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Falei com a Nofouz uns dias depois dos actos terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Alguém deu o contacto a alguém que me perguntou se não estaria interessada em entrevistar uma palestiniana da Cisjordânia. Nem hesitei. Trocámos umas mensagens em inglês e combinámos um dia para falar. Pouco antes da hora, ela desmarcou. Trabalha num hospital em Hebron, a cidade onde mora, e estava com muito trabalho. Tentámos uma segunda vez. Numa pausa do trabalho, Nofouz falou comigo. Tinha na altura 23 anos e estava a terminar o curso de Medicina. Falava um inglês perfeito. De vez em quando calava-se para deixar passar os aviões. Emocionou-se algumas vezes. Mas sabia o que queria dizer. "Neste momento, tenho medo de que todas as pessoas que morreram tenham morrido por nada, que todas as crianças que passam por noites de bombardeamentos estejam a sofrer por coisa nenhuma. As pessoas de Gaza estão a lutar por todos nós. Eles não têm opção a não ser lutar. Eles estão a lutar pelo nosso futuro e eu temo que a situação fique na mesma, que, depois da guerra, nada mude", disse-me. Contei a história de Nofouz o melhor que soube, tentando mostrar as contradições de quem cresceu no meio de uma guerra, a maneira como o ódio vai aumentando contra todos os argumentos, como as pequenas humilhações e injustiças de todos os dias transformam as pessoas. De vez em quando, a ver as notícias, lembro-me dela. Trocamos mensagens esporádicas. No outro dia, celebrámos a vitória do filme No Other Land, que ganhou o Óscar de Melhor Documentário. Foi filmado numas aldeias perto de casa dela. Pareceu-me animada com a perspectiva de um acordo de paz. Falava em viajar.
Esta semana voltaram os bombardeamentos em Gaza.
Sinto que o conflito israelo-palestino é demasiado complexo para se conseguir estar de um lado só. Tento ler opiniões de um lado e de outro. Tenho visto filmes, procuro informar-me. Andei a pesquisar sobre o movimento sionista e sobre como tantos judeus foram para aquela região quando Israel ainda não existia e os britânicos resistiam aos movimentos independentistas, quer de israelitas quer de palestinianos. Mas, um ano e meio depois, continuo sem ter uma posição definida. As soluções que parecem perfeitas no papel dificilmente resultarão quando postas em prática. Dois estados? Há demasiados subtextos, demasiada história, demasiados golpes e feridas por sarar, demasiado rancor acumulado para que a paz possa ser alcançada por vias diplomáticas. Ninguém quer ceder.
Acabei de ler O Coração Pensante, do escritor israelita David Grossman, que é muito crítico em relação a Netanyahu. A certa altura, diz: "Para quem vive em países onde a ideia de 'lar' é algo óbvio, devo explicar que para mim, para a minha consciência israelita, a palavra 'lar' cria um sentimento de segurança, protecção e pertença. Lar é um lugar onde posso existir em paz. Em que as fronteiras são reconhecidas por todos, e em particular pelos vizinhos. Mas tudo isto está envolto em nostalgia, em anseio de algo que, para mim ainda não se realizou totalmente. Por enquanto, sinto que a casa israelita é mais uma fortaleza do que um lar. Não há nela segurança nem paz, e os meus vizinhos acalentam muitas dúvidas e exigências sobre os meus quartos e paredes-fronteiras e, por vezes, sobre a sua própria existência. (...) Surge ainda um outro pensamento, o pensamento sobre os dois povos torturados: o israelita e o palestino, nos quais o trauma do refugiado é tão primário e fundamental, e apesar disso nenhum deles tem a mais leve compreensão pela tragédia do outro povo, para não falar compaixão."
Vizinhos. A maioria das guerras começa assim, entre pessoas que vivem lado a lado. De um lado ou de outro da fronteira. De um lado ou de outro da rua. Às vezes nem isso. Russos e ucranianos. Vietnamitas do norte e do sul. Sérvios e bósnios. Grupos étnicos diferentes no Ruanda. Facções opostas na Síria. Lembro-me de ver testemunhos de judeus que viviam na Alemanha antes da guerra, perfeitamente integrados, felizes, e de como, quase de um dia para o outro, passaram a ser mal tratados por aqueles com quem antes conviviam amigavelmente. Os vizinhos em quem confiavam tornaram-se seus inimigos.
Está sempre a acontecer, e o que é mais incrível é que parece que não aprendemos nada.
Crianças esperam a comida fornecida por uma organização humanitária em Beit Lahiya, no norte da Faixa de Gaza (AP Photo/Abdel Kareem Hana)
Neste largo, a vizinhança é boa e escrevemos sem conflitos: