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São mulheres com um sotaque (lindo) do Alentejo. Vejo ali traços das minhas avós e bocados das suas vidas, e só isso já seria suficiente para me comover. São mulheres que nos contam como era a sua vida antes do 25 e Abril de 1974. Umas nunca foram à escola, outras estudaram até à terceira ou quarta classe, começaram a trabalhar com 11, 12, 15 anos, no campo - na apanha da azeitona, na monda, na ceifa - ou então a servir em casa de alguém. Eram crianças ainda e já tomavam conta dos irmãos mais pequenos ou dos filhos das senhoras, faziam a lida da casa, cozinhavam para a família. Casaram virgens e sem saber nada sobre sexo. Serviram os maridos como serviram os patrões: com respeito e obediência. Foram criadas em suas próprias casas, sem pagamento nem reconhecimento. Poucas vezes se questionaram se eram felizes, se poderia ser diferente, se mereciam melhor. Resignaram-se. 

Os vídeos do projecto Antigamente é que era bom estão na página de instagram aifi.lhas e são ao mesmo tempo tristes e belos, mas são, sobretudo, um alerta para que não esqueçamos como era e para não acreditarmos em teorias revisionistas. Muita coisa mudou nestes 51 anos e muita coisa mudou para melhor. Sobretudo para as mulheres.

[Existe um outro projecto muito bonito, o podcast Memória Futura, da Laura Falésia, em que ela entrevista mulheres mais velhas, cada uma com uma história incrível. Fica a dica.]

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Hoje é dia do trabalhador. E da trabalhadora. A foto lá em cima foi tirada DAQUI. Aproveito para aconselhar que procurem as fotografias que a Maria Lamas tirou às mulheres do nosso país e para lembrar o que escrevi num dia particularmente irritada.  

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Queria aproveitar também para falar do meu trabalho, mas, precisamente, estes têm sido dias muito exigentes, e não estou a conseguir escrever o que gostaria de escrever. Mas fica prometido. Ser feliz no trabalho que escolhemos (ainda que não sejamos felizes todos os dias nem todas as semanas, ainda que por vezes duvidemos de tudo, ainda que muitos dias sintamos que não vale a pena e só nos apeteça desistir) é um privilégio enorme. 

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A propósito, já viram o On Falling?

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No nosso largo só se trabalha por gosto:

publicado às 19:23

11
Abr25

Purgatório

“Essa sensação de o tempo estar a escassear e uma pessoa ser demasiado medricas para fazer explodir a vida que leva.”

No livro De Quatro, Miranda July mostra como uma mulher de 45 anos enfrenta a sua crise de meia-idade (também conhecida como perimenopausa) e decide abanar a sua vida e o seu casamento tradicional para se permitir partir à descoberta daquilo que realmente gosta e quer para si. Antes que seja demasiado tarde. Ou seja, antes de o envelhecimento a desfigurar.

Há muito sexo em De Quatro. Há masturbação, sexo hetero e homossexual, fantasias, brinquedos sexuais, role play. É engraçado pormo-nos na cabeça de outra mulher. Porém, não gostei assim tanto quanto esperava deste livro, que me foi muito recomendado. Em parte acho que isso tem a ver com a escrita da autora e também com a tradução. Não foi só isso. Mas prefiro falar daquilo que gostei. Sendo um livro escrito por uma mulher sobre mulheres e envelhecimento é claro que há sempre algum momento onde nos reconhecemos. Por exemplo, na eterna questão: conseguiremos, apesar de todas as condicionantes sociais, ser quem realmente somos (ainda que para isso precisemos de ter um quarto-refúgio num motel a vinte minutos de casa, como esta mulher)? Ou na outra pergunta, que todas nos fazemos a determinada altura: como será a paixão (ainda haverá paixão) quando envelhecemos? 

Depois, achei interessante a relação dela com as amigas e as conversas com outras mulheres, como quem percebe que afinal não está sozinha. E gostei de toda a parte mais doméstica, da relação da protagonista com o marido e o filho, a vidinha que temos e que às tantas já nem sabemos se estamos ali porque queremos ou simplesmente porque nos habituámos a viver daquela forma.

Falando com amigos, apercebo-me da quantidade de gente que vive infeliz em casamentos e que não sabe o que fazer. Porque é mesmo muito difícil ficar uma vida inteira com uma pessoa. As pessoas crescem e evoluem e é normal que aos 50 anos já não sejamos exactamente a mesma pessoa que éramos quando nos apaixonámos e fizemos juras de amor aos 20 e tal. Talvez por isso são cada vez mais as pessoas que pura e simplesmente não casam, também as que não querem ter filhos. São cada vez mais as que procuram outras maneiras de viver o amor. Não é à toa que cada vez mais se fala de relações abertas, de poliamor, de casais que querem permanecer juntos, mas que precisam que essa relação seja diferente do que é. E finalmente são cada vez mais as pessoas que dizem chega! e se divorciam.

Infelizmente são, parece-me, também muitas aquelas que se deixam ficar na infelicidade, como se o casamento fosse um buraco do qual não conseguem sair. Por causa dos filhos. Por causa da estabilidade. Por causa das memórias. Por causa do compromisso. Por causa de um sonho por cumprir. Por causa de dinheiro. Por causa dos outros. Por causa do medo. Por medo da solidão e da velhice. Por não terem a certeza que sozinhos ficarão melhor. Cada pessoa tem as suas razões, e são todas válidas. Mas quão triste será viver nesta espécie de beco sem saída?

Não tenho respostas nem conselhos. Só perguntas. E, ainda que não tenha adorado, ler um livro que me deixa tantas perguntas nunca é tempo perdido.

A este propósito:

  • muito interessante o podcast 451 MHz sobre o livro;
  • no outro dia, a Tânia Graça falava um pouco sobre os motivos porque se fica numa relação em que não se é feliz;
  • também apanhei por acaso um artigo na The Atlantic com boas dicas para quem, como eu, tem dificuldades em fazer mudanças na sua vida: To Be Happier, Stop Resisting Change;
  • outra perspectiva engraçada aqui: "Para as mulheres, o melhor sexo pode chegar depois dos 50"
  • Não sabia quem era a Miranda July, tive que ir à procura. Nesta entrevista ela fala um pouco das suas motivações para escrever este livro. All Fours é um dos nomeados para o prémio britânico Women's Prize for Fiction, cujo vencedor será anunciado a 12 de junho; e também já se sabe que o livro vai ser adaptado para uma série de televisão.

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O que é que isto tudo tem a ver com "purgatório", que é o tema desta semana no largo? Ah, essa também é uma boa pergunta. Talvez encontrem respostas mais úteis aqui:

publicado às 08:48

Não gosto de filmes de terror nem gore, portanto, parece-me natural que não tenha gostado d'A Substância, realizado por Coralie Fargeat. Aliás, nem tinha intenções de perder tempo com isto. Mas depois apareceu-me ali no streaming do Movistar e eu ainda tinha uns dias até desactivar a conta e achei por bem aproveitar. Está visto, e a primeira coisa que me ocorre dizer é que é um disparate pegado.

Simplificando, é isto: Elisabeth, uma estrela de Hollwyood (Demi Moore), vai ser afastada porque está a ficar velha e já não corresponde ao estereótipo de beleza pretendido pelo produtor do seu programa de televisão. Então, decide experimentar uma substância inovadora que faz "nascer" do seu corpo uma versão mais jovem de si, Sue (Margaret Qualley). À custa de um complexo sistema de injecções, alimentam-se uma da outra e vivem em semanas alternadas, enquanto uma está inconsciente, a outra está activa. Até que Sue começa a gostar demasiado da sua vida e a aldrabar o esquema para prolongar a sua semana, e a partir daí as coisas descontrolam-se.

Eu, que sou da realidade, lido sempre muito mal com estes filmes de fantasia porque começo a encontrar falhas na história, coisas que não batem certo, que não podiam ser assim. Isso não me leva a lado nenhum, claro, porque para ver um filme destes a primeira premissa é aceitar o que nos dão sem questionar. Mas, vamos lá ver - e só vou perguntar isto -, se durante a semana em que estava "desligada" a Elisabeth não tinha qualquer consciência e não podia desfrutar da beleza e da juventude da Sue, para que é que aquilo lhe servia afinal?

Há ali uma cena em que Elisabeth se prepara para ir jantar fora com um homem, mas não satisfeita com a imagem que o espelho lhe devolve continua a emendar a maquilhagem à procura de uma perfeição que não existe, a tal ponto que a sua cara se transforma num borrão e ela acaba por desistir. Essa cena é muito forte.

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Mas, honestamente, se queriam encontrar uma mulher que representasse o medo de envelhecer talvez tivesse sido bom ir buscar uma actriz que não estivesse tão esticada e botocada e que tivesse um corpo um bocadinho mais envelhecido (nada contra, atenção, o corpo dela é óptimo e ainda bem, só estou a dizer que não dá para uma pessoa normal sentir muita identificação com o seu medo de envelhecer - só para que tenham uma ideia, ela tem 62 anos e está a representar uma mulher de 50, sendo que o seu corpo é bem melhor do que o da maioria das mulheres de 50 que eu conheço). 

Por aquilo que li, A Substância tinha pretensões de fazer alguma crítica social e ter uma mensagem feminista. Não encontrei lá nada disso. Mas isso também já é hábito em mim, como se pode comprovar AQUI e AQUI.

Tudo bem, já sabemos que existe uma pressão da sociedade sobre os corpos das mulheres. Mas se  por um lado o envelhecimento não é só uma questão de corpo, por outro nem toda a juventude é bela e nem toda a velhice é feia. E que fixe que é quando conseguimos escapar desses estereótipos. Isso sim, seria uma verdadeira mensagem feminista. Pelo contrário, o que ali vejo são duas mulheres, uma mais jovem e outra mais velha, mas ambas igualmente obcecadas com o corpo e com a imagem e com necessidade de agradarem aos homens que babam à sua frente. Duas mulheres sem amigos, sem família, sem vida, sem objectivos que não manterem-se lindas e serem adoradas. Que estão dispostas a tudo, até a submeterem-se a tratamentos estranhos e sobre os quais não sabem absolutamente nada, em troca da promessa da eterna juventude. Que se destroem a si mesmas e que, até ao fim, não dão qualquer mostra de ter dois dedos de testa ou de fazer qualquer auto-crítica (nota-se que estou enervada com isto?, é porque estou).

E já nem falo nos grandes planos exagerados - completely male gaze, ainda que a realizadora seja uma mulherdas mamas e dos rabos das actrizes. Feminismo? Onde?

publicado às 22:51

publicado às 14:05

A Capicua tem música nova. Chama-se Making Teenage Ana Proud e, como sempre, é certeira a falar dos nossos tempos. 

publicado às 23:15

Estive com a Adília Lopes uma única vez, há mais de vinte anos, num ensaio do espectáculo A Birra da Viva, de Lúcia Sigalho. Queria lembrar-me melhor desse espectáculo, desse momento. Tenho tão boas memórias das noites passadas no Armazém do Ferro. A Lúcia Sigalho e a Mónica Calle foram uma revolução na minha vida. Eu era ainda uma miúda, mal tinha começado a pensar nestas coisas, e elas a fazerem espectáculos sobre isto de ser mulher, a dizerem-me que o importante é sermos quem realmente somos, assumirmos os nossos desejos e deitarmos fora a culpa, elas a mostrarem-me o caminho. Devo-lhes tanto. Foi por causa da Lúcia e desse espectáculo sobre mulheres e mães e sobre corpos que dão vida e morte que fiquei com vontade de ler a Adília. Foi depois de a ver ali, de ouvir a maneira contida, desassombrada, crua como falava, que fui descobrir os seus poemas. A Adília Lopes morreu ontem e eu li a notícia e não queria acreditar. Tinha apenas 64 anos. Fiquei tão triste.  Chorei por ela e por mim e por todas as mortes que ficaram por chorar. 

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“Posso morrer porque amei e fui amada. Gostei de homens, de mulheres, de velhas (de velhos não), de bebés, de bichos, de plantas, de casas, de filmes, de concertos, de quadros, de teorias, de jogos, de pastéis de natas, de jesuítas, de russos, de hamburgers, de Paris e de Londres. Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York não se compara a um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante”

De Irmã Barata, Irmã Batata, de Adília Lopes

(na página 409 de Dobra, poesia reunida, 2021, Assírio & Alvim)

publicado às 11:55

Está nas listas todas de melhores do ano, da Sight & Sound a Barack Obama: All We Imagine As Light - Tudo o que Imaginamos como Luz, filme escrito e realizado pela indiana Payal Kapadia, é ao mesmo tempo lindo e triste, seja na forma como retrata a vida das mulheres, tão condicionadas pelas famílias, pela religião, pela moral, seja no modo como nos mostra aquela cidade, Mumbai, na sua enormidade e na sua pobreza. Uma cidade onde mais de 12 milhões de pessoas se movimentam (conseguem imaginar?) e onde a toda a hora se ouvem carros, buzinas, motores, mil ruídos.

Lembro-me que quando vim estudar para Lisboa, ainda nem 18 anos tinha, a cidade grande apresentava-se como um mundo de possibilidades. Aqui eu poderia ser quem eu quisesse e fazer o que me apetecesse. Andar na rua sem ter que cumprimentar todas as pessoas, sem que toda a gente me conhecesse e controlasse, era exactamente aquilo de que precisava naquele momento. A cidade cumpriu as expectativas. Não sou a maior fã de Lisboa, não consigo ver beleza em todos os seus recantos, mas sei que aquilo que sou hoje se deve em grande parte a todas as experiências que esta cidade me proporcionou. Aos cinemas. Aos teatros. Aos bares. Às ruas. Ao anonimato. Ao trabalho. Às pessoas. À diversidade. 

Para as três mulheres de All We Imagine As Light, Mumbai também representava essa liberdade. Mas as expectativas delas não se cumpriram. Vieram das suas terras para trabalhar no hospital, mas continuam ligadas a tradições, presas por preceitos antigos, dependentes das decisões de outros. A enfermeira Prabha casou com um homem que mal conhecia, escolhido pela família, que depois foi morar a Alemanha e praticamente a abandonou - e no entanto ela mantém-se fiel a este casamento infeliz. A jovem Anu, também enfermeira, apaixonou-se por um muçulmano e namora às escondidas, enquanto os pais procuram um marido para ela e lhe mandam fotografias de pretendentes. A cozinheira Parvaty, a mais velha das três, ficou viúva e agora está em risco de ser despejada porque o marido não lhe deixou os documentos que comprovariam que a casa é dela. O dia a dia delas, entre o hospital e as casas modestas, é molhado - estamos em plena época das chuvas -  e barulhento mas ao mesmo tempo solitário. A cidade acolheu-as, mas não lhes permite serem livres. Só fora dali, quando Parvaty decide voltar para a sua terra e as amigas a ajudam na mudança, é que elas se vão conseguir encontrar a si mesmas. 

All We Imagine As Light é um filme de sensibilidade e poesia, filmado sem pressas, o que deixou algumas pessoas inquietas na sala de cinema, constantemente a olharem para o telefone. Mas é tão bom quando nos deixamos levar por um filme, quando nos permitimos abrandar e esquecer o mundo lá fora. E ficar só ali, a apreciar todos os detalhes. A música. Os silêncios. Um amor a nascer. Os pequenos gestos. A amizade entre três mulheres. Os olhos delas.

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publicado às 10:48

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Fui ver Anora no dia em que estreou, dia do meu aniversário. Uma matiné às duas da tarde no Nimas, a sala quase vazia, dois casalinhos jovens, uns quantos velhotes sozinhos. Entreolhamo-nos. Somos cúmplices. Somos os desocupados, aqueles que não têm mais nada que fazer numa tarde de sol a não ser enfiar-se numa sala escura, alheados do mundo. Quero lá saber. Gosto muito de ir a matinés, sobretudo durante a semana. 

A protagonista, Anora, ou Ani, como ela prefere ser chamada, é uma "dançarina exótica". Trabalha num clube nocturno onde faz conversa com os clientes, dança para eles, no colo ou no varão, sussurra-lhes aos ouvidos, insinua-se de todas as maneiras possíveis para que eles desembolsem mais umas notas. Eventualmente, quando os clientes lhe agradam, Anora trabalha também como prostituta fora dali. Nas primeiras cenas do filme é só isto que acontece. Anora e as outras raparigas dançam e despem-se e seduzem homens com profissionalismo enquanto mascam pastilha elástica, nas pausas conversam sobre coisas banais e comem em tupperwares. Com desprendimento. Anora é uma operária do sexo, sabe exactamente o que tem de fazer, cumpre a sua função, maquinalmente. E é uma durona, não permite que abusem dela. Tem tudo controlado. As coisas complicam-se quando aparece um puto milionário, russo, disposto a pagar muito para poder estar com ela em exclusivo. A determinada altura, o filme muda de tom. Deixa de ser sobre uma dançarina exótica e passa a ser sobre uma miúda que, afinal, tem sentimentos. Que, quando tira o uniforme do trabalho, se deixa iludir e enganar como todas as outras. Que ainda acredita no sonho da Cinderela. E também uma miúda que não sabe lidar com a simpatia das pessoas porque, provavelmente, sempre foi só um corpo disponível para transação, como se essa fosse a única maneira de se relacionar de forma segura com os outros.

Gostei de AnoraO filme, vecendor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, mistura uma carga emocional com momentos quase cómicos, insinuando mais do que mostrando (e não estou a falar só de sexo). O Jorge Mourinha lembrou Pretty Woman - Um Sonho de Mulher, embora o filme com a Julia Roberts desse uma imagem bastante mais romantizada dessa máquina de vender sonhos que é a prostituição. Realizado por Sean Baker, o mesmo de Florida Project, e protagonizado pela impressionante Mikey Madison, ao lado de Mark Eidelstein como Vanya, Anora surgiu à minha frente precisamente no momento em que andava a ler A Teoria do King Kong, em que Virginie Despentes fala, entre outras coisas, sobre a prostituição, a pornografia e a prisão masculina em que o desejo das mulheres ainda está encerrado. Como feminista de esquerda educada numa sociedade conservadora e moralista, não tenho certezas nenhumas sobre como olhar para a prostituição. Exploração ou libertação? É um trabalho como os outros? Legalizar ou não? Numa tentativa para entender melhor o que estava em causa, escrevi há tempos sobre isso AQUI e AQUI.  Ler a Despentes foi bom para me desassossegar, para me questionar, mas fiquei mais ou menos na mesma, ou seja, cheia de dúvidas. 

Anora, com o seu corpo perfeito e descomplexado, exalando sensualidade, ilustra bem aquilo de que fala Despentes: ela tanto pode ser vista como a depravada que vai para a cama com qualquer um e é criticada pela sociedade por ser uma puta, como a miúda desesperada que faz o que é preciso para sobreviver e até consegue a nossa empatia. Na verdade, ela pode ser as duas ao mesmo tempo. 

publicado às 09:33

Eu até estava em modo desligado, longe da actualidade, mas três notícias horríveis entraram pela minha semana de férias sem pedir licença: 

Em França, começou o julgamento de um homem que drogava a sua mulher para permitir que outros homens a violassem enquando ela dormia. O homem "publicitava" a mulher num fórum online cujos membros fantasiavam com sexo não consensual e depois filmava esses actos sexuais. Foram identificados pelo menos 72 homens, dos 26 aos 74 anos, que violaram (alguns mais do que uma vez) aquela mulher (lembrei-me desta história).  

Um canal de Telegram português é frequentado por cerca de 70 mil homens que partilham fotografias e vídeos de mulheres. Tem de tudo. Vídeos feitos na intimidade e fotografias tiradas na rua ou na praia. Imagens captadas com consentimento (mas não com consentimento para serem partilhadas) e imagens captadas às escondidas. Tem mulheres, jovens e até meninas. Como este, existem muitos outros canais e grupos, onde homens se sentem à vontade para expor e comentar mulheres que não fazem ideia que a sua imagem circula desta forma. Há homens que o fazem activamente, outros só vêem, mas nem por isso são menos culpados, uma vez que não só participam no grupo como nunca fizeram nada para pôr fim aos abusos.

A atleta Rebecca Cheptegei, do Uganda, morreu hoje, quatro dias depois de ter sido atacada com fogo pelo namorado: o companheiro regou-a com gasolina e incendiou-a, deixando-a com queimaduras em 80% do corpo. Ela acabou por não sobreviver. Tinha 33 anos.

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Foi no Uganda, podia ter sido noutro sítio qualquer. Em 2021, 81.100 mulheres foram assassinadas em todo o mundo, de acordo com dados da ONU. Entre todas as mulheres e meninas mortas intencionalmente, 45 mil, ou seja cerca de 56%, foram mortas por parceiros íntimos ou outros membros da família. No ano passado, em Portugal, 17 mulheres foram assassinadas em contexto de violência doméstica.

E é este o mundo em que vivemos. Um mundo onde homens maltratam e matam as suas companheiras. Onde homens não vêem problema em ter relações com mulheres inconscientes. Onde homens não respeitam a privacidade das mulheres. Onde homens fazem tudo para controlar e aprisionar as mulheres. Não todos os homens, claro, felizmente. Mas muitos. Muitos mais do que gostaríamos de admitir. 

Ainda dizem que ser feminista está fora de moda, que já não é necessário. Mas eu olho à volta e vejo tanto por fazer. Sobretudo no que toca à educação e à socialização dos rapazes e dos homens: para que percebam o que é errado, para que não repitam comportamentos tóxicos, para que não participem nestas atrocidades, para que denunciem os outros homens sempre que necessário. Onde é que estamos a falhar? 

publicado às 12:26

I

Houve por aí grande "polémica" (polémica entre aspas que isto as polémicas do twitter e dos articulistas dos jornais raramente interessa ou sequer chega à maioria das pessoas, é uma polémica numa bolha) sobre se se deve dizer mulher ou "pessoa que menstrua" ou "pessoa com útero". Os conservadores vão às aranhas e vêm logo com pedras na mão, ai a cultura woke, oh da casa, que é um ultraje. Mas não há motivo para tanto. De onde eu vejo isto é muito simples. As expressões não são sinónimas nem sequer equivalentes. Há alturas em que se deve dizer mulher, há outras alturas em que será mais correcto dizer pessoa que menstrua ou pessoa com útero. A sério. Não andámos aqui durante anos a lutar pela distinção entre sexo e género, a defender que as pessoas não se definem pelos órgãos que têm no corpo, para agora voltarmos tudo atrás.

Há pessoas (poucas, mas há) que menstruam ou que têm útero e que não são mulheres - estamos a falar de homens transgénero que não fizeram a transição ou de pessoas não-binárias.

Há mulheres (muitas, muitas mais do que se imagina) que não menstruam. Desde logo as raparigas, que são crianças ainda, sim, mas são mulheres no género. Depois, as mulheres que devido a algum problema de saúde não menstruam. As que usam métodos contraceptivos que inibem a menstruação. As grávidas. As mulheres trans. As que já estão na menopausa.

Portanto, haverá situações onde é importante saber que estamos perante uma pessoa que menstrua ou que tem útero, ainda que não seja uma mulher. Por exemplo, em contexto clínico essa informação é relevante. Lá porque se chama José e se apresenta como homem, é importante que os médicos entendam o seu corpo como ele é.

E há situações onde a palavra a usar é mulher e pronto. 

Eu sou uma mulher. Sem útero. Sem menstruação. Mas mulher. Era o que faltava permitir que uma cirurgia viesse definir aquilo que sou.

 

II

Quero agradecer a todas as pessoas que enviaram mensagens, que telefonaram, que quiseram saber, que mandaram miminhos, que partilharam comigo a sua história ou a história de mulheres que conhecem. É muito importante saber que não estou sozinha nisto. É muito gratificante perceber que as palavras que escrevo aqui fazem sentido para outras pessoas. E fico muito feliz se contribuí, ainda que de forma ínfima, para que alguma mulher se sinta mais acompanhada ou mais confiante para poder abordar este tema com o seu médico.

Algumas pessoas ficam surpreendidas e perguntam-me como é que consigo falar de coisas tão íntimas, se não tenho vergonha de me expor. O que posso dizer? Não foi sempre assim, mas cada vez me preocupo menos com o que é que as outras pesssoas pensam de mim. Acredito verdadeiramente que é muito importante falarmos abertamente sobre estes e sobre todos os assuntos. Temos mesmo que perder a vergonha que nos impingiram ao longo de séculos de patriarcado. Até porque, se pensarmos bem, não há motivo nenhum para ter vergonha. 

Entretanto, a médica diz que está tudo a correr bem e que posso retomar a minha vidinha normal, ainda que com alguns cuidados. Parece que sempre vou conseguir aproveitar uns dias de praia antes do famigerado regresso às aulas. Só o Bandido vai ter saudades dos dias no sofá.

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publicado às 11:35


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