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Já passaram algumas semanas mas não queria deixar de escrever sobre O Sol do Futuro, o filme de Nanni Moretti. Não é um filme extraordinário. É um filme imperfeito, como são geralmente as comédias do Moretti. Comédia dramática é como lhe chamam. Não é daqueles filmes em que se dê grandes gargalhadas. Fica sempre ali no limite entre o isto tem graça, isto é só parvo, isto é muito triste. Ainda assim, eu gostei bastante. 

Palombella Rossa, de 1989, abria com um acidente de carro. Michelle (interpretado por Moretti) perdia a memória. Quem sou eu?, perguntava-se. "Ah, eu sou um comunista". Não vi nenhum filme anterior dele mas sei que, pelo menos a partir daí, o debate sobre a relevância do comunismo e sobre o que é ser comunista é uma constante nos filmes de Moretti.

Destaque para dois documentários:

A Coisa (1990) reúne intervenções de comunistas italianos durante os debates que aconteceram em várias secções do partido, após a queda do Muro de Berlim e do Bloco de Leste e depois de o secretário-geral do PCI, Achille Occhetto, ter defendido uma remodelação do partido, mudando o nome e os símbolos, para acompanhar a nova realidade. A desilusão dos velhos comunistas italianos, as memórias da resistência ao fascismo, as perguntas que ficam sem resposta, a defesa dos trabalhadores e de um ideal que, apesar de tudo, parece continuar a fazer sentido - o filme é um documento interessantíssimo sobre aqueles tempos.

Santiago, Itália (2018) viaja até ao Chile de Allende, breve experiência de socialismo que termina com o golpe de estado de 11 de setembro de 1973. Com muitas imagens de arquivo e os relatos de um grupo de entrevistados que, percebemos depois, são todos antigos militantes da esquerda que, depois de prisões e torturas e percebendo que a ditadura estava só a começar, acabam por se refugiar na Embaixada de Itália e, finalmente, ser extraditados para Itália como refugiados políticos. 

Dos filmes de Moretti que vi, os meus preferidos são O Quarto do Filho (2001) e Três Andares (2021) que são, precisamente, aqueles que não são comédias e que têm menos política e mais família (cada pessoa tem as suas manias, não é?).

Mas, se olharmos para Palombella Rossa (1989), Caro Diário (1993), Abril (1998) e este O Sol do Futuro (2023), é muito fácil encontrar pontos de ligação. Antes de mais, porque as personagens interpretadas por Moretti são uma espécie de alter-egos do próprio realizador. Umas vezes mais assumidamente autobiográficas (como em Caro DiárioAbril), outras vezes menos, mas temos sempre ali um pouco de Moretti com os seus interesses, as suas dúvidas. Fazendo lembrar um pouco Woody Allen, até pela torrente de discurso atabalhoado e pelo tom auto-depreciativo, só que com questões muito diferentes. A política e o cinema são os seus temas de eleição, a política, o cinema e a vida misturam-se nos filmes como se misturam na vida de Moretti. Contaminam-se. Em Abril assistimos à chegada de Berlusconi ao poder. Nanni quer fazer um documentário sobre a campanha eleitoral mas, ao mesmo tempo, está a acompanhar a gravidez de Sílvia e o nascimento do seu filho, Pietro. A sua atenção dispersa-se. O pessoal e o político confrontam-se. 

É também engraçado ver como Moretti envelhece no ecrã, um filme a seguir ao outro, e como as suas questões se mantêm ou se alteram. Podemos comparar a crise existencial da personagem do realizador de Abril com a crise existencial de Giovanni, a personagem do realizador de O Sol do Futuro. Neste, Nanni (diminutivo de Giovanni) assume quase o papel de um "velho do Restelo", que não entende como os jovens fazem cinema nem se quer vender à Netflix. Com um "realizador em crise", com Margherita Buy e Silvio Orlando, actores que conhecemos de outros filmes de Moretti, com momentos musicais e uma grande parada final com todas as personagens, O Sol do Futuro dá-nos uma certa sensação de déjà vu. A acção passa-se em 1956, durante a invasão da Hungria pela URSS, que o PCI apoia. Voltamos a ter um confronto entre pessoal e político. Que espaço para as pessoas e que papel para as ideias individuais num partido comunista? Afinal, o partido somos nós ou temos que nos sujeitar às decisões da cúpula? 

Desta vez, talvez cansado de tanta desilusão, Moretti decide alterar o final da história e fazer da utopia realidade. Se não é para isso que serve ser o realizador do filme, então é para quê? Há uma ingenuidade grande naquele final povoado de bandeiras vermelhas, é verdade. Mas não nos enganemos: Moretti sabe que aquilo é um exercício de ficção sobre um futuro que poderia ter sido. Que está a mudar o passado porque não pode mudar o presente. É por isso que aquela alegria é também um bocadinho triste.

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publicado às 09:50

Não sei bem que dizer. Quando o terror é imenso perdemos as palavras, não é? Nestes últimos dias tenho tentado fazer algumas leituras, preencher algumas lacunas que ainda há pouco admitia aqui, quando escrevi sobre a Golda. Ainda assim, tudo o que possa dizer é de uma enorme banalidade. Toda a violência é terrível mas a violência sobre civis, inocentes, é sempre pior. Porque odiamos?, volto a perguntar. Não tenho respostas. Surpreendem-me muito as pessoas que tomam posições muito convictas sobre este conflito (e sobre outros também, mas sobre este especificamente). A mim sobram-me as dúvidas. 

Deixo algumas pistas:

Falei com a Nofouz, 23 anos, estudante de medicina, da Cisjordânia. É só um lado da história, claro. A mim tocou-me muito.

Uma fotogaleria da Palestina antes de ser Israel, que me fez olhar para trás. As fotos são maravilhosas mas o que ali está é o retrato de uma região colonizada.

"Somos todos animais", um texto da Alexandra Lucas Coelho, que tem dito coisas que me fazem muito sentido.

A Isabel Lucas escolheu alguns livros que poderão ajudar a entender o que se passa na Palestina. Também há uma selecção de filmes, escolhidos pelo Palestine Film Institute.

Também podem ir (re)ler e (re)ouvir a série de reportagens que o Fumaça fez em 2017: "Palestina: Histórias de um país ocupado".

Com tantas imagens horríveis que nos chegam, lembrei-me da Susan Sontag e do seu "Olhando o sofrimento dos outros". Nunca o li todo, confesso, talvez seja este o momento certo.

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Palestinianos procuram sobreviventes após mais um bombardeamento na Faixa de Gaza (AP Photo/Abed Khaled)

 

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"Tragam-nos para casa". Em Telavive, uma mulher apela à libertação dos reféns israelitas (AP Photo/Petros Giannakouris)

 

(e, não sei se repararam, mas de repente deixámos de falar da Ucrânia. a guerra continua lá mas é como se já não estivesse a acontecer. isto devia tanto fazer-nos reflectir.)

 

publicado às 11:29

A 6 de outubro de 1973, o estado de Israel foi atacado pelo Egipto e pela Síria, que aproveitaram o facto de os judeus celebrarem o seu mais importante feriado, o Yom Kippur. As principais actividades militares aconteceram na Península do Sinai e nos Montes Golan. Apanhado de surpresa, Israel demorou a reagir. Durante os 20 dias que durou a guerra do Yom Kippur, como ficou conhecida, Israel perdeu perto de 2.800 militares. Mais de 8.000 ficaram feridos. 293 israelitas foram feitos prisioneiros. O país perdeu ainda perto de mil tanques, mais de 100 aviões e dois helicópteros. As estimativas para as perdas do lado árabe são ainda mais terríveis, referindo-se cerca de 16 mil mortos, 35 mil feridos e 9 mil prisioneiros. Apesar de, no final, Israel ter conseguido travar a ofensiva e repor as suas fronteiras, a guerra iria manchar a reputação da primeira-ministra, Golda Meier. Acusada de falta de preparação e de não ter conseguido reagir com maior rapidez, o que poderia ter impedido os avanços iniciais dos árabes e reduzido drasticamente o número de baixas, a primeira-ministra foi ilibida pela Comissão Agranat, que investigou a sua responsabilidade nas falhas na defesa. Apesar disso, Golda acabaria por resignar em abril 1974. Morreu em 1980, devido a um linfoma.

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Não percebo muito do que se passa em Israel, com muita pena minha. Sei o básico sobre a diáspora dos judeus, expulsos da "Terra Santa" séculos antes de Cristo, e sobre o sionismo, o movimento que, desde o século XIX, defendeu a criação, nesse local original, de um estado para os "filhos de Israel". Golda Meier era sionista.  Nascida na Ucrânia em 1898 e educada nos Estados Unidos, mudou-se para a Palestina em 1921, para morar num kibbutz e participar na vida comunitária e, mais, tarde, instalou-se em Jerusalém, onde iniciou a sua carreira política. Defendeu os refugiados judeus durante a Segunda Guerra Mundial e foi uma das duas mulheres que, em 1948, assinaram a declaração da fundação do estado de Israel. A partir daqui tudo me parece demasiado confuso. Os estados árabes vizinhos nunca aceitaram o novo estado e seguiram-se diversos conflitos armados, nos quais se disputaram quilómetros de território e se redefiniram fronteiras. Nascido em grande parte da culpa ocidental, após o Holocausto, Israel acabou por se tornar (e cada vez mais) um país pouco democrático, excessivamente militarizado e com práticas humanitárias muito duvidosas no que toca ao tratamento da comunidade palestiniana.

A nós, portugueses, no nosso cantinho da Europa sem grandes chatices desde o século XII (houve os espanhóis e os franceses, pois sim, mas nada a ver), pode parecer-nos um pouco estranho que povos vizinhos se odeiem tão visceralmente por causa de diferentes religiões e diferentes etnias, que se matem por uns metros de terra a que possam chamar seus. E, no entanto, isto acontece ainda hoje na Ucrânia, no Nagorno-Karabakh, em Israel, em tantos outros sítios do mundo. Valerá tudo isto a pena?, é sempre o que me pergunto. Este ódio, estas mortes farão sentido?

Para Golda esta seria seguramente uma não-questão. A guerra impõe-se. Não admite recusas. 

50 anos depois do início da guerra do Yom Kippur, chega aos cinemas Golda, o filme realizado por Guy Nattiv e protagonizado por Helen Mirren, que retrata este período. Aqui encontramos Golda, figura imponente, cara enrugada, poucos sorrisos. Os cabelos brancos apanhados. O cigarro permanentemente acesso. Cigarros atrás de cigarros. Uma mulher doente, mas que não se queixa. Uma mulher habituada a tomar decisões mas, ainda assim, com dúvidas. Implacável com o inimigo mas que sofre com as mortes dos seus soldados, sofre pelas mães que perdem os seus filhos. 

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O filme não nos dá muitas informações biográficas, o que é uma pena, na minha opinião, porque me parece que ela teve uma vida e tanto. Não é tanto um filme sobre ela quanto um filme sobre ela nesta situação. Uma mulher à frente do seu país. Uma líder num momento de crise. Que cozinha bolos para as reuniões com os ministros do seu governo, onde decide ataques mortais. Que recebe Kissinger, o secretário de Estado norte-americano (interpretado por Liev Schreiber), na cozinha e o obriga a provar o borscht feito pela empregada, enquanto negoceiam aviões de guerra. 

Fez-me lembrar um pouco A Hora Mais Negra (2017) que mostrava Churchill em 1940 quando as tropas alemãs encurralavam as tropas britânicas em Dunquerque e o parlamento exigia a demissão do primeiro-ministro acusando-o de estar a ser demasiado brando com os nazis. 

A escolha de Helen Mirren foi criticada por alguns sectores que preferiam ver uma actriz judia no papel. Polémicas à parte, Mirren é uma excelente actriz e consegue, por baixo de todas as camadas de caracterização, fazer uma óptima interpretação de Golda. No entanto, apesar de alguns momentos bem conseguidos, o filme acaba por ser bastante repetitivo, com os seus mil planos de mapas, cinzeiros cheios e cigarros a arderem. É uma pena, porque, como já devem ter percebido, este é um tema que me interessa e eu queria mesmo ter gostado mais.

publicado às 23:20

Apanhei por acaso o filme O Pianista, de Polanski, na televisão. Nunca tinha visto O Pianista, o que é algo bastante incompreensível. Por causa do filme e porque estive a corrigir um trabalho do meu filho sobre o Hitler, voltei a deparar-me com as explicações, as descrições e as imagens da Segunda Guerra Mundial. Fico sempre transtornada. Pensar que aquilo aconteceu há tão pouco tempo, que aconteceu aqui tão perto. Por mais que já tenha visto e lido e pensado sobre este tema, a maldade dos homens não pára de me surpreender e de me entristecer. Podia dizer o mesmo sobre outros acontecimentos, outros conflitos, outras atrocidades, claro. É tudo horrível. Ainda no outro dia estava a ver o A Oeste Nada de Novo, sobre uma guerra mais antiga, e a revolta a crescer cá dentro. Sinto o mesmo ao ver as notícias e as imagens da Ucrânia, no nosso tempo. Uma incompreensão enorme, um ódio pelos senhores da guerra, o medo. Sim, o medo. E esta sensação de que não aprendemos nada, de que não existe um fio da história, existe um emaranhado de fios e estamos sempre a voltar atrás.

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Ontem, li esta notícia sobre um bailarino ucraniano, Rostyslav Yanchyshen, que morreu a defender o seu país. Talvez um dia façam um filme sobre ele como fizeram sobre o pianista  Wladyslaw Szpilman.

Evito ver muitas notícias sobre a guerra porque me perturbam imenso. Não consigo não imaginar como será de repente o nosso país estar em guerra. De um dia para o outro. Porem-te uma espingarda na mão e vai lá matar o inimigo. Ver a nossa cidade destruída. Ter de fugir. Não ter o que comer. Ver as pessoas de que gostamos a morrer. Há mais de um ano que vivo com este sentimento de que não estamos seguros.

Não era nada sobre isto que tinha pensado vir aqui escrever hoje. Até nem ando infeliz com a vida, nem nada disso. A culpa é d'O Pianista. Devia ter ido a ver o novo filme da Disney para entrar no grande debate do momento sobre de que cor é verdadeiramente a pele das sereias, em vez de me pôr a pensar na guerra.

publicado às 10:26

No 25 de Abril de 1974 eu já andava por aí, na barriga da minha mãe. Nasci em liberdade e tenho muita noção do quão privilegiada sou por isso. Cresci a ouvir as histórias dos meus pais e dos meus avós, a saber da fome e do medo, da guerra e da opressão, da pobreza e da falta de perspectivas de futuro. Cresci sabendo que comigo seria diferente. Que na minha escola todas as crianças tinham sapatos nos pés. Que votar no dia das eleições é um direito, um dever e uma enorme alegria. Que podia discordar. Sou filha da escola pública e do serviço nacional de saúde, da Comunidade Económica Europeia e dos sonhos que se poderiam realizar: "Não somos ricos nem temos cunhas, mas se estudares e trabalhares podes ser o que tu quiseres", disse-me o meu pai. Eu estudei e trabalhei e aqui estou. Sou o que quero (e se não sou mais é porque não soube sê-lo). 

Há dias em que isto faz tudo sentido.

Nos últimos dias andei a recolher testemunhos de pessoas muito fixes sobre o significado pessoal desta data.

Ontem estive no Palácio de Queluz a ver o Chico Buarque a receber o Prémio Camões e tive que me controlar para não deixar cair uma lagriminha. 

Hoje, irei descer a avenida, encontrar amigos e dar abraços. 

Gosto muito do dia 25 de Abril. Estou geralmente feliz. Emociono-me de todas as vezes que ouço o "Grândola". Sorrio sempre ao ver as imagens dos militares nas ruas, da multidão em êxtase, dos cravos. Sinto uma enorme gratidão e ao mesmo tempo o receio de que tudo isto seja demasiado frágil, às vezes tenho a sensação de que não estamos a cuidar tão bem quanto deveríamos da nossa democracia. Pergunto-me se faço o suficiente. 

Esse questionamento também é uma das heranças do 25 de Abril.

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Populares saudam os militares no dia 25 de Abril 

publicado às 08:58

"Não há dúvidas de que o comunismo foi uma época terrível para a Rússia, mas o que temos hoje ainda é pior", escreveu Anna Politkovskaya em 2004. Pouco depois, em 2006, a jornalista russa foi assassinada à porta de casa. Tinha 49 anos e dedicara grande parte da sua carreira a denunciar as atrocidades e as injustiças cometidas no seu país, em particular na Chechénia. O livro A Rússia de Putin foi publicado em Portugal no ano passado e é um documento incrível e uma premonição. Estava lá tudo. O fim do comunismo e a tentativa fracassada para construir uma democracia. O poder enorme dos olicargas e das máfias. O desprezo de Putin pelo seu povo. A guerra como forma de manter o poder. A ambição desmedida. A corrupção incrustada na sociedade. A lei do mais forte. Os líderes ocidentais a fecharem os olhos e a darem apertos de mão, porque também lhes convinha. A pobreza das pessoas. O desalento. E, por fim, a necessidade de denunciar, de continuar mesmo sabendo - porque tinha que saber, porque ela própria contou essas histórias - que quem desafia o poder põe a sua vida em risco.

A luta contra a corrupção e por uma democracia do povo era a bandeira de Alexei Navalny. O advogado e político russo, da oposição, seria o maior concorrente a Vladimir Putin nas eleições presidenciais. Mas foi preso várias vezes e foi alvo de uma tentativa de assassinato, por envenamento, em agosto de 2020. O documentário Navalny, que está disponível na HBO e que está nomeado para um Óscar, encontra-o precisamente durante a recuperação, na Alemanha. Apesar de estar longe de casa, Navalny e a sua equipa continuaram a fazer oposição, determinados em fazer com que o mundo soubesse a verdade sobre a Rússia e sobre Putin, convictos de que o apoio internacional poderia evitar o pior. Talvez tenha sido assim: Navalny foi novamente preso no momento em que aterrou na Rússia e, desde então, tem sido certamente torturado e mal tratado de muitas formas; mas não foi morto. O documentário termina com a sua prisão, a 17 de janeiro de 2021, com as imagens incríveis de uma multidão que o esperava feliz mas acabou a levar bastonadas, com os telemóveis a gravarem a detenção de um cidadão apenas porque criticava o governo e denunciava os abusos de poder.

Passa hoje um ano sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Uma guerra que está longe de terminar. E se há coisa que este livro e este filme deixam bem claro é que esta guerra não foi uma surpresa para quem acompanhava o que se passava na Rússia. E é por isso que quase todos os líderes ocidentais são culpados disto que veio a acontecer - por terem sido coniventes com uma ditadura, por não terem sabido impor os limites quando deveriam tê-lo feito. Já vimos isto acontecer antes, que nos sirva de lição para o futuro. Com ditadores não pode haver diálogo.

Hoje é um dia bom para ler jornais e para percorrer os sites de informação. Há muita coisa boa para ler e para ver. Escolham bem as vossas fontes de informação e aproveitem. Há muitas histórias bem contadas, histórias de pessoas reais, de gente como nós que foi apanhada no meio de uma guerra. De gente que poderemos vir a ser nós, um dia destes.

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Mariupol, 9 de março de 2022

Fotografia de Evgeniy Maloletka/AP

publicado às 10:27

Quem vir o meu Instagram há de achar que a minha vida é um rodopio de comidas e festas, de espectáculos e passeios. É a chamada ilusão das redes sociais. Gosto de guardar naquele cantinho as coisas boas que me acontecem, algumas publicações quase sem explicação para os outros, só pequenas dicas para mim, para que um dia mais tarde, ao olhar para as imagens, me consiga lembrar: foi neste dia que estive com esta pessoa, foi neste sítio que me senti feliz. Um pouco como sempre fiz com os meus álbuns de fotografias, os meus álbuns que ultimamente tenho desleixado (mas ainda não perdi a esperança, ainda vou organizar estes últimos anos todos em álbuns, ainda vou!). Tenho esta pequena obsessão com a memória. Esta vontade de guardar tudo. Não coisas, não objetos. Guardar os pensamentos, os sentimentos, as sensações, as pessoas, os sítios, as vivências. E é também por isso que venho aqui escrever, talvez não tanto como gostaria, às vezes mesmo só porque sim, porque sei que a memória nos prega partidas e que, se não apontar aqui ou não publicar no Instagram, é provável que me esqueça e eu não quero esquecer a alegria que foi aquela noite com a Angel Olsen, ou aquele jantar com amigos, a maravilha do documentário sobre a Cesária Évora, a corrida para chegar horas ao "Perfect Match" dos Hotel Europa, o cansaço extremo que quase me fez sentar no chão a meio do concerto dos Bon Iver.

É que, feliz ou infelizmente, a vida não é só Instagram. A vida também é trabalhar, limpar a casa, dobrar meias, ir ao supermercado, fazer comida, arranjar marmitas, zangar-me com os putos, orientar estudos, pagar contas, ligar ao canalizador, mudar a areia do gato, ter insónias, pôr o despertador para as 6:30, arranjar ainda mais trabalhos. Há dias (semanas) em que julgo que não vai ser possível fazer tudo. Que me dói o ombro por causa das muitas horas ao computador. Que os olhos quase se fecham a meio de um texto que tenho de escrever. Que estou tão cansada que vai tudo corrido a pizzas e hambúrgeres e os putos começam a queixar-se que não têm roupa lavada. Que me vejo tão aflita que, mesmo com bilhetes comprados, só me apetece ficar embrulhada numa manta no sofá. Aconteceu-me na terça-feira. Atolada em trabalho, com o corpo moído e a cabeça feita em água, tive que inventar forças que não tinha para vestir um casaco e me meter no metro.

Ainda bem que fui.

E venho aqui escrever porque não quero mesmo esquecer a felicidade que senti por me ter sentado, numa cadeira apertada lá no cocuruto, num Tivoli lotado para ouvir as palavras sábias da Angela Davis e da Gina Dent. Angela, americana de 78 anos, militante de esquerda, anti-racista e feminista, pela igualdade de todos e pelos direitos civis, e, também, abolicionista. Gina Dent, que eu não conhecia até há poucas semanas, investigadora, activista e parceira de Angela. Que duas mulheres maravilhosas. Sensatas. Inteligentes. Curiosas. Atentas. Claras. Num mundo povoado por estrelas que vêm a "summits" debitar "talks" mil vezes repetidas e ensaiadas, é inspirador ouvir duas pessoas que têm tanto para dizer mas que também páram para ouvir, que perguntam, que querem saber. Que não mandam bitaites, apoiam-se em investigação. Que duvidam e põem-se a si mesmas em causa. E até dou de barato que tenham ideias polémicas ou utópicas. A igualdade e a liberdade para todos são, ainda, utopias. Imaginar um mundo sem sistema prisional e policial é de, facto, muito complicado, para nós que estamos aqui muito bem instalados na nossa vidinha, achando que as coisas são como são e pronto. "As prisões foram tão naturalizadas que nem pensamos que poderíamos existir sem elas", alertou Angela Davis. Mas, se não imaginarmos e se não pensarmos o que é que teremos de fazer para que a abolição seja possível, então é que nunca irá acontecer. 

Angela Davis e Gina Dent lembraram que as prisões não existiram sempre. E é até engraçado perceber como as prisões surgiram como alternativa positiva em relação àquilo que existia antes: a condenação à morte ou os castigos físicos violentos. As prisões eram o sítio onde os criminosos esperavam pela condenação e passaram a ser a própria pena. Ela explica isso no livro Estão as prisões obsoletas?. Isto é tudo muito recente. Foi preciso primeiro estabelecer o direito universal à liberdade para que se considerasse que tirar a liberdade a alguém poderia ser um castigo em si mesmo.

Depois, questionaram: para que servem as prisões? Unicamente para castigar? Não. As prisões servem também, alegadamente, para manter as sociedades mais seguras. Para que a violência desapareça das nossas vidas. E estamos a conseguir cumprir esse objectivo? Nem por isso. "Se estamos a dar uma resposta a um problema, e falhamos, porque é que insistimos nessa resposta?", interrogou Angela Davis nessa noite.

"Há quem acredite que as prisões são sítios violentos porque os presos são violentos, mas na verdade as prisões são locais violentos por causa da violência do sistema prisional." A violência do encarceramento. A violência da força policial. A violência da existência de armas, da linguagem usada, das regras estabelecidas. E ainda sublinhou um outro facto: apenas uma pequena percentagem de pessoas está presa por crimes violentos. A maioria está presa por delitos menores, por reincidir, por desrespeito a regras (por exemplo, da imigração).  

Perguntemo-nos, então: o que estamos a fazer - a nível social, educacional, cultural, político, económico, da saúde mental, da integração, da responsabilidade social - para prevenir a ocorrência desses delitos? O que estamos a fazer para reabilitar e reintegrar as pessoas que já passaram pela prisão, para que não voltem? Acreditamos mesmo que o nosso sistema prisional não se limita a ser punitivo, é também um sistema de empoderamento e de melhoramento dos indivíduos?

E podemos ir ainda mais longe, como ela vai: "Há pessoas que quando nascem já estão condenadas à prisão, são criminosos à nascença", disse. Porque existe o contexto e a desigualdade e todas as circunstâncias que nos moldam e condicionam. Porque nem todos os que cometem o mesmo crime têm a mesma pena. Porque existem crimes em relação aos quais somos mais condescendentes. Porque existem as questões raciais, culturais, de género, de nacionalidade, de classe. Porque existe a injustiça, o preconceito, o abuso de poder. 

Por fim: as prisões existem e são cada vez mais e estão cada vez mais cheias porque existe um "sistema industrial de prisões", as prisões são já parte do capitalismo - dão lucro, dão emprego, fazem a "máquina" funcionar. É difícil acabar com as prisões da mesma forma que é difícil acabar com os combustíveis fósseis ou com a exploração laboral - porque há muita gente com muito a poder a ganhar muito dinheiro com isto.

Se calhar, disseram elas, "temos que repensar o que significa sentirmo-nos a salvo (safe) e sentirmo-nos em segurança (security)". Se calhar,  temos que nos perguntar como é que lidamos com os problemas criados pelo capitalismo e em que mundo queremos viver? Se calhar, "não é preciso só abolir as prisões, é preciso criar uma nova sociedade, é preciso uma revolução". E, sim, sabemos que não vai acontecer já, mas podemos imaginar como é que seria viver num mundo assim, sem prisões, sem polícias, sem exércitos, sem guerras, sem armas, e podemos tentar começar por algum lado.

E eu nem estou a dizer que concordo com tudo o que ouvi. Teria que pensar mais amadurecidamente sobre o assunto para poder defender a abolição das prisões. Mas é tão bom questionar ideias feitas, é tão bom pensar e duvidar e procurar soluções. Sim, ainda bem que fui. 

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Estes são os livros que tenho de Angela Davis. Comprei propositadamente mas acabei por não conseguir ler o Abolition. Feminism. Now., porque me meti em trabalhos e tenho mesmo andado muito ocupada, mas, depois disto, fiquei ainda com mais vontade de lê-lo.

Se quiserem, podem ver a sessão com Angela Davis e Gina Dent AQUI.

publicado às 20:20

Fomos passar o fim-de-semana a Sevilha. Fomos - eu e um grupo de amigas. Foi espectacular. Por estarmos juntas. Pelas conversas e pelas partilhas e pelas gargalhadas. Porque é muito fixe ver como esta amizade entre seis pessoas tão diferentes e tão parecidas tem evoluído. Porque é bom ter pessoas que são casa. Eu já tinha algumas pessoas assim e, nos últimos anos, ganhei mais estas pessoas-casa e sinto uma enorme alegria por isso. Foi muito fixe também porque comemos maravilhosamente e passeámos e porque (do pouco que vi) achei Sevilha uma cidade muito bonita. Agradável, animada e com poucos carros. Num momento em que em Lisboa se discute tanto esta questão, foi bom passear no centro de Sevilha com tantas ruas sem carros. Não são uma nem duas, são muitas. Ruas largas, ruas estreitas, ruas antigas, ruas novas. E não há carros a passarem nem carros estacionados em cada canto nem carros de pessoas que vão só ali e já vêm nem carros de lojistas nem carros de moradores nem carros de ninguém. Há eléctricos e bicicletas e trotinetes e pessoas a andarem a pé. Muitas pessoas na rua, muitas lojas, muita vida. Todo o centro sem carros. Acho que o Moedas devia ir lá, e os seus acólitos também. Para verem que é possível. Que até pode ser difícil ao início, que é preciso garantir que os transportes públicos funcionam e é preciso todo um trabalho de educação para o civismo mas, sabem, não é assim tão complicado não chegar de carro até à porta da Louis Vitton ou da escola ou do escritório ou do cinema ou do que for. E que é bom passear e parar numa das muitas esplanadas, aproveitando o silêncio e o ar puro.

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publicado às 18:18

Sempre que vou à Avenida da Liberdade no 25 de Abril encontro amigos. São encontros inesperados. Olha, tu, aqui. E é uma festa. Amigos que já não via há que tempos e que me aparecem à frente de braços abertos. No meio daquela gente toda, encontramo-nos. São esses momentos que me fazem acreditar que isto tudo há-de ter um sentido. Que o sentido disto tudo talvez seja só dar abraços e sorrir de felicidade por estarmos nisto juntos. E por nos emocionarmos, todos os anos, a cantar o Grândola. 

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publicado às 11:53

06
Mar22

Ucrânia

É muito simples, diz o Miguel Esteves Cardoso: "Há dois países em causa: a Rússia e a Ucrânia. A Rússia agrediu a Ucrânia. A Rússia é maior e mais forte do que a Ucrânia. E a Ucrânia está sozinha."

Podemos discutir tudo, os motivos ou a falta deles, a história, o papel dos EUA e da NATO, podemos lembrar outros conflitos, outras batalhas, outras injustiças, podemos chamar a atenção para a propaganda e a retórica que para aí anda em torno de heróis e da coragem de um povo, podemos sempre manter o espírito crítico e estar alertas para a desinformação, mas daí a defender o Putin e a invasão já me parece que vai um passo de gigante. Os ímpetos imperialistas do presidente russo são bastante assustadores.

Não há guerras boas. Nem que seja porque em todas as guerras as principais vítimas são inocentes. Num momento como este, a empatia é talvez um dos sentimentos mais importantes. Lembrem-se: podíamos ser nós. Podíamos ser nós em Donbass, onde a guerra já começou em 2014. Podíamos ser nós em Kiev ou no resto da Ucrânia, a ter medo, a morrer, a lutar, a fugir. Podíamos ser nós na Rússia, a sentir vergonha e impotência perante o poder. Podíamos ser nós, jovens de 20 anos, em qualquer dos lados da fronteira, obrigados a combater. Podíamos ser nós na Polónia, a receber meio milhão de refugiados numa só semana. 

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Foto de Vadim Ghirda (AP)

A propósito:

Lembrei-de da série Why We Hate? - porque odiamos? 

Não sei muito sobre a história da Ucrânia. Aprendi algumas coisas ao ler a biografia de Clarice Lispector, de Benjamin Moser.  Toda a primeira parte, sobre a família, ajuda a perceber o que aconteceu ali no início do século XX. Aqui estão alguns livros sobre a Ucrânia (e mais aqui) que podem ajudar-nos a contextualizar sem serem demasiado complexos.Também podemos ler os livros da jornalista bielorrussa Svetlana Alexievich, alguns estão traduzidos em português, que nunca é tempo perdido.

O Guardian também fez uma lista com 20 filmes que podem ajudar a entender o que se passa na Ucrânia. Infelizmente, não são fáceis de encontrar. Estive a rever o documentário Winter on Fire (na Netflix) sobre a ocupação e os conflitos na Praça Maidan, em 2013. Talvez fosse uma boa altura para as televisões passarem os filmes do Sergei Loznitsa. Fica a ideia. 

E um conselho: procurem fontes de informação fidedigna. O Twitter pode ser muito útil mas é importante verificar a origem das informações. É muito fácil deixarmo-nos levar pelas emoções, pelos likes e pela partilha rápida. Duvidem. Questionem. Procurem. Recuem. Parem para pensar. Este conselho é para todos mas sobretudo para os jornalistas.

publicado às 11:06


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