma contenção a que não estávamos habituados. 

Almodóvar nunca foi um adepto do realismo. Mas aqui a artificialidade parece fazer ainda mais sentido. Como disse o realizador ao Público: "O sentimento perante a morte é algo de muito pessoal. Perante isso sou como uma criança, não sou alguém maduro. Não aceito a morte. Não percebo porque é que algo que está vivo tem de morrer. Isso não é natural para mim". Portanto, o filme também não tem de ser "natural" e pode assumir-se como uma peça de arte, uma construção, uma abstracção. Que, apesar disso, consiga ser emocionante e tocar-nos cá dentro, essa é a sua verdadeira mestria.

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publicado às 22:10

Estive com a Adília Lopes uma única vez, há mais de vinte anos, num ensaio do espectáculo A Birra da Viva, de Lúcia Sigalho. Queria lembrar-me melhor desse espectáculo, desse momento. Tenho tão boas memórias das noites passadas no Armazém do Ferro. A Lúcia Sigalho e a Mónica Calle foram uma revolução na minha vida. Eu era ainda uma miúda, mal tinha começado a pensar nestas coisas, e elas a fazerem espectáculos sobre isto de ser mulher, a dizerem-me que o importante é sermos quem realmente somos, assumirmos os nossos desejos e deitarmos fora a culpa, elas a mostrarem-me o caminho. Devo-lhes tanto. Foi por causa da Lúcia e desse espectáculo sobre mulheres e mães e sobre corpos que dão vida e morte que fiquei com vontade de ler a Adília. Foi depois de a ver ali, de ouvir a maneira contida, desassombrada, crua como falava, que fui descobrir os seus poemas. A Adília Lopes morreu ontem e eu li a notícia e não queria acreditar. Tinha apenas 64 anos. Fiquei tão triste.  Chorei por ela e por mim e por todas as mortes que ficaram por chorar. 

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“Posso morrer porque amei e fui amada. Gostei de homens, de mulheres, de velhas (de velhos não), de bebés, de bichos, de plantas, de casas, de filmes, de concertos, de quadros, de teorias, de jogos, de pastéis de natas, de jesuítas, de russos, de hamburgers, de Paris e de Londres. Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York não se compara a um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante”

De Irmã Barata, Irmã Batata, de Adília Lopes

(na página 409 de Dobra, poesia reunida, 2021, Assírio & Alvim)

publicado às 11:55

O primeiro disco que me lembro de termos, eu e a minha irmã, era do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo. Lembro-me da capa com ilustrações coloridas, das canções sobre a primavera e os cogumelos, da canção do capuchinho verde contada pela voz do Júlio Isidro. Não tenho dúvidas que se pusesse agora o vinil a rodar seria capaz de acompanhar, cantando quase tudo. Tenho o mesmo sentimento com os discos que tivemos a seguir: os dois volumes do "Brincando aos Clássicos", com a cara de Ana Faria a ocupar toda a capa, e, depois, o "Queijinhos Frescos". Ouvimo-los incontáveis vezes. Tínhamos canções preferidas, claro, mas ouviamo-las a todas, de seguida, acompanhando a audição com a leitura das letras que estavam na contracapa. O Luís, o Luís quer ir a Paris. Oh, Clarinha, olha as pombas, vem, não tenhas medo não. A Rita é catita só irrita a almoçar, ò Rita, a batata-frita não chega para alimentar. Quando acorda de manhã, o Nuno quer ser Tarzan, passear com a Chita, que é uma macaca bonita. Não preciso ir procurar na internet para saber. O João, o João quer ser cowboy ou então, então, super-herói. Ana, tens de dormir, já é tão tarde, dormes a sorrir. Lá vem o Miguel, dos olhos de mel, sempre a cavalgar, a galopar no seu corcel. A Joana, que como eu, adorava o Natal. A Catarina que, também como eu, brincava e corria no recreio. O Zé que jogava à bola. A Marta com os seus ursinhos. O casmurro do Tóino. A Elisa com o seu cheiro a alecrim. O Ricardo com coração de leão. Os "Brincando aos Clássicos" adaptavam música clássica de compositores como Verdi ou Mozart, o "Queijinhos Frescos" era já um passo em frente, com músicas pop, como o Thriller, de Michael Jackson, e letras mais elaboradas, até porque a carreira de Ana Faria acompanhava o crescimento dos filhos, que eram mais ou menos da minha idade. Havia aquela canção que tanto nos fazia rir, "Onde tás ò Zé, vem estudar praqui, estou no balancé e a lição já li, e o que fizeste ao i?", com um sotaque alentejano carregado, mas que não levávamos a mal. Tínhamos onze anos e cantávamos a Ana Faria e a Madonna com a mesma intensidade. Depois vieram os Onda Choc, que foram um enorme sucesso. Era a Ana Faria que adaptava os hits do momento, escrevia as letras e ensaiava os miúdos. Ainda ouvi os Onda Choc, claro, ainda cantei que ele é o reeeei lá do liceu e que ela só quer, só pensa em namorar, mas já não tive esses discos e só me lembro de poucas canções porque entretanto meteu-se a adolescência e os Wham e os Xutos e no Natal pedia era os Polystar. 

A última vez que vi a Ana Faria foi há cinco anos, quando fui entrevistar o marido, que foi seu parceiro musical e produtor dos discos. Nessa altura ela já não estava capaz de dar entrevistas, não me lembro se com Alzheimer ou outra doença mental, mas estava numa sala ao lado, entretida a pintar, e de vez em quando vinha mostrar os quadros que estava a fazer. Foi muito estranho vê-la, a mesma cara que estava nos discos que tanta companhia me fizeram, mas já não era bem ela. Morreu ontem, com 74 anos. É sempre um bocadinho triste quando morre alguém de quem temos tantas boas memórias. 

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publicado às 14:47

Não sou a maior fã dos Pogues nem tinha nenhuma memória especial de Shane MacGowan (1957-2023), mas, caramba, que me emocionei a ver os vídeos do seu funeral. 

Glen Hansard, Lisa O'Neill e The Pogues interpretam "Fairytale of New York":

publicado às 10:04

14
Ago23

Sentir falta

De vez em quando, dou por mim a pensar: tenho de contar isto à minha mãe. É um pensamento rápido. Dura uns segundos, talvez nem isso. Quando dou conta, sorrio por dentro. 

Sei que é improvável, mas queria mesmo que isto nunca deixasse de acontecer.

publicado às 09:46

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Ryuichi Sakamoto faz hoje 71 anos e tem um disco novo, composto, interpretado e lançado depois do diagnóstico de uma doença que o está a matar.
 

Chama-se 12 e, sobre ele, escreve a Pitchfork: "Much like his friend and Merry Christmas, Mr. Lawrence castmate David Bowie did with Blackstar, as well as Leonard Cohen with You Want It Darker, Sakamoto is staring down the prospect of his own death, meditating on the legacy that he will leave behind. But rather than mythologize his life in narrative songwriting or theatrical instrumental fireworks, he’s chosen a quiet grace, one more subtle and restrained than even his softest prior work. Rarely does an album this understated say so much."

Sobre Sakamoto escrevi AQUI.

Eu, que morro de medo de morrer (a repetição é intencional), admiro imenso estas pessoas - como Sakamoto, Bowie, Cohen - que olham a morte de frente e a desafiam, continuando a criar beleza. Uma beleza triste e comovente, mas, ainda assim, beleza.

O melhor que podemos fazer é ouvi-lo:

publicado às 09:52

15
Mar22

O Jorge

Acordei com a notícia triste: morreu o Jorge Silva Melo. O Jorge. Que me mandava mensagens no Facebook: "Não nos queres vir ver?". Ou então alertava-me para coisas que aconteciam noutros teatros que não os dele: "Trata deles". Que me perguntava sempre: "Como está o António?", porque se lembrava de me ver grávida e tinha fixado que o meu filho tinha o nome do seu "rapaz de Lisboa". O Jorge que marcava entrevistas no "Estrela, 60, onde antes era O Bando", dizia, como se eu fosse desse tempo e soubesse. Que tinha sempre consigo um termo de chá. Que fumava cigarros atrás de cigarros. Não gostava de todos os espectáculos dele mas não faz mal. Aprendi tanto a vê-lo e a ouvi-lo. O Jorge que nos mostrou a Sarah Kane (e tanto outros autores) e o Miguel Borges (e tantos outros actores) e nos fez percorrer os caminhos d'A Capital numa altura da minha vida em que ir ver teatro naquelas ruínas no meio do Bairro Alto fazia todo o sentido. Que me falava de filmes e de espectáculos e de actores. Brilhavam-lhe os olhos quando falava dos "seus" actores. Que estava sempre disponível para conversar, sobre a crise na cultura, sobre as peças que ia fazer, sobre os atores desaparecidos, sobre as dificuldades do teatro. "Quando queres?". Só houve uma vez que me disse que não: "Desculpa, são memórias de que não quero falar. Beijos". O Jorge que falava apaixonadamente. E que inventou os ensaios de imprensa feitos à tarde, com cenas para televisão à parte, com semanas de antecedência, para dar tempo para tudo. Até para morrer e deixar um espectáculo pronto a estrear.

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publicado às 20:37

28
Fev22

A minha mãe

A minha mãe. Também conhecida cá em casa como avó Mariana. E por quase toda a gente como a professora Nita. A minha mãe queria que eu escrevesse sobre ela e eu nunca fui capaz. Acho que ainda não sou. Só me ocorrem banalidades. Herdei dela as gargalhadas sonoras e as coxas largas. Talvez também o pragmatismo com que encarava os problemas. A mais bonita história de amor é a dos meus pais. Quando eu nasci a minha mãe já só tinha um braço. No entanto, nunca foi uma pessoa deficiente. Trabalhou sempre e fez tudo o que lhe foi possível e até mesmo o que parecia impossível, como bordar a ponto-de-cruz miudinho toalhas de mesa de jantar e fraldas e babetes para os bebés. Ensinou-me a fazer bolos e, o que é mais importante, a gostar de fazer bolos. Dizia-me que eu devia tratar melhor de mim e comprar roupas bonitas e arranjar o cabelo. Gostava de ler os meus textos e sei que tinha um orgulho enorme em mim, mesmo sem haver grandes motivos para tal. Tinha os seus momentos depressivos, tomava comprimidos para dormir e para acordar e para levar melhor esta vida e, apesar das muitas complicações de saúde de que já sofria, só se foi realmente abaixo neste último ano porque soube, desde o primeiro momento, que não iria conseguir. 

A minha mãe morreu na manhã do dia 22 de fevereiro. 

Ainda estou (ainda estamos) a tentar assimilar como é isto de continuarmos cá sem ela. É uma tristeza diferente das outras tristezas. Umas vezes mais presente, outras vezes mais disfarçada, mas uma tristeza que tem estado sempre por aqui nestes dias. 

Ficam as memórias boas. E dessas, felizmente, temos muitas. 

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Esta é a última fotografia que tenho da minha mãe. Tirada no meu último aniversário. Quando ainda acreditávamos.

publicado às 09:23


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