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Desde o dia em que recebi o telefonema do meu director a informar-me que iria ser despedida até hoje, dia em que levantei nos correios a carta que oficializa o meu despedimento, passaram-se exactamente dois meses. Foram dois meses estranhos. Ainda empregada mas sem trabalho. Quase desempregada mas sem poder procurar activamente uma nova ocupação. Os dias podem ser demasiado longos quando não temos um horário a cumprir. Mas a vida continua a ser demasiado curta. Por outro lado, quem tem filhos e uma casa para cuidar sabe que temos sempre muito com que nos entreter. Na verdade, quase poderíamos fazer só isto. Lavar o chão, passar a roupa, temperar a carne para o jantar. Mas eu não quero. Não quero ficar enredada nas compras e nos almoços. Odeio a sensação de estar a perder tempo. Não me quero deixar ficar. No entanto, para já, ainda não há muito que possa fazer. Não é fácil.
O meu desafio nestes últimos meses tem passado por três frentes:
Organização.
O pior que pode acontece quando temos tempo a mais é deixar tudo para amanhã e não fazer nada. É preciso manter algumas rotinas. Fazer sempre a cama, não acumular louça suja. Limpar a casa. Cozinhar refeições. Comer fruta. Beber água. Pagar as contas. Organizar os meus contactos. Mandar mails. Apagar mails. Fazer listas das coisas que tenho que fazer para não me esquecer delas (estou cada vez mais desmemoriada, tenho de fazer listas de tudo). Estabelecer pequenos objectivos. Ter uma agenda para 2021 (e a alegria de ter já alguns dias ocupados).
Cuidar do corpo.
Nunca fui muito boa nisto. Gosto de comer e gosto pouco de me mexer. Mas estou a tentar, juro. Esta semana estou em detox pós-natalício. Aproveito a ausência dos miúdos para fazer refeições diferentes. Obrigo-me a sair de casa. Caminho sempre que possível (quase todos os dias, mesmo com frio e com chuva). E inscrevi-me no "treino das mães" no clube de BTT do Pedro. Domingo de manhã, ao ar livre, com um grupo de mães divertidas e uma PT que puxa por nós e me obriga a mexer partes do corpo que têm estado adormecidas. Não é muito, eu sei, mas é melhor do que nada.
Ginasticar a mente.
A ordem é para fugir das redes sociais e do facilitismo do scrolldown. Não é fácil mas é necessário. Tenho tentado ser selectiva nos filmes e séries que vejo (e tenho visto muitos). Ir ao teatro. Ler, claro (nem sempre encontro o mood certo mas há que insistir). Escrever (aqui, mas não só). Continuar a aprender. Preciso muito disso. Fiz uma assinatura de um jornal para me manter actualizada. Já fiz um curso online (daqueles com direito a diploma e tudo), estou a acompanhar um seminário online só para ouvir pessoas interessantes e abrir a cabeça, e inscrevi-me num mini-curso mais sério para o início 2021. Ainda não consegui voltar à rotina matinal de me sentar ao computador e ir ver os "meus" sites mas lá chegarei.
E assim vamos. Caminhando no arame, lentamente, tentando manter o equilíbrio e não dar nenhum passo em falso. Não tarda nada chegamos ao outro lado, seja lá isso onde for.
Where is my mind?, Placebo com Franck Black.
Domingo. Antes das nove da manhã estava a sair de casa, debaixo de uma chuva miudinha, a maldizer a vida. Mas porque é que fui meter-me nisto? Resisti à vontade de ficar no sofá e no quentinho e lá fui. Mais de duas horas a caminhar por trilhos em Monsanto com outros pais enquanto os putos pedalavam por ribanceiras e poças. E acabou por ser muito bom. Mesmo com a chuva nos óculos e os pés enlameados. Valeu pelo ar fresco na cara (e nas ideias), pelos momentos de silêncio, apenas ouvindo a respiração e os passarinhos. Pelo entusiasmo de todos, miúdos e graúdos. E a alegria do Pedro.
Às vezes temos de sair da nossa zona de conforto. É esse o desafio.
O meu pai mandou-me esta foto em jeito de prenda de anos. Há 46 anos eu era assim, pequenina e tranquila ao colo da minha avó.
Agora já não sou pequenina. Mas estou tranquila.
Este foi um fim-de-semana cheio de emoções. Um confinamento. Um despedimento. Um aniversário. E uma bela TPM. A tempestade perfeita. E, afinal, correu tudo bem. Pela primeira vez desde que me lembro não fiz nenhum bolo mas tive dois bolos deliciosos. E, de longe ou de perto, tive muitos abraços. Porque tenho amigos dos bons (os amigos salvam-me todos os dias, já o sabia, e posso sempre recorrer a um texto lamechas lido na adolescência e trazê-lo para aqui e está tudo certo). E, para terminar em grande, levei os meus filhos a ver todas as coisas maravilhosas e só o facto de termos ido e de eles terem gostado (principalmente o adolescente) foi maravilhoso.
Nem de propósito, uma das músicas do espectáculo é esta, do Jorge Palma, que cantei em coro com o Ivo Canelas e as lágrimas a embaciarem-me os óculos.
Acho que é mesmo a música perfeita para hoje.
"Tira a mão do queixo não penses mais nisso
O que lá vai já deu o que tinha a dar
Quem ganhou ganhou e usou-se disso
Quem perdeu há-de ter mais cartas pra dar
E enquanto alguns fazem figura
Outros sucumbem à batota
Chega aonde tu quiseres
Mas goza bem a tua rota
Enquanto houver estrada pra andar
A gente vai continuar
Enquanto houver estrada pra andar
Enquanto houver ventos e mar
A gente não vai parar
Enquanto houver ventos e mar
Todos nós pagamos por tudo o que usamos
O sistema é antigo e não poupa ninguém
Somos todos escravos do que precisamos
Reduz as necessidades se queres passar bem
Que a dependência é uma besta
Que dá cabo do desejo
A liberdade é uma maluca
Que sabe quanto vale um beijo"
A Modern Man, de George Carlin
Eu já sabia. No primeiro dia do confinamento, quando me vi aqui enfiada em casa com os meus dois filhos e me apercebi da loucura que ia a ser a nossa vida, lembrei-me imediatamente: e as pessoas que estão sozinhas?
Eu já sabia. Porque por muito que me queixe da minha vida, eu sei que são os meus filhos - com os seus gritos e discussões e preocupações e brincadeiras e tudo e tudo - que são o meu chão. Eu já sabia mas não há nada como ter a experiência da coisa para poder falar com conhecimento de causa: estou há seis dias a trabalhar em casa e não tenho cá os meus filhos. Eles estão de férias com o pai e estão muito bem. E eu precisava muito de estar de férias deles, admito. Mesmo. Precisava de descansar a cabeça e o corpo e sair desta rotina infernal de comidas e compras e nós todos juntos o tempo todo. Mas uma coisa é estar sozinha quando se está de folgas e se anda a laurear a pevide (faço isso de vez em quando e é óptimo). Uma coisa é estar sozinha quando se tem uma vida normal de trabalho, num escritório, e se passa o tempo a falar com outras pessoas e depois até se vai jantar fora ou ao cinema ou beber um copo (tenho sempre alguns dias por ano assim). Outra coisa, completamente diferente é estar sozinha, a trabalhar em casa, sem ter ninguém com quem falar o dia inteiro, sem ter grandes opções ao final do dia, porque ainda está tudo com medo e não há filmes que interessem no cinema e os bares estão fechados e estamos todos em modo recolhimento. E ficamos assim só nós e o computador e o silêncio, um dia depois do outro. Não é bom, posso dizer-vos. Nada bom. É até bastante deprimente. Dá vontade de comer chocapic e gelado a todas as refeições, dá vontade de deixar a louça na pia e de nem fazer a cama, dá vontade de não fazer nada, na verdade.
Claro que não foi isso que eu fiz, porque eu sou teimosa (e, pelo menos até ver, sã) e se me deprimo um dia, no dia seguinte já estou a arranjar maneira de arrebitar. Não me fiquei. Fui à feira do livro e ao teatro, falei com amigos, combinei encontros. Saí de casa só porque sim. Resisti. Mas foram só seis dias. Como seria se fossem seis meses? Teria eu conseguido não enlouquecer?
Foi morto mas a verdade é que era uma pessoa difícil e estava sempre a arranjar chatices.
Foi espancada mas a verdade é que ela era muito respondona e tinha a mania.
Foi atacado mas a verdade é que tinha um passado violento e até já tinha estado preso.
Foi violada mas a verdade é que andava sempre com roupas provocantes e a pavonear-se por aí.
Não.
A verdade é que não há justificação para estes actos. Temos de perceber isto de uma vez por todas. Nada no passado ou na personalidade ou na vida de uma pessoa justifica a violência.
Vem isto a propósito da morte de Bruno Candé que parece que era boa pessoa mas até podia não ser. Não é isso que está em causa neste momento.
Uma pessoa que toma a decisão de sair de casa com uma arma e, a sangue frio, atirar quatro vezes sobre um homem, no meio da rua, à vista de todos, sem medo e sem hesitações, não tem desculpa. Não há nenhum mas que se possa pôr nesta frase.
É um assassino.
E se está louco é um louco perigoso e não pode andar à solta.
"E a vida lá prossegue. Anormal, como sempre. Resta-nos que este momento traga, ao menos, alguma sobriedade, e que a pornografia material de alguns seja refreada. Quem sabe, dessa forma, possamos alcançar, como Robert Wyatt, que se o medo de perder o emprego é real e em nenhum momento pode ser subestimado, também não é menos certo que aquilo que nos faz sentir vivos, a música, a arte, o imaginar, o contemplar o horizonte, ou uma boa conversa, por difícil que seja, também não deverá ser esquecido.
E se não estivermos em condições de nos lembrar, é bom ter alguém ao lado que nos recorde, porque é fácil estar com os outros na estabilidade, o difícil é mantermos-mos próximos dos que numa determinada fase estão alheados, embora esse talvez seja o tempo em que mais precisam de alguém. E para o entender basta recordar as alturas em que por mais que quiséssemos também não conseguíamos vislumbrar a simples comoção de existir."
Daquelas coisas que vale mesmo a pena ler: as crónicas de Vítor Belanciano, todos os domingos, no Público.
Em Minneapolis, no Minnesota, EUA, George Floyd, um homem de 46 anos, foi morto por um polícia. Parece que usou uma nota falsa para pagar uma compra numa loja, não mais de 20 dólares. Parece que resistiu à detenção policial. Podia até ser um perigoso criminoso, o que aparentemente não era. Nada disso justificaria o que aconteceu a seguir. George Floyd, um homem negro (porque há circunstâncias em que esta informação é relevante) foi morto por um polícia branco, com a cumplicidade de mais três polícias brancos. Estava desarmado, deitado no chão, no meio da rua, impossibilitado de se mexer por um polícia que lhe agarrava os braços e que com o joelho pressionava o seu pescoço. As imagens, captadas por telemóveis pelos transeuntes, mostram-no em desespero. A dizer que não podia respirar, a implorar para não o matarem. "I can't breathe", repete. As pessoas que passam na rua protestam também. Mas os polícias, esses, mantêm-se impávidos e serenos. O vídeo, que vi ontem, quase em lágrimas, é impressionante. Há um homem que morre ali mesmo à nossa frente (a versão oficial é de que George Floyd só morreu no hospital), no meio da rua, sufocado por um polícia-carniceiro, perante a impotência dos cidadãos (de nós todos).
É tão assustador.
E revoltante.
#icantbreathe
E mais uma reflexão:
Tenho sempre muitas dúvidas sobre a divulgação deste tipo de vídeos, tento evitá-los e só os vejo quando, por motivos profissionais, tenho mesmo de fazê-lo (foi o caso). E, no entanto, se não fossem estes vídeos nunca saberíamos como esta e outras mortes (e torturas e maus tratos e outros casos) tinham de facto acontecido. E isso também é assustador.
Se quiserem saber mais, leiam ESTE TEXTO da New Yorker, que vos dará uma visão mais abrangente sobre o caso e levanta algumas questões muito pertinentes.
Bernardo Sasseti (1970-2012)
Noite (Alice)