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As opiniões dividem-se sobre Tár. Uma crítica terrível, publicada na New Yorker, aquando da estreia do filme de Todd Field, fez-me pensar muito. Mas também li outras críticas muito positivas. As opiniões dividem-se sobre Tár e eu fico do lado daqueles que gostaram muito. 

O filme acompanha a maestrina Lydia Tár, soberbamente interpretada por Cate Blanchett, personagem de ficção, é preciso sublinhar, figura de topo da música clássica contemporânea, amplamente elogiada e premiada, a primeira mulher a assumir o cargo de maestra principal da Filarmónica de Berlim. Uma mulher com poder num meio geralmente dominado por homens, um meio elitista e muito fechado. Tár é lésbica e casada com a primeiro violino da orquestra, Sharon, com quem tem uma filha. Moram numa casa moderna e luxuosa, um ambiente higienizado e quase não-humano. Mas Lydia mantém o seu antigo apartamento, num prédio familiar, aonde vai para ensaiar ou quando quer estar sozinha (ou com outras companhias). Tár, vamos descobrindo, conquistou o seu lugar também graças a uma atitude brava (masculina?), sem fazer concessões, sem grande empatia pelos outros. Tár, vamos descobrindo, usa o seu poder para manipular os que a rodeiam, levando-os a corresponder aos seus caprichos (veja-se a relação com a sua assistente pessoal) e para seduzir outras mulheres, sobretudo jovens em início de carreira (veja-se, mais uma vez, mas não só, a relação com a sua assistente pessoal). Autoritária e determinada, Tár sabe bem o poder que tem e não admite ser contrariada. Mas, de repente, o feitiço vira-se contra o feiticeiro. Uma antiga aluna, com quem Tár terá tido um relacionamento e que se sente abandonada, tenta desesperadamente entrar em contacto com ela e acaba por se suicidar. Os alunos de uma masterclass na Juilliard publicam nas redes sociais um vídeo de Tár, editado, no qual ela aparece a fazer declarações politicamente incorrectas. Os músicos da orquestra ficam desagradados com as alterações feitas ao programa para dar destaque a uma instrumentista nova, por quem Tár se mostra interessada. Sharon já não acredita quando ela nega os seus casos extra-matrimoniais. As denúncias chegam à direção da orquestra, que confronta Tár. Entre as acusações verdadeiras e as falsas, Tár não sabe como reagir. Desvaloriza, com alguma soberba. Habituada a estar no controlo da situação, ela perde o controlo (e o resto vão ter de ver).

Isto é, em traços largos, o que acontece. Mas, depois, há muito mais que se discute por ali, a propósito de música e de relações de poder. Há diálogos extraordinários. E muitos debates que podem surgir sobre o politicamente correcto e a cultura woke, a importância das redes sociais e a justiça dos cancelamentos.

Os críticos do filme apontam o óbvio: que Field toma o ponto de vista de Tár, uma vez que o filme dá apenas a sua visão dos acontecimentos, sem nos permitir criar uma ligação com as vítimas. Que os abusos de Tár nunca são afirmados claramente, resta sempre uma dúvida. Que o discurso de Tár é inevitavelmente igual ao discurso do poderoso-homem-branco, habituado a usar os outros e que de repende se vê confrontado com denúncias de abuso de poder (e sexual).

Mas o que eu vi não foi uma defesa do abuso. Pelo contrário. O que eu vi foi uma mulher claramente abusadora, habituada a silenciar os outros com o seu olhar, as suas palavras ou um simples gesto, uma mulher por quem dificilmente sentiremos qualquer empatia. A cena da masterclass e a sua interacção com o estudante que tenta confrontá-la tem tanto de brilhante (por toda a argumentação, de um lado e de outro) como de confrangedora: sim, parece que ela é a "vencedora" da discussão, mas fá-lo através da humilhação do outro e exercendo um certo despotismo, uma sobranceria que parece despropositada numa maestrina no topo de carreira perante um jovem-ninguém (porque se sentiu ela ameaçada?). A intolerância de Tár aos outros que são diferentes dela vai-se acentuando ao longo do filme. Sejam os vizinhos que a incomodam ou todos os que não a bajulam indiscutivelmente. Sim, ela é adorável com a filha. Mas repararam na maneira como ameaçou a coleguinha dela, uma criança? Ou na forma dissimulada como afasta o maestro-assistente? Isto diz muito da forma como esta mulher está habituada a lidar com os contratempos.

"In the end, however, she cannot bend other people’s experiences of her to fit her image. She cannot delete all the evidence. She cannot escape a younger generation’s system of accountability—and years of rarefied success have left her unable to withstand her own defenselessness. Her devotion to art did not translate to genuine self-respect, a set of ethics, nor the ability to take responsibility for her actions. In the grand tradition of the toxically masculine she lapses into violence, attacking another conductor onstage and securing her own demise", escreve Tavi Gevinson, num outro texto que me trouxe mais mil perguntas.

Portanto, não, não senti que houvesse uma defesa cabal de Lydia Tár. Senti que havia ali muito material para pensar, muitas pontas por onde puxar, muitas perguntas por responder. Até porque ser intolerante com os abusadores não quer dizer que aceitemos por completo todas as exigências da cancel culture. Ou porque prefiro filmes que me obrigam a tomar uma posição àqueles que são simplesmente pedagógicos.

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publicado às 19:00



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