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Estávamos mesmo a precisar disto. Desde 10 de março que estávamos a precisar disto. De sentirmos que somos muitos, que estamos aqui e estamos juntos nesta luta. De dizermos: não esquecemos. De dizermos: não passarão. Não tem a ver com ser de esquerda ou ser de direita, tem a ver com defender a democracia, a liberdade, os direitos de todos. O que aconteceu ontem foi bonito e emocionante. Uma Avenida cheia como nunca tinha visto. Milhares de pessoas, quantas seriam?, tão diferentes. Tão coloridas. Tão felizes. Tão determinadas. Cantámos e abraçámo-nos e gritámos juntas: fascismo nunca mais.
A luta continua.
Sei que não é suficiente, mas, para já, contribuo como posso, ou seja, escrevendo:
Trabalhei muito, muitos dias seguidos, muitas horas para além da hora. E depois passei muitas horas de pé na noite de 24 e no dia 25. A celebrar. Hoje sinto-me como se tivesse sido atropelada por um camião. Mas valeu a pena. Afinal, não é todos os dias que podemos celebrar os 50 anos da nossa democracia, não é?
"Estás bem?", uma pergunta tão simples, talvez a pergunta que mais vezes fazemos uns aos outros, "Está tudo bem?". É, na maior parte das vezes, uma pergunta inconsequente, ninguém quer saber realmente se estamos bem, e por isso respondemos de forma mecânica, "Tudo", e seguimos com a conversa sobre o tempo, sobre o trabalho, sobre os filhos, sobre as eleições, o que for. Mas o que responderíamos se quiséssemos ser verdadeiramente honestos? Estou bem? Mesmo que não esteja "tudo bem", que nunca está tudo bem, estamos bem? Estou bem, digo a mim mesma. Se reflectir um pouco, se pesar os pratos da balança, se der o devido valor às coisas que me irritam e entristecem (valem assim tanto?), se quiser ser verdadeira, tenho que dizê-lo: estou bem. A vida não é a preto e branco. Os dias muito bons sucedem-se a dias muito maus que se sucedem a dias mais ou menos. No mesmo dia, temos coisas óptimas a acontecerem-nos e coisas que nos deprimem. Não é assim com todas as pessoas? Estou bem.
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Fiquei muito deprimida com os resultados das eleições. Ainda estou deprimida com isto tudo. Há muitas coisas na minha vida de todos os dias que não são perfeitas, mas tudo fica pior porque tenho que ver televisão e acompanhar as notícias relacionadas com a extrema-direita. Ouvir AV a toda a hora, as suas mentiras, os seus joguinhos, aquela retórica populista, a sua extrema falta de educação e falta de respeito por nós todos tem sido um grande foco de tristeza e desesperança. Por outro lado, existe também uma vontade de agir e reagir, partilhada por algumas pessoas à minha volta. Não sabemos ainda como, quando, onde, mas sinto que temos a responsabilidade de fazer alguma coisa.
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Já quase ninguém escreve nos blogues. Eu própria quase não escrevo no blogue. Não temos tempo, não temos paciência, assim como assim ninguém lê, pois não? Somos cada vez mais descartáveis. O Facebook está praticamente morto. O Twitter é um ninho de víboras, pessoas desejosas de dizerem coisas, seja o que for, desejosas de provocar reacções. No Twitter sou apenas observadora, mas o Instagram transformou-se no meu álbum de fotografias e memórias. O Instagram, como bem escreveu a Gabriela (que também se lamenta por escrever cada vez menos, e é uma pena), é aquela "rede social onde os mais novos só deixam 'histórias' efémeras e os mais velhos registos vários para a posteridade. É muito isto que nos diferencia, parece-me. Instagrams que vivem de marcas que permanecem e os outros, que têm zero publicações, mas inúmeras histórias que as 24 horas apagam". Eu sou da permanência ("é urgente permanecer", diz o poema de Eugénio de Andrade). A mim faz-me falta a escrita. Faz-me falta escrever-me. Não me tenho sentido suficientemente livre para fazê-lo, não sei como explicar-vos. Tenho de pensar melhor nisto.
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Emocionei-me muito a ver Um Mini Museu Vivo de Memórias do Portugal Recente, um espectáculo do Teatro do Vestido, que conta um pouco da história Portugal dos anos da ditadura e da democracia. É mesmo preciso não esquecer.
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Os jornalistas fizeram greve. Não serviu para nada, não vamos ser aumentados nem vamos ter melhores condições de trabalho, os despedimentos vão continuar, os órgãos de comunicação continuam com problemas financeiros, e, no entanto, foi importante que nos juntássemos todos, que nos olhássemos, que os outros olhassem para nós, que disséssemos em voz alta que temos mesmo que fazer alguma coisa por nós, para mudar isto, que não podemos continuar a encolher os ombros. Foi um dia muito bonito.
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Fomos ver o Sérgio Godinho ao Coliseu. Foi tão bom, tão bom. Foi tão bom poder ouvir aquelas canções acompanhada daquelas pessoas (as pessoas são sempre o mais importante). Ouvir outra vez A Garota Não. Gritar pela paz, o pão e a habitação. Cantar o Zeca e o Zé Mário. Ter um "brilhozinho nos olhos" e acreditar que, apesar de tudo, este poderia ser o "primeiro dia do resto da nossa vida".
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Também fui ver a Patti Smith com os Soundwalk Collective ao CBB. Que maravilha. O espectáculo chama-se Correspondences e baseia-se na poesia de Patti Smith, a partir do trabalho de outros artistas, aquela voz incrível num ambiente composto por vídeos e sons, levando-nos numa reflexão sobre o mundo em que vivemos, a destruição da natureza, os desastres nucleares ou questões mais humanas da nossas existência. Foi uma experiência bastante intensa que terminou com um momento de libertação, o público todo de pé a cantar People Have The Power ("The power to dream, to rule/ To wrestle the world from fools").
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Ainda não tinha ido à Casa Fernando Pessoa depois da remodelação. Vale muito a pena. A exposição está muito bonita, com partes mais informativas e outras mais poéticas. Numa das salas há uma montagem de espelhos - porque cada um de nós é muitos, porque cada pessoa é diferente dependendo do ponto de vista. Aí, conseguimos ver-nos de costas. Completamente. Não sei se alguma vez me tinha visto de costas, como se fosse outra pessoa. Foi bastante estranho. Ficámos ali algum tempo. Há algo de quase transcendental nesta experiência.
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"I know not what tomorrow will bring" - foi esta a última frase escrita por Fernando Pessoa. Não sabemos o que o amanhã nos traz. Tenho feito um esforço para tentar viver o presente sem pensar no futuro. No meu futuro, no futuro dos meus filhos, no futuro em geral. Talvez seja por estar a chegar aos 50, não sei. Não é tanto um "seize the day" no sentido de fazer tudo e devorar o mundo como se não houvesse amanhã. Não é isso. É mais um ser feliz agora, por inteiro, sem alimentar expectativas para amanhã, tentando não me angustiar. Se me conhecessem saberiam que é um desafio e tanto. É quase como suspender o pensamento. Não vou dizer que é fácil, mas até agora tem sido possível e tem sido bom. Talvez o amanhã nos traga beijos e passeios de mão dada à beira-mar. Talvez o amanhã me traga uma tarde numa esplanada, sozinha, com um livro. Seja como for, o importante é estar em paz.
Nas primeiras eleições após o 25 de Abril, "o número de eleitores recenseados passou de cerca de 1 milhão e 800 mil para 6 milhões e 200 mil, e foram as eleições mais participadas de sempre, com uma taxa de abstenção de apenas 8%". As eleições foram uma festa, as pessoas estavam felizes por poder finalmente exercer o seu direito de voto e, livremente, decidir o futuro do país.
Como é que em menos de 50 anos chegámos aqui, a uma taxa de abstenção de cerca de 40%, com um partido populista e anti-democrático a ser a terceira força política no Parlamento?
Vão votar. Não deixem que os outros decidam por vocês.
Quem ganhou? O jornalismo e o comentariado políticos estão reduzidos a isto: quem ganhou o debate? quem ganha nas sondagens (bem ou mal feitas)? quem ganha nas redes? Veja ao minuto, agora, instantaneamente. Não vale a pena pensar muito, nós dizemos-lhe já. E quem ganha nem sequer é quem diz mais verdades ou quem tem propostas mais exequíveis, é quem conseguiu gritar mais alto, calar o adversário, ser mais fanfarrão, dizer a frase mais orelhuda. Quem ganha é quem consegue mais aplausos no Twitter, esse mundinho à parte, onde os jornalistas e comentadores vivem e se degladiam, mas que representa muito pouco do que é o país real.
É verdade que já não tinha grandes expectativas sobre o jornalismo que fazemos no nosso dia-a-dia, mas nunca julguei que pudéssemos descer tão baixo como está a acontecer nesta campanha eleitoral. Isto não quer dizer que não haja trabalhos bons, que também os há, atenção. Mas ficam geralmente ofuscados por este festival de comentários e avaliações à la minuta. E é uma pena. Sinto mesmo que não estamos a prestar um bom serviço à democracia - nem aos nossos leitores/ouvintes/espectadores. Mas sinto-me impotente. Limito-me a tentar não contribuir para este barulho.
Infelizmente isto não acontece só em Portugal, felizmente já há muita gente a pensar sobre isto e até já há algumas pessoas a tentar fazer diferente. Através do Jay Rosen , autor do PressThink (só o nome já é bom, juntar imprensa e pensamento é sempre um bom princípio), encontrei este texto, que me parece resumir bem algumas das preocupações que - como descobri recentemente - não são só minhas:
"(...) Horse race political journalism is the shallow end of the craft. It’s easy to do, carries no burden in terms of input or consequence and can spawn a day or so of equally lazy follow ups. It is usually based on polling. A poll of inconsequential quality is used to measure the possible outcome of a looming political contest – usually on the fundamental metrics of voting intention and leadership approval/disapproval. (...) It is always worth remembering and repeating that opinion polling is no more than what it is – the sampling of opinion at a moment in time on a single issue or confined basket of issues. (...) Other factors counting against horse race polling are that it contributes to the prevalent and increasing distrust in politicians – if all the news is focused on the competitive nature of contests and doesn’t delve into the issues voters actually talk about, people will believe politicians don’t care about things like health and education. (...) Pages of stories on horse race aspects of elections and little if any examination of what is at stake in any contest means the voters are ill-informed and slip into not caring. It’s a self perpetuating and self fulfilling problem at once. The ill informed nature of so much political reporting – fed by the horse race obsession – creates an electorate which really doesn’t care because they do not believe anything has any meaning or any election outcome has any consequence. (...) The fundamental criticism of horse race political journalism is the tendency to give emphasis to colour and movement, to drama and shock, over anything or substance or consequence. Substance takes a back seat. (...)".
Antes desta semana de caos que agora terminou e do mês de caos que aí vem, o mês de janeiro foi bom para mim. Foi mesmo. Inesperadamente bom por vários motivos, entre os quais estes: consegui ir passar um bocadinho de uma tarde com os meus queridos amigos da Companhia Maior, fui conversar com o Eduardo Gageiro e ver as suas maravilhosas fotografias e ainda ouvi o fantástico Jorge Calado a falar sobre as fantásticas fotos de Maria Lamas - sim, assim mesmo, com adjectivos em excesso para que se perceba que estou a falar de eventos mesmo importantes e - e isso é o mais relevante para o caso - que me deixaram verdadeiramente feliz.
Os acontecimentos dos últimos dias têm me feito reflectir muito sobre o estado do nosso país e sobre a cada vez maior visibilidade e representatividade da extrema-direita. Para quem, como eu, se revê incondicionalmente nos ideais da democracia, da liberdade, da igualdade e do respeito por todas as pessoas, tudo isto é bastante angustiante e confesso que ainda não encontrei as palavras certas para falar deste tema. É importante ver as fotografias de Eduardo Gageiro e Maria Lamas, falar sobre elas, tentar entendê-las. É preciso não esquecer o que foi a ditadura. O que foi verdadeiramente, sem romantizar. A história ensina-nos muito e manter a memória desperta é mesmo um dos maiores antítodos contra as ameaças que enfrentamos. É preciso não esquecer os que resistiram e lutaram contra a ditadura. Que o seu exemplo nos inspire. E nos dê alento.
Se puderem, não percam estas exposições. Para ver com olhos de ver.
Mulheres do nosso país fotografadas por Maria Lamas (1948)
Polícias batem em manifestantes durante o Estado Novo. Fotografia de Eduardo Gageiro
Já passaram algumas semanas mas não queria deixar de escrever sobre O Sol do Futuro, o filme de Nanni Moretti. Não é um filme extraordinário. É um filme imperfeito, como são geralmente as comédias do Moretti. Comédia dramática é como lhe chamam. Não é daqueles filmes em que se dê grandes gargalhadas. Fica sempre ali no limite entre o isto tem graça, isto é só parvo, isto é muito triste. Ainda assim, eu gostei bastante.
Palombella Rossa, de 1989, abria com um acidente de carro. Michelle (interpretado por Moretti) perdia a memória. Quem sou eu?, perguntava-se. "Ah, eu sou um comunista". Não vi nenhum filme anterior dele mas sei que, pelo menos a partir daí, o debate sobre a relevância do comunismo e sobre o que é ser comunista é uma constante nos filmes de Moretti.
Destaque para dois documentários:
A Coisa (1990) reúne intervenções de comunistas italianos durante os debates que aconteceram em várias secções do partido, após a queda do Muro de Berlim e do Bloco de Leste e depois de o secretário-geral do PCI, Achille Occhetto, ter defendido uma remodelação do partido, mudando o nome e os símbolos, para acompanhar a nova realidade. A desilusão dos velhos comunistas italianos, as memórias da resistência ao fascismo, as perguntas que ficam sem resposta, a defesa dos trabalhadores e de um ideal que, apesar de tudo, parece continuar a fazer sentido - o filme é um documento interessantíssimo sobre aqueles tempos.
Santiago, Itália (2018) viaja até ao Chile de Allende, breve experiência de socialismo que termina com o golpe de estado de 11 de setembro de 1973. Com muitas imagens de arquivo e os relatos de um grupo de entrevistados que, percebemos depois, são todos antigos militantes da esquerda que, depois de prisões e torturas e percebendo que a ditadura estava só a começar, acabam por se refugiar na Embaixada de Itália e, finalmente, ser extraditados para Itália como refugiados políticos.
Dos filmes de Moretti que vi, os meus preferidos são O Quarto do Filho (2001) e Três Andares (2021) que são, precisamente, aqueles que não são comédias e que têm menos política e mais família (cada pessoa tem as suas manias, não é?).
Mas, se olharmos para Palombella Rossa (1989), Caro Diário (1993), Abril (1998) e este O Sol do Futuro (2023), é muito fácil encontrar pontos de ligação. Antes de mais, porque as personagens interpretadas por Moretti são uma espécie de alter-egos do próprio realizador. Umas vezes mais assumidamente autobiográficas (como em Caro Diário e Abril), outras vezes menos, mas temos sempre ali um pouco de Moretti com os seus interesses, as suas dúvidas. Fazendo lembrar um pouco Woody Allen, até pela torrente de discurso atabalhoado e pelo tom auto-depreciativo, só que com questões muito diferentes. A política e o cinema são os seus temas de eleição, a política, o cinema e a vida misturam-se nos filmes como se misturam na vida de Moretti. Contaminam-se. Em Abril assistimos à chegada de Berlusconi ao poder. Nanni quer fazer um documentário sobre a campanha eleitoral mas, ao mesmo tempo, está a acompanhar a gravidez de Sílvia e o nascimento do seu filho, Pietro. A sua atenção dispersa-se. O pessoal e o político confrontam-se.
É também engraçado ver como Moretti envelhece no ecrã, um filme a seguir ao outro, e como as suas questões se mantêm ou se alteram. Podemos comparar a crise existencial da personagem do realizador de Abril com a crise existencial de Giovanni, a personagem do realizador de O Sol do Futuro. Neste, Nanni (diminutivo de Giovanni) assume quase o papel de um "velho do Restelo", que não entende como os jovens fazem cinema nem se quer vender à Netflix. Com um "realizador em crise", com Margherita Buy e Silvio Orlando, actores que conhecemos de outros filmes de Moretti, com momentos musicais e uma grande parada final com todas as personagens, O Sol do Futuro dá-nos uma certa sensação de déjà vu. A acção passa-se em 1956, durante a invasão da Hungria pela URSS, que o PCI apoia. Voltamos a ter um confronto entre pessoal e político. Que espaço para as pessoas e que papel para as ideias individuais num partido comunista? Afinal, o partido somos nós ou temos que nos sujeitar às decisões da cúpula?
Desta vez, talvez cansado de tanta desilusão, Moretti decide alterar o final da história e fazer da utopia realidade. Se não é para isso que serve ser o realizador do filme, então é para quê? Há uma ingenuidade grande naquele final povoado de bandeiras vermelhas, é verdade. Mas não nos enganemos: Moretti sabe que aquilo é um exercício de ficção sobre um futuro que poderia ter sido. Que está a mudar o passado porque não pode mudar o presente. É por isso que aquela alegria é também um bocadinho triste.
Não sei bem que dizer. Quando o terror é imenso perdemos as palavras, não é? Nestes últimos dias tenho tentado fazer algumas leituras, preencher algumas lacunas que ainda há pouco admitia aqui, quando escrevi sobre a Golda. Ainda assim, tudo o que possa dizer é de uma enorme banalidade. Toda a violência é terrível mas a violência sobre civis, inocentes, é sempre pior. Porque odiamos?, volto a perguntar. Não tenho respostas. Surpreendem-me muito as pessoas que tomam posições muito convictas sobre este conflito (e sobre outros também, mas sobre este especificamente). A mim sobram-me as dúvidas.
Deixo algumas pistas:
Falei com a Nofouz, 23 anos, estudante de medicina, da Cisjordânia. É só um lado da história, claro. A mim tocou-me muito.
Uma fotogaleria da Palestina antes de ser Israel, que me fez olhar para trás. As fotos são maravilhosas mas o que ali está é o retrato de uma região colonizada.
"Somos todos animais", um texto da Alexandra Lucas Coelho, que tem dito coisas que me fazem muito sentido.
A Isabel Lucas escolheu alguns livros que poderão ajudar a entender o que se passa na Palestina. Também há uma selecção de filmes, escolhidos pelo Palestine Film Institute.
Também podem ir (re)ler e (re)ouvir a série de reportagens que o Fumaça fez em 2017: "Palestina: Histórias de um país ocupado".
Com tantas imagens horríveis que nos chegam, lembrei-me da Susan Sontag e do seu "Olhando o sofrimento dos outros". Nunca o li todo, confesso, talvez seja este o momento certo.
Palestinianos procuram sobreviventes após mais um bombardeamento na Faixa de Gaza (AP Photo/Abed Khaled)
"Tragam-nos para casa". Em Telavive, uma mulher apela à libertação dos reféns israelitas (AP Photo/Petros Giannakouris)
(e, não sei se repararam, mas de repente deixámos de falar da Ucrânia. a guerra continua lá mas é como se já não estivesse a acontecer. isto devia tanto fazer-nos reflectir.)
A 6 de outubro de 1973, o estado de Israel foi atacado pelo Egipto e pela Síria, que aproveitaram o facto de os judeus celebrarem o seu mais importante feriado, o Yom Kippur. As principais actividades militares aconteceram na Península do Sinai e nos Montes Golan. Apanhado de surpresa, Israel demorou a reagir. Durante os 20 dias que durou a guerra do Yom Kippur, como ficou conhecida, Israel perdeu perto de 2.800 militares. Mais de 8.000 ficaram feridos. 293 israelitas foram feitos prisioneiros. O país perdeu ainda perto de mil tanques, mais de 100 aviões e dois helicópteros. As estimativas para as perdas do lado árabe são ainda mais terríveis, referindo-se cerca de 16 mil mortos, 35 mil feridos e 9 mil prisioneiros. Apesar de, no final, Israel ter conseguido travar a ofensiva e repor as suas fronteiras, a guerra iria manchar a reputação da primeira-ministra, Golda Meier. Acusada de falta de preparação e de não ter conseguido reagir com maior rapidez, o que poderia ter impedido os avanços iniciais dos árabes e reduzido drasticamente o número de baixas, a primeira-ministra foi ilibida pela Comissão Agranat, que investigou a sua responsabilidade nas falhas na defesa. Apesar disso, Golda acabaria por resignar em abril 1974. Morreu em 1980, devido a um linfoma.
Não percebo muito do que se passa em Israel, com muita pena minha. Sei o básico sobre a diáspora dos judeus, expulsos da "Terra Santa" séculos antes de Cristo, e sobre o sionismo, o movimento que, desde o século XIX, defendeu a criação, nesse local original, de um estado para os "filhos de Israel". Golda Meier era sionista. Nascida na Ucrânia em 1898 e educada nos Estados Unidos, mudou-se para a Palestina em 1921, para morar num kibbutz e participar na vida comunitária e, mais, tarde, instalou-se em Jerusalém, onde iniciou a sua carreira política. Defendeu os refugiados judeus durante a Segunda Guerra Mundial e foi uma das duas mulheres que, em 1948, assinaram a declaração da fundação do estado de Israel. A partir daqui tudo me parece demasiado confuso. Os estados árabes vizinhos nunca aceitaram o novo estado e seguiram-se diversos conflitos armados, nos quais se disputaram quilómetros de território e se redefiniram fronteiras. Nascido em grande parte da culpa ocidental, após o Holocausto, Israel acabou por se tornar (e cada vez mais) um país pouco democrático, excessivamente militarizado e com práticas humanitárias muito duvidosas no que toca ao tratamento da comunidade palestiniana.
A nós, portugueses, no nosso cantinho da Europa sem grandes chatices desde o século XII (houve os espanhóis e os franceses, pois sim, mas nada a ver), pode parecer-nos um pouco estranho que povos vizinhos se odeiem tão visceralmente por causa de diferentes religiões e diferentes etnias, que se matem por uns metros de terra a que possam chamar seus. E, no entanto, isto acontece ainda hoje na Ucrânia, no Nagorno-Karabakh, em Israel, em tantos outros sítios do mundo. Valerá tudo isto a pena?, é sempre o que me pergunto. Este ódio, estas mortes farão sentido?
Para Golda esta seria seguramente uma não-questão. A guerra impõe-se. Não admite recusas.
50 anos depois do início da guerra do Yom Kippur, chega aos cinemas Golda, o filme realizado por Guy Nattiv e protagonizado por Helen Mirren, que retrata este período. Aqui encontramos Golda, figura imponente, cara enrugada, poucos sorrisos. Os cabelos brancos apanhados. O cigarro permanentemente acesso. Cigarros atrás de cigarros. Uma mulher doente, mas que não se queixa. Uma mulher habituada a tomar decisões mas, ainda assim, com dúvidas. Implacável com o inimigo mas que sofre com as mortes dos seus soldados, sofre pelas mães que perdem os seus filhos.
O filme não nos dá muitas informações biográficas, o que é uma pena, na minha opinião, porque me parece que ela teve uma vida e tanto. Não é tanto um filme sobre ela quanto um filme sobre ela nesta situação. Uma mulher à frente do seu país. Uma líder num momento de crise. Que cozinha bolos para as reuniões com os ministros do seu governo, onde decide ataques mortais. Que recebe Kissinger, o secretário de Estado norte-americano (interpretado por Liev Schreiber), na cozinha e o obriga a provar o borscht feito pela empregada, enquanto negoceiam aviões de guerra.
Fez-me lembrar um pouco A Hora Mais Negra (2017) que mostrava Churchill em 1940 quando as tropas alemãs encurralavam as tropas britânicas em Dunquerque e o parlamento exigia a demissão do primeiro-ministro acusando-o de estar a ser demasiado brando com os nazis.
A escolha de Helen Mirren foi criticada por alguns sectores que preferiam ver uma actriz judia no papel. Polémicas à parte, Mirren é uma excelente actriz e consegue, por baixo de todas as camadas de caracterização, fazer uma óptima interpretação de Golda. No entanto, apesar de alguns momentos bem conseguidos, o filme acaba por ser bastante repetitivo, com os seus mil planos de mapas, cinzeiros cheios e cigarros a arderem. É uma pena, porque, como já devem ter percebido, este é um tema que me interessa e eu queria mesmo ter gostado mais.
Apanhei por acaso o filme O Pianista, de Polanski, na televisão. Nunca tinha visto O Pianista, o que é algo bastante incompreensível. Por causa do filme e porque estive a corrigir um trabalho do meu filho sobre o Hitler, voltei a deparar-me com as explicações, as descrições e as imagens da Segunda Guerra Mundial. Fico sempre transtornada. Pensar que aquilo aconteceu há tão pouco tempo, que aconteceu aqui tão perto. Por mais que já tenha visto e lido e pensado sobre este tema, a maldade dos homens não pára de me surpreender e de me entristecer. Podia dizer o mesmo sobre outros acontecimentos, outros conflitos, outras atrocidades, claro. É tudo horrível. Ainda no outro dia estava a ver o A Oeste Nada de Novo, sobre uma guerra mais antiga, e a revolta a crescer cá dentro. Sinto o mesmo ao ver as notícias e as imagens da Ucrânia, no nosso tempo. Uma incompreensão enorme, um ódio pelos senhores da guerra, o medo. Sim, o medo. E esta sensação de que não aprendemos nada, de que não existe um fio da história, existe um emaranhado de fios e estamos sempre a voltar atrás.
Ontem, li esta notícia sobre um bailarino ucraniano, Rostyslav Yanchyshen, que morreu a defender o seu país. Talvez um dia façam um filme sobre ele como fizeram sobre o pianista Wladyslaw Szpilman.
Evito ver muitas notícias sobre a guerra porque me perturbam imenso. Não consigo não imaginar como será de repente o nosso país estar em guerra. De um dia para o outro. Porem-te uma espingarda na mão e vai lá matar o inimigo. Ver a nossa cidade destruída. Ter de fugir. Não ter o que comer. Ver as pessoas de que gostamos a morrer. Há mais de um ano que vivo com este sentimento de que não estamos seguros.
Não era nada sobre isto que tinha pensado vir aqui escrever hoje. Até nem ando infeliz com a vida, nem nada disso. A culpa é d'O Pianista. Devia ter ido a ver o novo filme da Disney para entrar no grande debate do momento sobre de que cor é verdadeiramente a pele das sereias, em vez de me pôr a pensar na guerra.